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A imagem é uma colagem com uma foto antiga e outra nova do Aglomerado da Serra. Sobre as imagens, letras coloridas formam a expressão "O Início de Tudo"

Como a violência chegou ao Aglomerado da Serra?

Primeira reportagem da série “Aglomerado da Serra: (In)segurança” revisita histórico do maior aglomerado de Minas Gerais

Em meio a um período de mudanças de valores sociais e festas grandiosas regadas à bebida alcoólica, a década de 1920 ficou marcada na história como “anos loucos”. No Brasil, o fim da gripe espanhola, a volta do carnaval e a crise econômica criaram um cenário não tão diferente da realidade vivida em 2022, depois do auge da pandemia de covid-19. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, o Aglomerado da Serra, que, mesmo sem um censo demográfico recente, é considerado pelo governo mineiro o maior do estado e um dos maiores do Brasil, nascia na surdina da noite. De lá para cá, o Serrão, como é  apelidado pelos moradores, construiu 102 anos de história, com seus altos e baixos. A violência, que na época foi iniciada por uma guerra territorial entre os próprios moradores, foi transformada pelo tráfico e pela ação de líderes sociais.

Criado no aglomerado, Rogério Rego comanda um programa na Radio Autentica Favela, é conselheiro tutelar e liderança social no Serrão. Ele conta que quando chegou ao aglomerado, há cerca de 30 anos, a Serra era bem diferente. Além de ser menor, o local também era visto como “terra de ninguém”. Sem escrituras e funcionando com uma política própria, a região ainda lutava pela união. Na época, o tráfico de drogas não existia, e o acesso à arma de fogo na região era praticamente inexistente, mas a batalha era territorial.

“O aglomerado na época era muito separado [da cidade]. Era considerado só uma favela, mas hoje a comunidade é formada por várias junções de vilas. Há poucos metros abaixo do morro, a questão social era outra. Quando a gente descia, era outro mundo: muita discriminação. Era a gente descer que a polícia parava e perguntava: “O que vocês estão fazendo aqui?”, conta. “Na época, era muito bacana, porque a gente ficava na rua e brincava à vontade. Mas, ao mesmo tempo, era uma época muito pesada na questão da violência, porque era vizinho brigando com vizinho. À noite, não tinha iluminação pública, não tinha nada. Era uma questão muito dura.”


Durante conversa com a equipe de reportagem, o conselheiro relembrou a infância vivida na comunidade. Com um sorriso no rosto, Rogério contou que, com o tempo, a Serra conseguiu se unificar por meio do diálogo e do apoio encontrado entre os moradores. Em 1982, os vizinhos acabaram se conhecendo e se tornando amigos.  “Com o passar do tempo, a convivência foi melhorando, porque como era uma comunidade pequena, as pessoas começaram a se relacionar e, automaticamente, a violência foi diminuindo.”

Rogério Rego, é líder comunitário no Aglomerado da Serra. (Arte: Ana Mendonça)


Não se sabe ao certo como o Serrão se transformou em aglomerado, mas existem evidências de que o bairro Serra foi planejado com a construção de Belo Horizonte e registrado desde a inauguração da cidade – em 1897 -, com o nome de “Chácaras da Serra”. Nos primeiros anos da recém-criada BH, o que se via na região eram chácaras, de onde partiam produtos de hortifrúti para abastecer a cidade. Com o passar dos anos, o “bairro” foi criando uma nova identidade. As chácaras, que contornavam a grande Serra do Curral, foram tomadas por residências irregulares e, depois de um tempo, vilas começaram a surgir.

Oficialmente, o aglomerado é formado pelas vilas Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo São Lucas, Fazendinha e Marçola. São vilas que, ao longo da história, também ganharam outras toponímias, como Arara, Pau Comeu, Caixa d’água, Del Rey, Café, Favelinha, Baixada e muitas outras.

Para Rogério, a violência foi instalada no local com a chegada das armas de fogo. “O pessoal até fala muito de drogas e entorpecentes, mas [o problema mesmo] foi quando começou a chegar arma de fogo.”

Apesar da fala de Rogério, dados levantados pelo Ministério da Justiça (MJ), no início da década de 2010, revelaram que mais da metade das armas de fogo que circulam no país de forma ilegal tiveram origem no tráfico. Desde então, segundo o MJ, o tráfico de armas no Brasil está, muitas vezes, diretamente associado ao crime organizado e ao tráfico de drogas, uma vez que a comercialização de substâncias ilícitas demanda uma elevada militarização dos grupos de traficantes.

“Há uns 30 anos [1992], começou a chegar a arma facilmente. Isso teve a ver também com uma questão do tráfico. Eu acho que o ponto principal dessa questão de violência na época foi o acesso. Quando tinha briga territorial [como antigamente], se tivesse algum problema, usava a arma e você não tinha como recuperar depois”, conta. “Os meninos que vieram depois e foram crescendo nessa realidade, tiveram a oportunidade de se instalar no tráfico.”

Questionado sobre o poder do Estado dentro da comunidade, Rogério apontou que nunca viu política pública envolvendo a segurança ser aplicada de forma recorrente no aglomerado. “O Estado, historicamente, deixou a gente abandonado. Até hoje, as intervenções são paliativas.”

Ao contar sobre o assunto, o conselheiro enxergou, ao fundo, duas meninas brincando em uma praça. As crianças vieram até o líder e o questionaram do porquê de ele ser “famoso” e “estar dando uma entrevista”. Entre um sorriso no rosto e a emoção contida nos olhos, Rogério contou como a importância de bons exemplos diminuiu efetivamente a violência ao longo dos anos.

“Um menino que nasce aqui tem duas escolhas nítidas: se tornar trabalhador ou cair no tráfico. Ele pode crescer e ver um policial saindo daqui. Um bom exemplo. E vai querer ser policial também e dar bom exemplo”, conta. “Em qualquer lugar, tem gente boa e tem gente ruim. Existe, sim, repressão policial, como em qualquer lugar, mas tem gente que dá bom exemplo”, diz.

Cria do Aglomerado

Não se sabe ao certo quantos habitantes vivem no Aglomerado da Serra atualmente, mas é possível encontrar diferentes apontamentos. O site da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), por exemplo, contém páginas que registram uma população de 34 mil pessoas e outras que citam 50 mil moradores. Entre esses moradores, o Capitão Mauro Lucio, 48 anos, comandante do Gepar (Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco), é nascido e criado no Serrão. Ele ingressou na Polícia Militar (PM) em 1995.

Capitão Mauro Lúcio, comandante do Gepar, homem branco, por volta dos 40 anos, careca, vestido com a farda marrom da Polícia Militar e de máscara preta, em sua mesa de escritório branca, sentado em sua cadeira azul, ao lado de um computador ligado, gesticula ao dar entrevista.
Capitão Mauro Lúcio, comandante do Gepar. (Foto: Victor Silveira)

De uma família grande, com 10 irmãos, Mauro Lúcio era filho de um comerciante local e chegou a vender picolés antes de virar policial.  “Eu gostava de estudar, ao contrário dos meus irmãos. Mas depois que me formei, virei motoboy e entrei para a PM”, conta.

O capitão do Gepar também citou as brigas territoriais na infância. “Era uma provocação: ‘Quem é de tal lugar é mais rico’, ‘Os boys da Del Rey não podem ir na Caixa D’água’. Começou uma rivalidade, entendeu? O tráfico, depois que foi inserido, também ajudou a contribuir com isso. Entre as vilas dava guerra. Cada um com seu território”, comenta. “Aí, depois disso, começaram os confrontos. Até mesmo com namorada… qualquer coisa desencadeava uma disputa”, explicou.

Para ele, o período mais “sangrento” do aglomerado foi de 2003 a 2008. Segundo Mauro Lúcio, essa foi a época em que mais houve homicídios.

Em uma pesquisa feita pelos arquivos do jornal Estado de Minas, foi possível encontrar diferentes manchetes sobre o assunto. De “Guerra entre gangues” até “Tráfico leva divisão ao Aglomerado”, o jornal apontava que a região sofria com as gangues locais.


“O que acontecia era o seguinte: existiam as gangues e elas tinham rixas entre si. E a maioria das “guerras” entre elas começava por motivos bobos. Por exemplo, fulano foi a um pagode e aprontou. A guerra começava. Aí começou o período sangrento. Por pontos de tráficos, ou as rixas antigas mesmo. Gangue x Gangue. Mas não foi nada comparado ao Rio de Janeiro, por exemplo. Ali não era mais uma questão de território, era coisa besta mesmo.”

Capitão Mauro Lucio

Segundo o capitão, com a divisão de diversas gangues pelo aglomerado, começaram a surgir acordos para cada região. Cada gangue começou a agir em um local e, com isso, os homicídios voltaram a diminuir.

“Eu já atendi mais de quatro homicídios por dia. E depois, com a chegada do Gepar, começou um trabalho mais selecionado, sabe? De ver autoria, de qual gangue. Hoje em dia, eles se intimidam. Não é só matar. A gente sabe quem é, de onde vem, qual gangue pertence…”, explica. 

Da guerra de gangues ao tráfico

Ilustração com o título de "Guerra" apresenta colagens de imagens: Uma delas um homem negro segurando uma arma de forte calibre, um esquadrão da polícia, uma viatura da Polícia Militar, além de uma montagem de uma imagem do Aglomerado da Serra.
“Guerra entre gangues” tomou o Aglomerado da Serra (Arte: Ana Mendonça)


Assim como o líder do Gepar, para Luiz Flávio Sapori, especialista em Segurança Pública e professor da PUC Minas, a virada dos homicídios ocorreu na virada da década passada. “Indicando que o fenômeno certamente envolve alguma inserção da dinâmica do tráfico de drogas”, disse.

Segundo Sapori, a Serra, entre 2003/2004 até 2010, vivenciou um crescimento de homicídios entre jovens mesmo com Vila Viva. O que indica a “guerra entre gangues” citada pelos outros entrevistados. “Mesmo com as melhorias sociais. Para ser mais provocativo, os jovens da região estavam se matando menos por algum motivo e eu acredito que era o tráfico”, explica.

O especialista ainda citou o estudo do sociólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rafael Rocha, que estudou quase 10 anos de homicídios na Serra, e identificou que muitos homicídios estavam relacionados às gangues locais.

“É uma região muito fragmentada, na divisão de gangues na divisão territorial das gangues de jovens. Uma matança muito grande entre as gangues muitas vezes, por motivos fúteis. Vinganças, por exemplo. Não motivações diretamente relacionadas às disputas econômicas do tráfico, mas jovens do tráfico se matando por conflitos banais”, afirmou. “Nos últimos 10 anos, esse fenômeno parece que foi praticamente estancado. Significa que alguma ordem superior, seja dos gerentes das biqueiras dos patrões do negócio. Porque ali não tem um patrão só. Não é uma região que tem uma hegemonia do tráfico”, prosseguiu.

Luiz Flávio Sapori, um homem branco, por volta dos 60 anos de idade, com óculos preto e cabelos brancos, gesticula na sala de sua casa, sentado no sofá. Uma esteira ao fundo e porta da varanda também aparecem na imagem.
Luiz Flávio Sapori, especialista em Segurança Pública. (Foto: Bernardo Caldeira)


Ao falar sobre o Gepar, Sapori discordou do Capitão Mauro Lucio. Para ele, a iniciativa não fez parte da queda das estáticas. “Se o Gepar estava no período de crescimento dos homicídios, como dizer que ele é parte da queda dos homicídios? Do ponto de vista sociológico não faz sentido”, questionou.

A “guerra entre gangues” acabou em meados de 2010, de acordo com os entrevistados. Desde então, o tráfico, os movimentos sociais e também a ação de líderes vem controlando a paz no Aglomerado.

A reportagem ressalta que com problemas comuns relacionados ao crime nas favelas por todo o Brasil, o Aglomerado da Serra recorre à mesma situação. O descaso social é apontado pela falta de números, dados e censos de dentro da comunidade.


Este é o primeiro texto da série de reportagens “Aglomerado da Serra: (In)segurança”. Na próxima matéria, a série explica como o assassinato de inocentes na região foi ponto chave entre a segurança pública e os moradores do aglomerado.

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Esta série de reportagens foi produzida por Ana Mendonça, Bernardo Drummond, Felipe Quintella, Marcelo de Angelis, Pedro Lovisi e Victor Silveira como Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da PUC Minas, sob orientação da professora Fernanda Nalon Sanglard.

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