Nas manhãs frias de Forquilha do Rio, em Espera Feliz, no alto da Serra do Caparaó, Zona da Mata mineira, o cheiro do café recém-passado ainda parece disputar espaço com o da terra úmida. É ali, a mais de mil metros de altitude, que seu Onofre Lacerda, já com 80 anos, caminha devagar entre os talhões como quem revisita a própria história. O terreno que hoje supervisiona já foi do pai e, antes dele, do avô. Agora pertence aos filhos. Quatro gerações de mãos escurecidas de colheita moldaram o sítio onde nasceram oito filhos, dezesseis netos, quatro bisnetos e uma tradição: o café como trabalho, sustento e identidade.
No entanto, o ambiente onde se escreve essa história não é mais o mesmo. Afonso Lacerda, um dos filhos do senhor Onofre, observa as marcas deixadas pelas transformações do clima. “A gente notou que houve mudança, as nascentes perderam volume e o frio daqui já não é o de antigamente”, diz. No sítio, devido à altitude, o aumento das temperaturas favoreceu a produção de cafés especiais. Abaixo da serra, porém, a realidade é outra. “A cinco quilômetros daqui, o pessoal já está perdendo produção”, afirma.
Essa diferença, tão pequena no mapa, ajuda a traduzir o momento crítico vivido em Minas Gerais. O estado é o maior exportador de café do Brasil e integra uma cadeia que coloca o país como responsável por um terço de toda a bebida produzida no mundo, dos quais 52,7% saem de solo mineiro, segundo a Secretaria Estadual de Abastecimento e Pecuária (Seapa).
Já a agropecuária representa 22,2% da economia estadual e responde por 6,1% do Produto Interno Bruto (PIB) de Minas, colocando o estado como o segundo maior produtor do país. Em 2024, o agronegócio bateu recorde e chegou a R$235 bilhões, R$20,5 bilhões a mais que no ano anterior. Esses números dimensionam o impacto que mudanças climáticas podem provocar num setor que sustenta desde grandes cadeias produtivas até pequenas propriedades familiares.
O estado mais agrícola da região Sudeste abriga três biomas — Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga —, que se misturam em serras, chapadas e vales. Essa diversidade sempre foi força produtiva, mas agora sofre com diferentes impactos das mudanças climáticas. Como explica Ariel Chaves, chefe do Núcleo de Gestão Ambiental da Secretaria Estadual de Agricultura (Seapa), cada região tem seu desafio climático distinto: seca no norte, geada no Sul e enchentes no Leste.
A formação econômica de Minas Gerais está ligada à história de sua ocupação territorial. O ciclo do ouro e do diamante criou cidades; depois, café e leite estruturaram o interior e impulsionaram a agricultura familiar. A partir da segunda metade do século XX, com mecanização e insumos modernos, o Cerrado virou novo polo produtivo, e a pesquisa agropecuária, capitaneada por instituições como a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), colocam Minas como protagonista da agricultura.
Essa trajetória moldou também a cultura alimentar do estado. Para Vani Pedrosa, assessora de Projetos Especiais do Senac Minas, a culinária local resulta do encontro de diferentes grupos e da posição do estado como rota de passagem: “Aprendemos a receber. Aperfeiçoamos o modo de cozinhar para acolher viajantes, especialmente no ciclo do ouro, e isso ajudou a consolidar a comida mineira como referência”.
Em Minas, onde o café se confunde com a história do estado, cada variação na temperatura, chuva que atrasa ou seca que insiste repercute para muito além das xícaras. O leite, base do queijo artesanal e do tradicional “pingado”, sente os impactos do clima sobre os pastos.
Nas propriedades leiteiras, o cenário é tão desafiador quanto na cafeicultura. O Brasil é o terceiro maior produtor de leite do mundo, e Minas responde por mais de 27% desse volume, 9,3 bilhões de litros ao ano, em quase todos os 853 municípios, sobretudo em propriedades familiares. Hoje, variações antes leves de temperatura já reduzem a produtividade, elevam custos e desgastam os animais.
É nesse cenário que, para a família Lacerda, a adaptação virou necessidade. Para manter produtividade e sustentabilidade, a propriedade reflorestou nascentes, ajustou sistemas de secagem e adotou manejos mais precisos. Como destaca a pesquisadora Cristiane Viana, da Epamig, “a inovação chega cada vez mais rápido ao campo, com sensores, estações meteorológicas, cultivares adaptadas e sistemas sustentáveis, todos essenciais para reduzir a vulnerabilidade climática”.
O que acontece no sítio do senhor Onofre em Caparaó ecoa por todo o estado. Minas enfrenta agora o desafio de proteger seus alimentos e receitas mais simbólicas diante de um clima que não se comporta mais como antes. Como Ariel Chaves ressalta, “O produtor é o maior interessado em preservar. Sem solo e sem água, não há produção. E garantir isso é garantir segurança alimentar”.
Desde 1898, café e leite deixaram de ser apenas produtos agrícolas para se tornarem símbolos de poder no Brasil. A chamada Política do Café com Leite marcou uma era em que acordos e estratégicas firmados entre as oligarquias mineira e paulista ditavam o rumo da política nacional, influenciando decisões sociais e econômicas e definindo o destino do país.
A lavoura que sente sede
No momento em que famílias de produtores reinventam o passado para sobreviver ao futuro, o café mineiro revela suas próprias fissuras. Se Caparaó ainda oferece abrigo para floradas tardias, em outras regiões do estado, o grão sente a sede que se espalha por serras, vales e chapadas. A cada safra, produtores veem o que era previsível se desfazer: chuvas que não chegam, floradas fora de hora e pragas que sobem a serra.
O Brasil reúne condições únicas para o cultivo do grão, como destaca Mário Ferraz, engenheiro agrônomo da Cooxupé, a maior cooperativa de café do mundo: diversidade climática, altitudes variadas, solos férteis e uma extensão capaz de acolher tanto o exigente arábica quanto o resistente Robusta, também conhecido como Conilon.
O café arábica, originário das montanhas da Etiópia, na África, se desenvolve melhor em altitude, cenário típico do Sul de Minas. É nesse ambiente de serras e clima ameno que trabalha Luciene Santos Mota, pequena produtora rural de Pedralva, a 1.300 metros de altitude. Filha de apanhador de café, ela começou a ajudar os pais no campo aos 14 anos e, anos depois, transformou a pequena propriedade em referência na produção orgânica.
Hoje, com cerca de seis mil pés de Catuaí Vermelho, colhe não apenas o café, mas o reconhecimento de premiações e notas elevadas na categoria de especiais. Para ela, a altitude elevada e o clima ameno fazem com que o cultivo do arábica seja altamente produtivo. Os cafés produzidos a partir do grão africano são considerados especiais, mais aromáticos, ácidos e com menor teor de cafeína.
Já o Robusta, com teor mais elevado de cafeína, resulta em um sabor mais forte e amargo. Graças à sua grande resistência e facilidade de adaptação a diferentes ambientes, o grão é amplamente consumido no dia a dia dos brasileiros, do café filtrado de padaria às máquinas industriais. Mas a rusticidade não o faz menor: linhas especiais produzidas com esse grão têm ganhado destaque e se tornado cada vez mais desejadas no mercado, valorizadas por sua cremosidade e intensidade.
Tipos de grãos de café no Brasil / Arte de Alice Stéfany.Se, na serra, a lavoura da família Lacerda ainda encontra abrigo, nas encostas da Mantiqueira, no Sul do estado, o que se vê são fissuras muito mais profundas. É ali que Luciene percebe as mudanças do clima pelas floradas fora de hora:
Antes, a gente contava com três floradas certas, setembro, outubro e novembro. Era previsível. Hoje está tudo diferente: tem florada em agosto, em fevereiro…completamente fora de época. A falta de chuva afetou muito, mesmo aqui na Mantiqueira, que é alta, arborizada e mais fresca. E ainda tivemos granizo, geada, mudanças bruscas de clima. Tudo isso derrubou a produção”.

Além disso, a seca prolongada derrubou a produtividade, e até mesmo a variedade mais resistente, desenvolvida em laboratório, começou a sofrer. “Se até esse café está sentindo, imagina o resto”, diz Luciene.
O Levantamento da Safra de Café da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que, em 2025, Minas deve colher 24,8 milhões de sacas de arábica, uma retração de 11,6% em relação ao ano anterior. A área cultivada também diminuiu 2,4%, somando pouco mais de um milhão de hectares. Além disso, a produtividade média recuou 8,7%. Em várias regiões do estado, a estiagem chegou a durar até 180 dias, o que comprometeu o desenvolvimento das lavouras.
O impacto das condições climáticas extremas é sentido de formas distintas em cada região do estado. Enquanto no Sul e o Centro-Oeste, maior polo produtor, as perdas chegam a 10,3%, resultado direto da combinação entre estiagens prolongadas e calor intenso durante a floração, no Cerrado Mineiro, além da longa seca, os produtores enfrentaram escaldadura foliar, grãos chochos e redução no rendimento do beneficiamento. Já a Zona da Mata e o Vale do Rio Doce registraram desfolha severa, perda de floradas e aumento de pragas induzidas pelo calor, como cercosporiose e leprose. No Norte de Minas e no Jequitinhonha, a situação é ainda mais crítica: a seca extrema comprometeu praticamente todas as lavouras de sequeiro, com desempenho um pouco melhor apenas em áreas irrigadas.
Observando os termômetros, a Epamig adverte que o aumento de 1°C na temperatura média já torna as regiões do Norte, Jequitinhonha e parte do Leste do estado inaptas ao cultivo do café arábica. Nessas regiões, o arábica, sensível e exigente, não tem encontrado refrigério suficiente para florescer, frutificar e completar seu ciclo. Mas há um dado que pesa ainda mais. Se a temperatura subir 5,8°C, como aponta a empresa pública, a cafeicultura deixará de existir em Minas Gerais.
Cerca de 406 quilômetros separam a produção de Luciene e de Marcos Penido, produtor de café agroflorestal – ou “café de quintal”, como estampa o nome na embalagem que é sua marca registrada. Em Itaúna, Centro-Oeste mineiro, na transição entre o Cerrado e a Mata Atlântica, Marcos encontrou na sua propriedade, o sítio Calambau, terreno fértil para a plantação de café arábica com cultivar Bourbon.
Mais do que a distância física, o que diferencia Marcos dos demais produtores é que ele não cultiva café para subsistência e, tampouco, trabalha em escala comercial. A lavoura no sítio existe, sobretudo, como realização pessoal, uma forma de dar função produtiva ao terreno. O café Calambau abastece, primeiro, a própria família Penido, levando à mesa a segunda bebida mais consumida do país. “Nós temos um café completamente natural, produtivo para toda a família. Ninguém aqui compra café”, afirma. Mesmo com a pouca quantidade produzida, o produtor ainda garante uma clientela fiel, que preza por um café aromático, palatável e de alta qualidade.
Assim como nas lavouras de Afonso Lacerda e Lucilene Santos, Marcos Penido também sente os efeitos da estiagem, que se tornou um dos principais desafios para a cafeicultura local. O município de Itaúna está localizado em uma das vertentes da Cordilheira do Espinhaço — a maior cadeia montanhosa do Brasil, que atravessa 172 municípios de Minas Gerais até a divisa com a Bahia —, região onde, segundo o produtor, não é habitual haver plantação de café. Esse fator, somado à seca que impactou fortemente o estado nos últimos dois anos e à proximidade com Belo Horizonte, intensifica o clima seco e empoeirado e reforça a escassez de água, dificultando ainda mais o cultivo do grão.

“Aqui só se irriga em casos de emergência, porque a água é mais escassa. Um café agroflorestal fica um pouco mais refrescado, então eu decidi fazer o que era razoável para a minha comunidade: produzir um café com menos potência de quantidade, mas com o máximo de qualidade. Estamos em uma altitude próxima de 1.000 metros, comum na região, e em um terreno fértil, por isso ele ainda produz mesmo com pouca água”, complementa Penido.
Outro diferencial da produção de Marcos Penido é o sistema agroflorestal. A técnica permite manter a produtividade do grão no Sítio Calambau sem a necessidade de suprimir as árvores, sobretudo as frutíferas que se espalham pelo terreno. Esse manejo favorece o sombreamento natural do café, reduzindo a incidência direta dos raios solares e protegendo os frutos dos efeitos mais severos da estiagem. É essa forma de cultivo que define o Café Calambau, preserva sua essência de “café de quintal” e garante que a lavoura resista mesmo em períodos intensos de seca.
Peso no bolso
Em 2024, o agronegócio mineiro ultrapassou o setor de mineração e alcançou US$17,1 bilhões, impulsionado sobretudo pelo café. Mas o ciclo de 2025 acendeu um alerta: custos operacionais mais altos e produtividade menor. O resultado aparece no bolso do consumidor. Segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), o quilo do café atingiu R$62,83 em agosto de 2025, praticamente o dobro do que era em 2023, quando custava R$32,40.
Para quem produz, a disparada nos preços não surpreende. Ariel Chaves, da Seapa, lembra “o produtor é quem primeiro sente a seca, ele é o primeiro a sentir o excesso de chuva, é a geada que acaba com a colheita do café”. Ela destaca que o agricultor não é apenas um agente econômico, mas também vulnerável. “Às vezes a gente tem a visão do produtor só como causador, mas ele é o primeiro a sentir as mudanças”.

A avaliação é compartilhada por quem acompanha a rotina das propriedades. O zootecnista Rafael Rocha, gerente de agronegócio do Sistema Faemg/Senar, aponta que Minas enfrentou, nos últimos cinco anos, uma sequência rara de eventos climáticos extremos: “O preço do café passou por várias crises e hoje a gente está em um momento positivo histórico com relação ao preço da saca pago ao produtor”. Apesar disso, o cenário está longe de ser tranquilo. “O produtor tem recebido mais nos últimos dois anos pelo café, mas não necessariamente isso é positivo, em função da quebra de safra”, explica o especialista.
Com menor produtividade e mais riscos, produtores têm buscado alternativas para se manter. Segundo Rafael, muitos precisaram cortar os pés de café para uma nova brotação após danos climáticos, o que compromete safras inteiras. Outras medidas incluem ampliar a irrigação, uso de cultivares resistentes, melhoramento genético e aprimoramento do manejo. Ariel complementa que “os produtores têm cada dia mais se preocupado em adotar soluções de adaptação e mitigação, justamente porque eles são sim impactados pelas mudanças climáticas”. Entre essas ações estão a preservação de nascentes, recuperação de áreas de proteção permanente e práticas de baixo carbono.
Diante desse cenário, ganha relevância a implementação do PLAC-MG (Plano Estadual de Ação Climática), coordenado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais (SEAMA). O plano define metas de mitigação e adaptação para setores estratégicos, incluindo a agropecuária, e orienta o estado rumo à resiliência até 2050.
A implementação do MRV Climático, ferramenta de Monitoramento, Relato e Verificação, para apoiar o PLAC, é um marco nessa estratégia. O sistema acompanha em tempo real o avanço das metas, aponta gargalos, organiza responsabilidades e permite que o governo estadual oriente investimentos de forma estratégica, priorizando setores mais vulneráveis, como segurança hídrica e cadeias produtivas essenciais, como é o caso do café.
O café e a memória
Para além da lavoura, o café em Minas é um modo de existir. É o cheiro que anuncia as manhãs, a pausa entre um serviço e outro e o gesto inconsciente de pôr água no fogo para passar um café antes mesmo de abrir a janela. É também uma forma de transmitir memória, pois cada geração passa a seguir o conhecimento das floradas, o tempo de cereja, a melhor luz para secar no terreiro e o jeito de sentir o ponto certo da torra.
Nos sítios da família Lacerda, nas montanhas de Luciene e no quintal agroflorestal de Marcos, essa memória tem corpo. E, ao lado dela, vem também o olhar técnico que sustenta a produção em tempos de mudanças. Como lembra Gilmar Oliveira, coordenador de Sustentabilidade Ambiental da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER-MG), “Temos equipes atuando em praticamente todos os municípios mineiros, inclusive nas regiões mais vulneráveis. Programas como o Certifica Minas, Irriga Minas, Água Doce e os projetos de revitalização de bacias têm garantido assistência técnica qualificada para cafeicultores e pecuaristas”.
É neste encontro entre tradição e técnica que surge o Certifica Minas Café, programa de certificação criado pelo governo de Minas Gerais que promove boas práticas de produção e a sustentabilidade ambiental e social. Todos os anos, cerca de 1.300 propriedades são certificadas em Minas Gerais, produzindo em média 1,1 milhão de sacas de café com garantia de qualidade.
É nesse universo de tradição, cuidado e técnica que o Certifica Minas Café se torna mais do que um selo, reconhecendo que o café produzido em Minas nasce de boas práticas, e é essa confiança, construída diariamente e na dedicação de cada família, que mantém o café mineiro forte, valorizado e qualificado para seguir sendo símbolo do estado.
O gado que sente calor
O cheiro de terra úmida ainda se espalha pela madrugada quando os baldes de alumínio começam a tilintar na propriedade de Áureo Carvalho, em Santa Rita de Caldas, no Sul de Minas. O sol demora a aparecer atrás da serra, mas o trabalho já corre solto desde antes da primeira claridade. Áureo gosta de dizer que nunca pensou em fazer outra coisa da vida. Filho e neto de produtores, sempre imaginou ter o próprio pedaço de chão, “produzir meu leite, tocar meu negócio”.
Ele seguiu o plano com a ajuda de uma linha de crédito do BNDES e, depois, com o apoio da Emater, que chegou ao município em 2013. O produtor ainda se lembra da primeira visita de um extensionista, do pasto fraco, da erosão avançando, do solo sem correção, da capineira destruída: “Nós estávamos produzindo 100 litros de leite e com vários problemas. Os assistentes vieram e colocaram tudo em ordem”.
Para o engenheiro agrônomo Gilmar Oliveira, casos como o de Áureo mostram como o suporte técnico se tornou essencial num cenário de clima mais instável:
As nossas orientações têm focado no manejo de solo e de água para aumentar a resiliência das propriedades. Sem isso, os efeitos da estiagem e do calor ficam muito mais severos para o pequeno produtor”.
Dados da Embrapa indicam que a produtividade pode ser até 30% menor em períodos climáticos críticos. Em tempos de chuvas excessivas, as vacas ficam suscetíveis à mastite (inflamação das glândulas mamárias causadas por bactérias), o que pode levar à contaminação do leite. Na seca e no calor extremo, pastos ressecados alimentam incêndios. Nos períodos de estiagem, os bovinos têm ingestão de água superior aos níveis diários para lidar com o estresse térmico – dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, já indicavam, em 2019, que a produção de cada quilo de carne bovina requer, em média, 15 mil litros de água.
Nesse contexto, a agropecuária já é o setor econômico responsável por metade do maior dispêndio de água no Brasil, puxado, principalmente, pela agronomia dependente de irrigação, como as plantações de café e grãos para rações.
O clima no campo
Em Santa Rita de Caldas, o produtor de leite Paulo Henrique descreve os dias de calor em que as vacas se aglomeram debaixo dos ventiladores e deitam no chão tentando se refrescar. “É triste ver o animal no limite”, diz. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), 2024 teve a maior temperatura já registrada, e junho de 2025 entrou para o ranking como o terceiro mês da série histórica, de acordo com o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S).

O avanço do calor intensifica o estresse térmico – condição em que a temperatura interna do animal ultrapassa sua zona de conforto em decorrência de frio ou calor extremos. Essas variações bruscas afetam diretamente o bem estar do gado, acarretando em alterações no seu comportamento e em seu ciclo reprodutivo. Em decorrência disso, a qualidade e a produtividade do leite caem, criando um efeito em cadeia que preocupa os produtores do estado.
Para combater esse fenômeno, produtores buscam manter os animais em uma zona denominada de “termoneutra”, faixa de temperatura adequada para que o gado mantenha suas funções vitais sem prejuízo ao ciclo produtivo.
O calor representa uma ameaça ainda maior para os bovinos criados a pasto, e Gilmar Oliveira observa que muitos pequenos e médios produtores não conseguem implementar todas as medidas necessárias. “Eles enfrentam, principalmente, dificuldades relacionadas à escassez e irregularidade de água, perda de produtividade e queda de qualidade do produto por estresse térmico”, afirma.

O produtor de leite Elton Ferreira Silva, também de Santa Rita de Caldas, resiste como pode. Apenas nos últimos cinco anos, conseguiu viver exclusivamente da atividade. Com o apoio da Emater, concluiu melhoramentos na sua fazenda, como a construção de um galpão, uma sala de ordenha e investiu em melhoramento genético por inseminação. Os animais se tornaram mais resistentes e, segundo ele, a produção aumentou em mais de 40%.
A Embrapa e a Epamig têm desempenhado papel central ao desenvolver pesquisas que combinam biotecnologia e manejo ambiental para equilibrar produtividade e bem-estar animal. O melhoramento genético elevou em 60% a produtividade da raça Girolando e reduziu em 39% as emissões de metano por litro de leite. A integração lavoura-pecuária-floresta tenta recuperar o solo e capturar carbono. Já a edição gênica busca inserir resistência ao calor em raças europeias.
Áureo tem observado, ao longo da vida, as mudanças climáticas atingem Minas Gerais. Diferente da regularidade climática de sua infância, ele nota que o tempo está cada vez mais instável. “O clima tá mais rigoroso conosco”, resume ele.
Com as alterações climáticas, também vêm as pragas, exigindo mais pesticidas e medicamentos, o que gera mais custo e nem sempre se traduz em maior produção. Áureo acredita que o alimento vai ficar mais caro e que a dificuldade de produzir só aumenta. Para muitos produtores, a pressão por produtividade leva ao uso intensivo de fertilizantes sintéticos e corretivos do solo, essenciais para manter a lavoura, mas responsáveis por ampliar as emissões de gases de efeito estufa (GEE). O calcário, principal corretivo agrícola, libera CO₂ ao reagir com o solo. Já os fertilizantes nitrogenados aceleram o crescimento das pastagens, mas emitem óxido nitroso (N₂O), gás menos volumoso e altamente potente no aquecimento global.
Para reduzir esse impacto, a Emater e a Embrapa têm promovido tecnologias mais sustentáveis, como biofertilizantes, que oferecem desempenho próximo ao dos sintéticos com menor emissão e são mais saudáveis para o solo.
Diante da necessidade de conter os GEE do setor, o governo federal criou iniciativas dentro do Ministério da Agricultura e Pecuária. Programas como o ABC+ (Plano de Adaptação e Baixa Emissão de Carbono na Agricultura), PLAC-MG e o MRV Climático buscam mitigar emissões e estimular práticas mais eficientes.
Segundo Ariel Chaves, da Seapa, Minas Gerais foi um dos estados mais bem sucedidos nesses projetos, rendendo a ampliação para o ABC+, agora com metas de redução mais robustas entre 2020-2030, indo além do seu antecessor, que tinha uma meta voluntária para o período 2011-2020. O primeiro plano ABC visava reduzir a emissão de gases através de metas voluntárias para a mitigação da mudança do clima. Já a nova versão busca o mesmo resultado por meio de metas de tratados internacionais e a gestão integrada de paisagem.
O Plano ABC+ busca tornar a agropecuária mais sustentável por meio de tecnologias e práticas que reduzam a emissão de gases de efeito estufa. O programa trabalha com dez tecnologias reunidas no SPSabc (Sistemas, Práticas, Produtos e Processos de Produção Sustentáveis), todas voltadas à mitigação climática. Atualmente, a meta do projeto é de alcançar o total de 208,40 m³ e 1076,14 MTCO2e (Milhões de Toneladas de Dióxido de Carbono Equivalente) até 2030.
Iniciativas da Embrapa. Arte de Ana MaiaA pecuária que se alimenta do desmatamento
A adaptação da pecuária ao clima se torna cada vez mais urgente. O relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de 2023 aponta que a temperatura média da superfície do planeta aumentou 1,1°C entre 2011-2020, o mesmo acréscimo observado desde o período pré-industrial, nos anos de 1850–1900. Pelas estimativas, o planeta deve atingir 1,5°C de aquecimento global em curto prazo. No Brasil, a pecuária está entre as principais fontes diretas e indiretas de gases de efeito estufa.
Embora o dióxido de carbono (CO₂) seja o gás mais emitido, o metano (CH4) produzido durante a digestão dos bovinos têm peso significativo, respondendo por cerca de3,2% das emissões nacionais e com potencial de aquecimento quase 30 vezes maior que o CO₂ em cem anos, e mais de 80 vezes em vinte anos, segundo dados da União Europeia. Professor da PUC Minas e doutor em Ciências Biológicas, Henrique Paprocki explica que, apesar de menos volumoso que o CO₂, o metano é muito mais danoso.
Além das emissões diretas, a pecuária também impulsiona o desmatamento, considerado impacto indireto relevante. Paprocki ressalta que a atividade ainda expande suas fronteiras sobre áreas de vegetação nativa, por meio da remoção parcial ou total da cobertura vegetal. A pesquisadora Ariel Chaves reforça que a abertura de novas áreas é permitida quando regularizada e registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR). No entanto, há produtores que expandem suas terras irregularmente em busca de maior lucro, prática conhecida como grilagem, caracterizada como crime pela Lei nº 6.766/1979.
Paprocki destaca que o desmatamento, que inclui casos de grilagem, responde por mais de 50% das emissões de dióxido de carbono no Brasil, configurando a principal fonte de gases de efeito estufa no país. Hoje, o Brasil é o segundo maior emissor de carbono por desmatamento no mundo, liberando bilhões de toneladas de CO₂ por ano. Esse volume elevado de emissões intensifica os chamados eventos extremos: chuvas irregulares, redução da umidade, secas prolongadas e degradação do solo.
Cooperando para o crescimento
Apesar dos extremos climáticos e das dificuldades na fazenda de Áureo Carvalho, a produção segue em crescimento. Com a assistência da Emater na implementação de regras de manejo, orientação técnica e organização da propriedade, a produção aumentou a ponto de superar a capacidade da estrutura existente. A entidade ajudou Áureo a firmar parceria com a Danone, o que trouxe agrônomos, veterinários e zootecnistas para um acompanhamento contínuo que ele descreve como quase familiar: “Eles vêm aqui não só para captar o leite. Querem saber dos animais, do meio ambiente, das terras, da gente”.
Com o suporte, a produção saltou dos 110 litros iniciais para 2.300, com meta de atingir 3.000 litros nos próximos meses.
As parcerias e a assistência técnica têm se mostrado fundamentais para a sobrevivência dos produtores. Produtor e gestor da Associação dos Produtores de Leite de Santa Rita de Caldas e Região (Aprol), Paulo Henrique Pereira conta que a entidade surgiu quando um grupo se desligou de uma cooperativa local para fundar a própria associação. Segundo ele, tudo começou com dez produtores e dois mil litros de leite; nove anos depois, a Aprol reúne 200 produtores, 130 propriedades e movimenta 42 mil litros por dia.
Viver do leite
Expandir não significa estabilidade, e Paulo Henrique enxerga isso de perto, tanto como produtor quanto como gestor de uma associação. Ele teme o impacto das crescentes importações de leite: “Jogou mais de 3 bilhões de litros no mercado. Tá arrebentando nós”. Com oferta sobrando no mercado interno, ele cobra uma atuação mais firme do Governo para conter a queda nos preços. Mas ele já observa o efeito: vários produtores desistiram da atividade nos últimos meses.
Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da USP (Cepea/USP), as cotações do leite caíram 19% no último ano, pressionadas pelo aumento das importações, que saturou o mercado. Estoques elevados, margens reduzidas e consumo estagnado compõem o quadro da chamada “crise do leite”, marcada pelo descompasso entre custo de produção e preço pago ao produtor. Embora tenha crescido em volume, o setor segue instável: em 2024, a produção nacional foi de 35,7 bilhões de litros. Minas Gerais, líder do crescimento produtivo no sudeste, representou 27,4% da produção nacional, segundo o IBGE. Por outro lado, a queda no preço do leite é uma boa notícia para o consumidor brasileiro, uma vez que significa acesso ao alimento por um melhor preço.
Depois de um 2023 marcado por preços baixos, 2024 registrou alta acumulada de 33% na valorização do produto. Com insumos mais baratos, sobretudo os grãos que servem de ração para o gado, o litro ficou menos custoso para o produtor. A Conab confirma: em 2024, o preço do leite subiu até 40% no inverno (Índice de Preços Recebidos pelos Produtores, IPR-MG) e os custos permaneceram estáveis (Índice de Custo de Produção do Leite, ICPLeite/Embrapa).
Mesmo com alguns avanços, o setor ainda cambaleia. A pandemia deixou marcas: exportações intensas, insumos caros e consumo instável provocaram oscilações bruscas nos preços. Hoje, produtores enfrentam margens cada vez mais apertadas, agravadas pela alta importação de lácteos.
As queixas são de que países como Argentina e Uruguai, amparados por subsídios mais robustos e isenção tarifária no Mercosul, conseguem vender ao Brasil por valores muito inferiores. A desvalorização desanima especialmente os pequenos produtores, que vêm abandonando a atividade. Esse movimento reduz a competitividade interna, concentra o mercado nas mãos dos grandes e aumenta a dependência externa.
O governo federal proporciona para produtores programas de incentivo, para que continuem sua produção. Um desses projetos é o plano safra, que para 2025/2026, disponibilizou R$ 516,2 Bilhões através de linhas de créditos.
O leite busca outras formas
Elton Ferreira Silva fala do futuro entre uma ordenha e outra. Ele lista o que pretende aprimorar: o pasto, a genética do rebanho e a estrutura do curral. Permanecer no leite, para ele, é abrir pequenos caminhos em um setor apertado, e a produção artesanal surge como uma alternativa.
Quero fazer outro produto do leite, um doce, um iogurte, futuramente, na hora que a gente estabilizar”, diz, esperançoso.
Entre os derivados possíveis, o Queijo Minas é um dos mais tradicionais da pecuária mineira. Integrante da cultura gastronômica do estado desde o século XVIII, foi reconhecido pela Unesco como patrimônio imaterial da humanidade em 2024.

Na Serra da Mantiqueira, essa tradição ganhou história própria. Em Alagoa, Jeremias Sene descia a serra com queijos embrulhados em folhas de bananeira no lombo de burros rumo ao Vale do Paraíba. Décadas depois, seu bisneto, Osvaldo Filho, transformou aquele percurso em negócio. Em 2009, fundou a Queijo D’Alagoa-MG, inicialmente atendendo a um único produtor, e inaugurou a venda online de queijos artesanais de leite cru no país. “Somos pioneiros na venda de queijo pela internet. Começamos enviando pelos Correios para o Brasil inteiro”, conta. A iniciativa impulsionou a economia local e atraiu visitantes à cidade.
A empresa reuniu produtores da Mantiqueira em torno da adoção de práticas mais sustentáveis, como o plantio anual de araucárias e o uso de energia solar. “A gente mora aqui, vive aqui. Se nós não cuidarmos, quem vai cuidar?”, afirma Osvaldo. O trabalho rendeu prêmios nacionais e internacionais, como o Mondial du Fromage.
O movimento iniciado em Alagoa se espalhou por Minas. Levantamento da Emater-MG, concluído em 2024, identificou 32.615 unidades de processamento em 737 municípios, responsáveis por mais de 148 mil toneladas de alimentos em 2023. As agroindústrias familiares representam 98,1% desse total, confirmando o caráter doméstico e artesanal da produção no estado. Para os técnicos, transformar o próprio leite em queijo, doce ou iogurte reduz a dependência externa e fortalece as cadeias curtas de comercialização, exatamente como deseja Elton. Assim, o produtor deixa de ser apenas fornecedor de matéria-prima e assume papel estratégico na permanência das famílias no campo, apostando na diversificação.
O Fogão a Lenha Resiste
Como dizia Guimarães Rosa, “Minas são muitas; porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais”. Entre essas faces, a cozinha mineira ocupa lugar de destaque como uma das principais expressões culturais do Brasil. Ela traduz modos de vida, vínculos comunitários e uma tradição de hospitalidade que atravessa gerações.
Não por acaso, cidades como Belo Horizonte, Ouro Preto e Tiradentes tornaram-se referências no turismo gastronômico nacional, oferecendo aos visitantes, além da refeição, uma verdadeira imersão na cultura mineira. Produtos tradicionais, como a produção do Queijo Minas Artesanal, ampliam essa visibilidade e reforçam a reputação internacional da gastronomia do estado.
No percurso de preservação da identidade mineira, Dona Lucinha, hoje eternizada na estátua de bronze do Mercado Central de Belo Horizonte, teve papel decisivo na afirmação culinária da região desde os anos 1950. Foi ensinando crianças da zona rural do Serro a reconhecerem o valor de suas hortas, frutos e costumes que Maria Lúcia começou a ganhar projeção, recebendo convites para participar de festivais gastronômicos no Brasil e no exterior, ainda antes de inaugurar seu restaurante. A casa aberta em 1990 permanece viva 35 anos depois, sob o cuidado de sua filha, Márcia Nunes, que continua o legado iniciado pela mãe. “O mineiro é ligado à cozinha de forma umbilical”

A cozinha mineira é indissociável de suas raízes africanas, indígenas e europeias. Historiadora e gestora do tradicional Restaurante Dona Lucinha, Márcia Nunes costuma ilustrar essa fusão com o frango com quiabo e angu: o frango europeu, o quiabo africano e o angu indígena convivendo no mesmo prato. A partir dessa identidade, ela divide a culinária mineira em duas vertentes.
A primeira é a cozinha tropeira, moldada pelas restrições de um povo em constante deslocamento e sem acesso a ingredientes frescos. Já na cozinha da fazenda, o angu e a farinha de milho eram indispensáveis. Dela vieram as quitandas, as hortas, a valorização da carne suína e a forte tradição leiteira.
Em um cenário global marcado pelos impactos das mudanças climáticas e pela industrialização alimentar, como reforça Nunes, a cozinha do estado preserva uma herança artesanal sustentada pelo campo e pelos pequenos produtores. É pela relação direta com a terra que permanecem vivos os sabores, os gestos e os modos de fazer que definem a identidade alimentar do estado. “O primeiro ingrediente que se põe na panela é o amor”
A boa comida mineira nasce do cuidado, de ingredientes simples, de preparos lentos e do respeito por quem planta e por quem cozinha. Na visão de Vani Pedrosa, esse vínculo afetivo explica por que a culinária local se tornou símbolo de acolhimento:
A cozinha mineira funcionava como uma verdadeira sala de visita. Era por ela que as pessoas eram recebidas, enquanto o ato de cozinhar acontecia ali mesmo, quase como um espetáculo, com o aroma guiando a chegada de quem entrava”.
A relação entre identidade e produção é reforçada por Cristiane Viana, pesquisadora da Epamig. Ao afirmar que “tudo o que está na mesa do consumidor recebeu atuação da Epamig”, ela destaca que preservar a culinária mineira hoje também significa enfrentar os desafios impostos pelo clima.
Segundo Viana, esses esforços são fundamentais para manter viva a comida de Minas: “Buscamos garantir resiliência produtiva sem abrir mão da qualidade. É uma forma de proteger não só o produtor, mas o sabor que chega ao prato do mineiro”.

Assim, tradição e ciência se encontram nas panelas, nos pastos e nas lavouras de Minas Gerais. Enquanto a cozinha mineira guarda memórias afetivas que atravessam gerações, instituições como Epamig, Embrapa e Emater atuam nos bastidores para assegurar que os ingredientes que compõem essa história continuem, apesar da mudanças climáticas, existindo – e resistindo – no futuro.
Esta reportagem foi produzida pelos alunos Alice Oliveira, Ana Carolina Maia Gonzalez, Ilana Penido, Maria Eduarda Abranches, Mariele Ferreira e Victor Kauffmann, para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, sob a supervisão da professora Nara Lya Cabral Scabin.




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