Você pode ligar para a minha mãe? Ela mora em Brasília, é DDD 61″.
Hesitei por um instante, olhei ao redor. Estávamos só nós dois, sentados em um banco de madeira na porta do CAPS. Peguei meu telefone e fiz a primeira ligação, mas foi em vão: caiu na caixa postal. Tentei mais uma vez e ela atendeu. A voz tinha um tom cansado, como se já esperasse por uma ligação de um número desconhecido. “Mãe, eu caí de novo”. Um silêncio se seguiu. “O que você quer que eu faça?”, ela perguntou, com uma voz de quem tinha pressa. “Liga pro pastor, por favor”. Ele queria ajuda para retornar a um Centro Terapêutico ligado a uma igreja evangélica, onde já havia sido internado anteriormente. A mãe, no entanto, disse que ele não seria aceito lá novamente e pediu para desligar, pois precisava voltar ao trabalho. Gabriel* lamentou ter xingado a esposa do pastor, algo que parecia ser imperdoável para ele.
Este breve episódio é apenas uma das milhares de histórias de pacientes que buscam apoio na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), uma política nacional de saúde mental, onde o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é um dos serviços centrais. Gabriel se aproximou de um repórter da nossa equipe e pediu ajuda enquanto aguardávamos uma psicóloga, que nos receberia para uma visita à unidade. Diante de negativas institucionais, nós nos reservamos ao direito de dizer apenas que o local visitado é um CAPS AD, um Centro de Atenção Psicossocial para Tratamento do Uso Abusivo de Álcool e Drogas, da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Mas, afinal…
Do viral à reflexão
Nos últimos meses, tem sido comum encontrar memes, piadas e virais nas mídias sociais relacionados ao CAPS e à saúde mental. Provavelmente você já se deparou com um conteúdo desses, como “eu e minha amiga no CAPS” e “O CAPS no seu dia mais fraco”. Utilizaremos, neste primeiro momento, a sigla CAPS como metonímia – associando o termo a toda e qualquer instituição pública de saúde mental. Mas continue lendo a reportagem para entender as semelhanças e diferenças entre as diversas unidades de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS).
As associações do CAPS com os memes são variadas, mas todas têm algo em comum: a relação direta com a “loucura” e uma possível identificação imediata, afinal, somos um dos países que mais sofre com doenças mentais. Tudo proporcionado pela rapidez de proliferação de conteúdos no universo digital memético e, claro, de uma explosão social de transtornos psicológicos e busca por diagnósticos, em certo ponto, banalizados, que se intensificou desde a pandemia de covid-19. Sem contexto e profundidade, esses conteúdos alastram estigmas enraizados sobre a saúde mental, a psiquiatria e seus cuidados.
O Brasil lidera em número de casos de ansiedade em todo o mundo, com 9,3% da população afetada, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar desse número alarmante, apenas 5,1% das pessoas têm acesso à psicoterapia, indicada como tratamento inicial nesses casos. Em uma sociedade marcada por desigualdades sociais, aqueles sem recursos para a saúde privada deveriam poder contar com o sistema público para o tratamento de problemas mentais. Isso realmente acontece?
Em grupo, fomos para a rua, para a internet, para consultórios psiquiátricos, órgãos burocráticos e também para os espaços onde é construída a ideia do que é o CAPS.
Acompanhe-nos nesta jornada!
Quando o CAPS foi criado?
Para compreender o conceito atual do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), é necessário explorar como a “loucura” tem sido tratada ao longo do tempo, especialmente no contexto ocidental. Na Grécia Antiga, por exemplo, o “louco” era visto como alguém poderoso, com uma conexão próxima aos deuses e até certo prestígio social. Esse olhar mudou drasticamente com o passar dos séculos, especialmente nos manicômios dos séculos XIX e XX, onde o tratamento da saúde mental assumiu uma dimensão opressiva, conforme tratado neste manual de Saúde Mental da UFOP.
Na Idade Média, sob o domínio psicológico e social da Igreja, a loucura passou a ser associada a fenômenos religiosos como possessões demoníacas, e tratada até mesmo nos tribunais da Inquisição. Com o avanço dos séculos, embora o tratamento da loucura tenha mudado de aparência, continuou a ser desumanizante. Somente no século XVIII, com Phillipe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, a loucura começou a ser entendida como doença. Entretanto, essa nova visão não significou, de imediato, uma humanização dos tratamentos. Era apenas o início das terapias e do olhar científico sobre um fenômeno antes ignorado. Mesmo assim, os “alienados sociais”, como eram chamados, continuavam segregados e submetidos a terapias moralmente rígidas e excludentes.
Para compreendermos o tratamento atual do sofrimento mental, é essencial revisitar uma página importante da história recente da psiquiatria: a Reforma Psiquiátrica. Esse movimento, iniciado nos manicômios italianos e liderado pelo psiquiatra e médico neurologista Franco Basaglia, contestou a cultura manicomial dominante até então, tão presente na literatura e no cinema. Basaglia acreditava que, para cuidar da saúde mental, era essencial entender o ambiente em que a pessoa vivia. Ele via o isolamento nos hospícios como algo que só aumentava o sofrimento, por isso, defendia que o cuidado tinha que ser mais integrado, que olhasse para a pessoa e sua relação com a sociedade.
Segundo o psiquiatra João Pedro de Castro, que atua na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS):
O manicômio cumpria essa função de instituição total, que cuidava de toda a vida do sujeito. Ele definia quando a pessoa comia, trocava de roupa, tomava banho ou não, o que ela comia, seu corte de cabelo, a roupa que vestia… Enfim, era um horror, né? Não existia autonomia nenhuma”.
Esses manicômios, com práticas hoje vistas como desumanas, simbolizavam o que havia de mais segregador no cuidado psiquiátrico, isolando aqueles considerados fora do “padrão” social. No livro “Holocausto Brasileiro”, da premiada jornalista Daniela Arbex, há relatos de pessoas internadas em manicômios no interior, muitas vezes sob acusações que hoje parecem absurdas, como infidelidade ou orientação sexual.
Basaglia teve um papel essencial para trazer ao Brasil a contestação dos moldes psiquiátricos tradicionais. Em 4 de julho de 1979, durante uma visita para uma série de palestras e eventos, o psiquiatra se comoveu profundamente com a situação do Hospital Colônia de Barbacena, o que contribuiu para impulsionar o fechamento deste hospital psiquiátrico no ano de 1996.
Novos paradigmas: a Reforma Psiquiátrica e o fim da abordagem hospitalocêntrica
A Reforma Psiquiátrica no Brasil começou em 1989, proposta pelo deputado Paulo Delgado. Todavia, foi apenas em 2001 que a Lei 10.216, de 6 de abril, foi sancionada, estabelecendo mudanças no modelo assistencial de saúde mental no Brasil, entre elas o fechamento gradual de manicômios. Algumas diretrizes desta lei são fundamentais para entender as mudanças nos tratamentos psiquiátricos. Estabeleceu-se, entre outras garantias, que a pessoa com transtorno mental, “sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno (…)”, deve ser “tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade [art. 2º, § II]”., conforme o segundo parágrafo do 2° artigo da lei.
Essa legislação reflete a intenção do legislador de envolver a família e a sociedade como parte integrante do processo de tratamento, reforçando o compromisso do Estado em oferecer um cuidado digno e inclusivo.
Em 2002, o Ministério da Saúde implantou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para substituir os hospitais psiquiátricos, oferecendo atendimento em todo o país. No entanto, o primeiro CAPS surgiu em 1986, em São Paulo, denominado Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, mais conhecido como CAPS da Rua Itapeva.
CERSAM é o novo CAPS: por dentro da realidade em BH
Diferente das outras regiões do país e do estado, na cidade de Belo Horizonte, a estrutura das instituições públicas de saúde mental tem algumas diferenciações. A começar pelo nome da sigla CERSAM: Centro de Referência em Saúde Mental. “Pioneirismo e criatividade! Eu nem sei te falar por que é diferente, de tão acostumada que eu sou com a palavra CERSAM, então, é algo que foi muito inovador mesmo, desde o início”, informou Renata Mascarenhas, Diretora de Assistência à Saúde da Secretaria Municipal de Belo Horizonte, quando indagada sobre a diferenciação do nome da sigla da capital para outras regiões.
Não foi exatamente fácil entender por que a nomenclatura em Belo Horizonte é diferente do restante do país. Em uma pesquisa em reportagens antigas encontramos a informação de que, na verdade, a diferença se deu antes da criação do CAPS em Minas Gerais. O secretário de saúde de Belo Horizonte, de 1993 a 1997, Cézar Campos, implementou os Centros de Referência em Saúde Mental e ajudou a elaborar a Lei Estadual 11.802/1995, conhecida como Lei Carlão.
Hoje, Belo Horizonte continua a seguir essa estrutura nominal, com nove CERSAMs, distribuídos em regionais: Norte, Pampulha, Venda Nova, Oeste, Leste, Barreiro e Nordeste, além dos CERSAMs AD, que são especializados para tratamento de álcool e demais drogas, também divididos em regionais: Barreiro, Nordeste, Pampulha e Pampulha-Noroeste. Outro braço muito importante são os CERSAMIs, que são responsáveis pelos atendimentos de crianças e adolescentes. Em Belo Horizonte são três: Noroeste, Nordeste e Centro-Sul.
Por favor, não toque. Isso é terapia artística!
À esquerda da recepção onde estávamos aguardando, havia um pequeno altar. Ainda não era possível identificar do que se tratava. Pensamos que fosse uma igreja, mas era uma espécie de maquete do CERSAM AD, feita por um antigo e falecido paciente. Infelizmente, esse paciente já faleceu e não está mais aqui para nos contar sobre sua obra de arte e sobre sua própria história. Entretanto, sua memória foi mantida, sendo possível entender e sentir seus sentimentos por meio de sua escultura.
O termo “outras drogas” na sigla do CERSAM AD, se refere a outros tipos de entorpecentes, como dependência em medicamentos para viver, dormir e acordar, como explicou Ana Regina Oliveira, uma das psicólogas que nos recebeu no Cersam AD Nordeste, no bairro São Paulo. “Hoje, ampliamos o leque, e recebemos até mesmo pessoas que não conseguem viver sem uso de medicamentos”.
Esse CERSAM AD tem em seu DNA uma ideia clara de liberdade, estampada em artes por todo o espaço. A proposta de tratamento é integrativa, sem coerção ou exclusão do paciente de seu meio social e das relações de família e vizinhança – mesmo que a vida fora dali seja difícil. “A loucura precisa estar inserida na sociedade”, afirmou com convicção a psicóloga, defensora da reforma psiquiátrica.
Pelos corredores, encontram-se pinturas, esculturas, tecelagens e artesanatos feitos com uma variedade de materiais, resultado do trabalho intenso desenvolvido na unidade, o que lhe confere um ar vibrante. Essas obras vinham da oficina artística, ativa por oito horas, todos os dias. Até o altar que avistamos, soubemos depois, era uma homenagem a São Doido. Esse “santo” acabou se tornando símbolo do espaço, e tem até mesmo uma oração própria e seguidores entre os pacientes. É como se ali, junto ao tratamento, também houvesse espaço para a fé.
O funcionário responsável pelo direcionamento da oficina é o artista plástico Glaicon Webert, que, entre uma demanda e outra, conseguiu nos dar um pouco de atenção. A oficina era bem iluminada, com uma ampla janela voltada para o quintal, onde outros pacientes conviviam. A parede ao fundo estava coberta de imagens, recortes e colagens; no centro, uma estação de trabalho onde dois pacientes, à vontade, criavam suas obras com os materiais disponíveis.
“Existe aqui uma ideia de trabalho coletivo”, disse Glaicon, pegando uma escultura feita a partir de tacos de chão, com um brilho singular. “Às vezes, alguém começa um trabalho, outro prossegue, e um terceiro finaliza. Não falamos em autoria única. O espaço é livre; eles ficam o tempo que desejarem e trabalham quando quiserem”.
Todo o trabalho que está sendo desenvolvido pelos CERSAMs está alinhado com o que nós temos de melhor evidência para o tratamento, por exemplo, de sintomas negativos da esquizofrenia. Na esquizofrenia, a gente pensa muito em delírio, alucinação… Mas tem sintomas que vêm da ruptura do laço social, o esquizofrênico começa a se isolar, para de frequentar a igreja, para de namorar, de trabalhar e vai se isolando. As intervenções que têm mais evidências para resolver isso são as psicossociais dentro dos centros de convivência, a residência assistida e a arte-terapia”, frisou o psiquiatra do CERSAMi, João Pedro de Castro.
Quando a arte e a loucura se encontram: uma revolução brasileira chamada Nise da Silveira
A relação entre arte e loucura é um tema que permeia a história da psiquiatria e, no Brasil, ganhou um marco com a contribuição pioneira da psiquiatra Nise da Silveira. Atuando no Rio de Janeiro a partir da década de 1940, Nise rejeitou os métodos tradicionais e violentos da psiquiatria de sua época, como o eletrochoque e a lobotomia, e propôs uma abordagem inovadora, baseada na terapia ocupacional e na livre expressão artística.
Inspirada pelas teorias do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, Nise acreditava que a expressão artística permitia aos pacientes externalizar seus sentimentos, traumas e conflitos internos de maneira simbólica. No Hospital Pedro II, onde trabalhou, fundou o ateliê de pintura e modelagem que mais tarde daria origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, um acervo com milhares de obras produzidas por seus pacientes. Entre as técnicas promovidas, destacam-se a confecção de mandalas e outras formas de arte que resgatam a criatividade, a subjetividade e o potencial de cura pela expressão afetiva.
Sua postura desafiadora frente à psiquiatria tradicional fez com que fosse vista como rebelde e até mesmo perigosa. Durante o governo de Getúlio Vargas, Nise chegou a ser presa por suas ligações com ideias socialistas, mas jamais abandonou seus princípios humanitários. Ao longo do tempo, suas ideias ganharam reconhecimento, e ela passou a ser considerada uma das grandes revolucionárias da psiquiatria no Brasil.
Nise da Silveira também foi uma defensora incansável da desinstitucionalização e da humanização do tratamento psiquiátrico. Seus métodos não apenas transformaram vidas, mas também ajudaram a construir um novo olhar para os pacientes, enxergando-os não como doentes a serem controlados, mas como indivíduos com histórias, potencial criativo e capacidade de superação.
Hoje, Nise é lembrada como uma das figuras mais célebres da medicina brasileira, e sua obra continua a inspirar abordagens mais humanas e sensíveis na saúde mental. Conheça mais sobre a história dessa psiquiatra que revolucionou os métodos carcerários da psiquiatria no Brasil e trouxe a arte como um caminho para a cura e a reintegração social.
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Fotos: João Victor Borges
Cuidados a longo prazo: da infância para vida toda
As crianças e adolescentes passaram a se tornar sujeitos de direitos a partir do surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA), marco regulatório de direitos humanos para essa faixa etária. Cabe também ao SUS promover políticas públicas e sociais para promoção e proteção de saúde para essa população. Dentro da RAPS, em Belo Horizonte, os CERSAMIs são essas instituições voltadas para o cuidado infanto-juvenil (0 a 18 anos). Eles desempenham um papel crucial no modelo integrativo de saúde mental proposto pela Rede de Atenção Psicossocial, considerando que o sofrimento mental, cada vez mais presente entre as novas gerações, exige uma atenção especial e urgente.
Luiz Barbosa, psiquiatra em um CERSAMI da capital mineira, explica que esses centros surgem como uma alternativa aos antigos hospitais psiquiátricos. “O foco é o atendimento a crises e urgências psiquiátricas, como episódios maníacos, crises depressivas graves, situações pós-tentativas de suicídio, auto-mutilação, mudanças abruptas de comportamento, agressividade e uso de substâncias. O objetivo é acolher a criança ou o jovem durante a crise e reinseri-los na rede de cuidados”.
O CERSAMI realiza atendimentos sem a necessidade de agendamentos, contando com uma equipe multidisciplinar 24 horas por dia.
Muitas vezes, as pessoas, por falta de informação, procuram o serviço com queixas que não se enquadram no atendimento emergencial. Nesse caso, a criança é acolhida pela equipe técnica – enfermeiro, psicólogo – e, se necessário, direcionada para outros centros de saúde com planos de tratamento especializados”, completa Luiz Barbosa.
A integração entre diferentes profissionais da saúde, característica essencial dos CERSAMs e CAPS, é uma das bases do sistema de saúde pública mental. Psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e enfermeiros trabalham lado a lado, construindo planos terapêuticos de forma horizontal, com a supervisão de casos mais complexos. “Além das questões clínicas, a dimensão social dentro do CERSAMI é constantemente abordada”, ressalta o psiquiatra, destacando a importância de tratar não só o sintoma, mas também o contexto e as relações sociais que envolvem o paciente.
O aparelho funciona de forma intersetorial, em diálogo com outros órgãos da rede, municipais e estaduais. Como explica o psiquiatra infantil, o contato com as escolas, por exemplo, é fundamental: “O ambiente escolar pode ser um ambiente protetor, mas também pode ser um ambiente ligado a várias comorbidades psiquiátricas. Além disso, a escola contribui muito para o processo de saúde-doença da criança e para compreensão diagnóstica. Esse contato com a escola é frequente, por vezes solicitamos relatórios e até mesmo visitamos as escolas”, frisou. Para a garantia e manutenção dos direitos da criança e do adolescente, o CERSAMI também está em constante diálogo com o Conselho Tutelar, para situações em que há indícios de abuso, além de ONGs e instituições filantrópicas que oferecem atividades para os pequenos pacientes.
Além dos desafios de fiscalização, regulamentação e de apoio do próprio estado, Luiz Barbosa destaca a complexidade e as várias dimensões que os obstáculos enfrentados atualmente apresentam:
A forma como temos criado e educado as crianças e os adolescentes é o principal ponto de análise dos profissionais para que tenhamos um resultado preciso da situação do paciente”
O profissional reforça que a hiperconectividade simultânea é um dos fatores que afeta diretamente o desenvolvimento e a estruturação da personalidade dessas crianças, o que exige dos profissionais da saúde mental uma série de estudos sobre o impacto do acesso à internet e o contato cada vez mais precoce com telas.
Muitos transtornos psiquiátricos são desenvolvidos ao longo da vida do paciente, por isso, a família é o principal protagonista e intermediador da situação de crise na saúde mental. No caso das crianças e adolescentes, explicar para os pais sobre o impacto severo e negativo do contato com telas e internet precocemente acaba sendo um dos maiores desafios para os psicólogos, depois de fazer o intermédio do paciente ao diagnóstico. Conforme explica o psiquiatra infantil Luiz Eduardo Barbosa, o problema também está associado às condições socioeconômicas das famílias, de baixa renda, que têm mais dificuldade com o cenário de uma vida sem telas e, normalmente, são famílias que não contam com rede de apoio
Nem tudo são flores: desafios e dificuldades enfrentados pela rede de apoio social
Os desafios enfrentados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) estão intrinsecamente ligados a uma problemática estrutural mais ampla: a estagnação do orçamento geral do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre 2013 e 2023, o orçamento do SUS teve um crescimento irrisório de apenas 2,5%, de acordo com dados do Instituto de Estudos para a Saúde Pública (IEPS). Esse número não acompanha as demandas crescentes da população, nem a inflação acumulada no período, evidenciando uma ausência de priorização nas políticas públicas de saúde.
No contexto da saúde mental, os efeitos dessa insuficiência orçamentária são ainda mais significativos. Serviços essenciais, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outras unidades da RAPS, enfrentam dificuldades em expandir e qualificar o atendimento. A sobrecarga de profissionais, a escassez de recursos materiais e a falta de integração entre os níveis de atenção resultam em um atendimento fragmentado e insuficiente para responder às necessidades da população.
Além disso, a estagnação do orçamento agrava as desigualdades regionais. Em áreas periféricas e regiões menos desenvolvidas, o acesso a serviços de saúde mental é ainda mais limitado, perpetuando um ciclo de exclusão e vulnerabilidade. Essa situação também reflete uma visão histórica de subfinanciamento da saúde mental no Brasil, frequentemente colocada em segundo plano nas políticas públicas de saúde.
Os números impactam diretamente nos investimentos para a saúde mental pública. Segundo o Desinstitute, uma ONG focada na defesa dos direitos humanos e no cuidado em liberdade, houve um retrocesso na estrutura pública de atendimento desde 2019, quando as comunidades terapêuticas — focadas na tríade de laborterapia, abstinência e orações — passaram a ser regulamentadas pela Nova Lei Antidrogas (Lei nº 13.840). Estes centros, em sua maioria ligados a organizações religiosas, recebem subsídios governamentais, mas não oferecem assistência médica integrada e, geralmente, não são acessíveis gratuitamente.
Dados do Ministério da Cidadania revelam que o financiamento para essas comunidades terapêuticas dobrou de 2019 a 2020, saltando de R$157 milhões para R$300 milhões, acompanhado de um aumento nas denúncias sobre a falta de transparência desses recursos, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Apesar dos esforços, nossa equipe não obteve retorno do Desinstitute nem de dois grandes centros terapêuticos contatados em Minas Gerais. A história de Gabriel*, mencionada no início, se encaixa aqui: de família evangélica, ele foi enviado a uma dessas instituições como alternativa rápida e acessível. De acordo com o último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2017, existem cerca de 1.963 comunidades terapêuticas no Brasil, muitas com perfis que ecoam a experiência de Gabriel. Porém, há uma parcela considerável de pacientes que não têm nem mesmo o recurso familiar-religioso do nosso personagem. É o caso de T., J. e M., que têm 34, 35 e 42 anos, respectivamente. Os nomes foram omitidos para preservar a privacidade dos pacientes.
Por meio de histórias humanas, dados e análises históricas, revela-se o impacto transformador dos CAPS e CERSAMs na tentativa de substituir a lógica manicomial por um modelo de cuidado em liberdade e integração social. Porém, como mostrado, o caminho é repleto de obstáculos: desde a estagnação orçamentária até retrocessos que priorizam modelos de tratamento menos humanizados, como as comunidades terapêuticas. Entre memes e estigmas, o CAPS segue sendo um espaço que vai muito além das telas: um ponto de acolhimento, cuidado e transformação. No fim, a saúde mental nunca foi piada e pode ser a chave para um futuro mais humano.
Acesse os perfis @colabpucminas nas mídias sociais e explore histórias reais, depoimentos de quem viveu essa transformação e, melhor, conheça a linha do tempo que deu origem a um dos principais sistemas de acolhimento e apoio às comunidades, porque a compreensão começa aqui, mas pode ir muito mais longe.
Reportagem desenvolvida por João Victor Borges, Júlia Sobral, Lavínia Fernandes, Mateus Vieira e Verônica Lorena para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da prof.ª Verônica Soares da Costa.
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