Na década de 1990, era comum que a unidade das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Caldas (MG), convidasse escolas para conhecerem a mina Osamu Utsumi, primeira unidade de extração e beneficiamento de minério para a produção de concentrado de urânio, conhecido como yellow cake, no Brasil. É o que conta a professora Lúcia Helena Garcia, moradora da cidade, sobre a barragem de urânio. Quando foi a vez da escola de suas filhas visitar o local, Lúcia acompanhou a excursão e achou estranho quando ouviu de um funcionário que a empresa passaria a processar materiais para fabricar produtos, ao invés de descomissionar a mina, isto é, a desativar a estrutura – que seria sua obrigação.
“Começamos a desconfiar que esse processamento seria uma desculpa para trazer mais material de São Paulo e também para transformar a nossa região, a unidade da INB, um depósito de rejeitos radioativos, rejeitos de Angra e de tudo quanto é lugar. Nós virarmos o lixo do lixo do Brasil. E quem sabe o lixo do mundo.”, afirma a professora. Pouco tempo depois, Lucia e mais quatro moradores da cidade começaram uma intensa mobilização contra o urânio na região, que continua até hoje.
A unidade tem estocados 12.500 toneladas de Torta II, resíduo radioativo do tratamento químico do minério monazita. Esse material foi transferido da Unidade de Descomissionamento de São Paulo (UDSP), em Interlagos, que também guardava materiais radioativos de uma mina. Esse composto era utilizado para fazer imãs, supercondutores, cerâmicas e ligas metálicas. Em 2021, a empresa queria, novamente, transferir 1.179 toneladas de rejeito radioativo de Interlagos para Caldas, o que foi negado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em uma audiência composta por autoridades e também ativistas da cidade.
Mas os problemas vão além do armazenamento de Torta II. Criada para abastecer Angra I, a mina produziu concentrado de urânio de 1982 a 1995, quando as atividades cessaram definitivamente devido às características do minério e às condições do mercado, segundo a INB. Entretanto, nesses 29 anos, nada foi feito para o descomissionamento da unidade. Para a população, ficou uma herança: “lama radioativa ainda existente na cava da mina; bacias de contenção lotadas de rejeito; galpões e uma fábrica de beneficiamento de minério desativada”, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Impactos da mineração de urânio em Caldas
Silvana Torquato, engenheira florestal e ativista da Articulação Antinuclear Brasileira, foi uma das moradoras de Caldas mobilizada pelo relato da visita de Lúcia às instalações da INB em Caldas na década de 1990. Mesmo não morando mais na cidade, ela comenta que “as coisas ali são bastante difíceis, bastante assustadoras”, por causa do material radioativo.
Segundo a engenheira, em caso de transbordamento ou rompimento da barragem de Águas Claras, uma das que contém o rejeito da mina Osamu Utsumi, o fluxo dos rios contaminaria municípios não só em Minas Gerais, mas também em São Paulo, e poderia chegar até à Bacia do Rio de Prata, perto da divisa com o Uruguai e a Argentina.
“Se houver um efetivo rompimento, essa água vai com violência causar um estrago físico, mas você não vai ter só lama, você vai ter lama com uma alta concentração de partículas radioativas. Então, o potencial é ainda mais devastador do que Mariana, porque você vai ter um impacto físico e você vai ter também essa contaminação química, radioativa”, diz Silvana.
A barragem de Águas Claras é classificada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) como nível de alerta, o que significa que foi detectada alguma anomalia, mas não há risco imediato à segurança.
Segundo a Comissão de Pesquisa e Informação Independentes sobre Radioatividade (CRIIRAD – sigla para, em francês, Commission de Recherche et d’Information Indépendantes sur la Radioactivité), cerca de 85% da radioatividade original permanece na mina, na forma do estéril e do rejeito – materiais descartados, respectivamente, antes e durante/após o beneficiamento, e que podem ser depositados em barragens ou pilhas.
Flávia Nóbrega, mestre em engenharia mineral, explica que, em Caldas, a lavra era associada a sulfetos, substâncias que geram drenagem ácida quando em contato com água e oxigênio – o que não só pode matar formas de vida aquáticas como pode tornar a água imprópria para o consumo. “Sendo assim, uma sucessão de passivos pode se formar”, diz. Assim como Silvana, Flávia afirma que um acidente na barragem poderia gerar um grande impacto ambiental causado, principalmente, pela contaminação dos cursos d’água da região.
A situação de incerteza é agravada pelo fato de poucos pesquisadores terem estudado a unidade de Caldas, o que faz com que muitos impactos da mineração de urânio e armazenamento de Torta II na região ainda sejam desconhecidos. Além disso, muitos trabalhadores da mina já faleceram.
Renan Finamore, doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), pesquisou os impactos na saúde humana e no meio ambiente da mineração de urânio em Caetité (BA), única em atividade no Brasil. A mina está no sertão baiano, região em que muitas famílias dependem das águas de poços e cisternas. Segundo o pesquisador, lá já houve denúncias de contaminação de poços de água devido à concentração de radionuclídeos, que são átomos instáveis que emitem radiação durante o processo de decaimento radioativo.
Renan explica que a contaminação também pode ser atmosférica e ocorre tanto pela explosão de rochas quanto pelo beneficiamento do material. Nesses processos, partículas são soltas e se acumulam não só em leitos de rio, mas também nas calhas das casas. Além disso, esse material pode ser inalado e causar problemas de saúde.
Questões variadas relacionadas à mineração no local apareceram na mídia nas últimas décadas. Entre elas, armazenamento de forma inapropriada de rejeitos, o que possivelmente levou ao vazamento do material em rios; investigação da contaminação de trabalhadores nas instalações; relatório da empresa que afirma que trabalhadores foram submetidos a doses de radiação insatisfatórias e houve incorporação de radiação em doses maiores do que o limite; e tambores de Torta II estocados sem proteção.
Em 2019, a INB foi condenada pela Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) a indenizar um mecânico que trabalhava na unidade de Caldas. Na ocasião, o trabalhador relatou que a empresa não fornecia os equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados e não entregava aos empregados os resultados dos exames periódicos de saúde. “No caso, o ministro [Cláudio Brandão] considerou que a conduta está configurada na negligência da empresa e que o dano é o risco potencial que o ex-empregado corre, pois alguns de seus colegas morreram ou estão doentes em razão da exposição à radiação”, segundo o TST.
Moradores da cidade, que preferiram não ser identificados, confirmam que a empresa não divulgava os exames. Eles dizem perceber uma alta incidência de casos de câncer na região, bem como alta mortalidade de quem trabalhou na unidade. Segundo Renan Finamore, o mesmo cenário é observado em Caetité: são diversos os relatos de irregularidade operacional, vazamento de material e condições de trabalho precárias, assim como tratamentos diferenciados para trabalhadores efetivos e terceirizados. Na cidade baiana, a população também compartilha da percepção do aumento do número de casos de câncer após o início da extração de urânio.
Finamore esclarece que uma questão que enfraquece denúncias e pesquisas sobre a contaminação de trabalhadores da INB é a ausência de nexo causal, já que existe um tempo de latência, que pode ser de décadas, entre a exposição e a manifestação de efeitos.
“Quando a gente está falando de mineração de urânio, é uma configuração de exposição que é diferente, por exemplo, de uma situação de um desastre nuclear num reator ou a explosão de um artefato bélico nuclear. A nossa preocupação maior é a situação de exposição a baixas doses de radiação por um longo período, porque esse tipo de exposição é que potencializa o risco da pessoa desenvolver câncer”, afirma o pesquisador.
Nesse contexto, surge o questionamento: por que órgãos reguladores permitem que o descomissionamento seja adiado por décadas?
Ao contrário da mineração de metais não radioativos, a divisão de funções entre órgãos é complexa. Desde 2022, a responsabilidade pela regulação e fiscalização de barragens de rejeitos de instalações industriais nucleares passou da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para a Agência Nacional de Mineração (ANM). A CNEN continuou com as funções de controle radiológico e proteção radiológica ambiental e ocupacional das barragens.
O licenciamento ambiental passa pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que disse, em nota, que acompanha o descomissionamento e “está elaborando um parecer técnico que resultará na emissão da Licença de Operação, com todas as obrigações que deverão ser cumpridas pela empresa responsável”.
De acordo com a agência, a descaracterização da barragem só é obrigatória para as construídas pelo método a montante, em que os rejeitos fazem parte da própria estrutura da barragem – como era o caso das que romperam em Mariana (MG) e Brumadinho (MG). Nas demais, a descaracterização é facultativa, mas pode ser imposta pelo órgão fiscalizador (a ANM).
Segundo Paulo Renato Barbosa Marinho, coordenador de Instalações do Ciclo do Combustível Nuclear da CNEN, o descomissionamento deve partir do operador: “No caso, a INB tem que elaborar um plano de descomissionamento. A CNEN vem cobrando esse plano de descomissionamento ao longo dos anos”, afirma.
Marinho diz que o controle ambiental radiológico não demonstra ter implicações ambientais na região, mas confirma que, caso a barragem rompa, haverá um impacto radioativo de grandes proporções: “Existiria um volume grande de material radioativo contido na barragem que em caso de rompimento contaminaria uma área considerável com radionuclídeos. Seria uma área que necessitaria de remediação e isso não seria uma situação simples de se resolver.”
Em nota, a INB declarou que “é realizado o controle dos materiais remanescentes da mineração e beneficiamento de urânio através do tratamento de água, do gerenciamento de resíduos e rejeitos sólidos, da gestão de segurança de barragens, da gestão ambiental da área, incluindo recomposição da vegetação, da gestão da segurança dos trabalhadores e do monitoramento radiológico e ambiental da região”. A empresa afirmou que diversas ações de descomissionamento já estão sendo feitas, como a desmontagem e demolição de áreas industriais.
Segundo a empresa, o gasto aproximado para o descomissionamento apenas das barragens seria de R$ 700 milhões, e que “para 2023 e 2024, todos projetos prioritários tiveram andamento e orçamento aprovado conforme cronograma e o mesmo está previsto para 2025”.
Ela é uma estatal não dependente da União e controlada pela Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional S.A. (ENBPar), que tem como principais fontes de receita a Itaipu e a Eletronuclear. A última, responsável pelas usinas nucleares de Angra 1 e 2, e pela construção de Angra 3, enfrenta dificuldades financeiras desde, pelo menos, 2023, e acumula dívidas bilionárias.
Reservas de urânio no Brasil e utilização
Sem um histórico de utilização de urânio, foi somente em 1968 que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) assinou um convênio com a Eletrobrás para a construção de uma usina nuclear no país, localizada em Angra dos Reis (RJ). A usina, chamada de Angra I, entrou em operação em 1985 e precisaria de combustível para alimentar seus reatores. Nesse contexto, foi aberta a mina Osamu Utsumi, em Caldas, para produzir yellow cake. Entretanto, esse concentrado de urânio não foi utilizado somente no Brasil.
Em 1981, a proximidade entre o governo militar brasileiro e o Iraque de Saddam Hussein, já oficializada em um acordo comercial, ganhou novos contornos, com a assinatura de um acordo sobre os usos pacíficos da energia nuclear. O decreto determinava que o Brasil enviaria concentrado de urânio para o Iraque – mas não é possível afirmar exatamente o que ocorreu, já que vários detalhes são sigilosos.
“Ainda que, em tese, fosse basicamente para o uso pacífico, é provável que ambos os países tentassem avançar na fabricação clandestina e secreta de armas nucleares – a proliferação nuclear”, afirma Carlos Dominguez Avila, doutor em História com ênfase em Relações Internacionais.
Saiba mais sobre o acordo sigiloso entre Brasil e Iraque na reportagem em áudio abaixo:
Em 1995, a INB decidiu cessar a lavra em Caldas. Entre os motivos, estava a possibilidade de produzir concentrado de urânio mais competitivo no mercado no Projeto Lagoa Real, em Caetité (BA), afirma, em nota, a estatal. Lá, as atividades ocorreram de 2000 a 2015, tendo sido interrompidas após a capacidade de extração a céu aberto da mina Cachoeira se exaurir. Em 2020, a lavra recomeçou na cidade, mas, dessa vez, na mina do Engenho, onde ocorre até hoje.
Em nota, a INB afirma que parte do combustível das usinas Angra 1 e 2 precisa ser importado, pois a mina de Caetité não supre toda a demanda. Por isso, a estatal mira em uma nova iniciativa: o início da extração de urânio em Santa Quitéria (CE). A empresa diz que o projeto, atualmente em fase de licenciamento, deve produzir 2.300 toneladas por ano de concentrado de urânio e criar 9 mil empregos nas fases de construção e operação, “gerando desenvolvimento em uma região de baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)”.
A decisão é cercada de polêmicas. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) afirma que a instalação da usina pode gerar graves problemas ambientais, principalmente nos recursos hídricos, e que há omissão quanto aos riscos da radiação, além do medo da população com o empreendimento. Por isso, recomendou a órgãos ambientais que o pedido de licença do projeto seja indeferido.
Oitava maior reserva do mundo
O Brasil tem a oitava maior reserva de urânio do mundo, segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB), com recursos em torno de 280 mil toneladas de urânio contido. De acordo com dados da ANM, 144 cidades têm ocorrência de urânio no país. Um fato curioso é que a licença da INB em Minas Gerais está em Santa Bárbara, não em Caldas – a 570 km de distância.
Energia nuclear é o futuro?
O medo da população das cidades de Caldas, Caetité e Santa Quitéria reflete o medo da energia nuclear. Segundo pesquisa de Tariana Machado, pós-doutoranda no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), 51,9% das pessoas têm medo da energia nuclear no Brasil. Durante seu levantamento, ela identificou uma associação frequente entre energia nuclear e dois episódios históricos: o acidente da usina nuclear de Chernobyl, em 1986, e as bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki.
No Brasil, o cenário de um ataque nuclear é improvável, já que o país é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o que o impede de produzir bombas atômicas. "Energia nuclear no Brasil não significa bomba, significa aplicações pacíficas. Átomos para a paz", enfatizou Tariana.
A pesquisadora afirma que há um grande desconhecimento da maioria da população sobre outras aplicações da energia nuclear, como a irradiação de ampolas de vacina, a radioterapia em tratamento de câncer e a irradiação de micro-organismos em obras de arte antigas.
A desinformação sobre o setor é atribuída, por Tariana, à postura adotada por empresas da área para evitar conflitos: “O que falta nas organizações do setor nuclear é elas se familiarizarem com as questões que a sociedade tem em relação a essa energia, porque aí na tua casa pode estar chegando energia nuclear e você não sabe”. A pesquisadora considera que essas companhias precisam dialogar com a população para combater o estigma da energia nuclear.
Alice Cunha, engenheira nuclear e vice-presidente da International Youth Nuclear Congress (IYNC), ressalta as vantagens da energia nuclear, que, além de não emitir CO2 no processo de produção de energia, produz uma quantidade grande de energia com poucos recursos minerais.
O Plano Nacional de Energia (PNE 2050) estima expansão de 8 a 10 GW da energia nuclear no país até a metade do século. Isso porque ela é considerada limpa e tem uma produção constante ao longo do dia, ao contrário das energias de fontes solares e eólicas. Mundialmente, ela está no centro das discussões sobre transição energética.
“Não existe nenhuma fonte energética perfeita. Todas elas impactam o meio ambiente. Então, a gente precisa sempre fazer escolhas e tomadas de decisões onde o impacto é o mínimo. Sem a nuclear, a gente dificilmente vai alcançar os objetivos (do Acordo de Paris, que visa reduzir emissões de gases de efeito estufa)”, afirma Alice.
Reportagem desenvolvida por Lorena Marcelino para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da prof.ª Nara Lya Scabin.
Matéria excelente e necessária. A sociedade precisa conhecer a verdadeira face do programa nuclear brasileiro. Conhecer os riscos para a população e saber a que interesses atende. Parabéns!