Ao entrar na Avenida Augusto de Lima, em Belo Horizonte, à esquerda está o Minascentro e à direita, o Mercado Central. Além de serem dois estabelecimentos muito tradicionais na capital mineira, eles têm mais um ponto em comum: adotam os chamados “Naming Rights”. O termo, criado nos Estados Unidos durante a década de 1970, e que em tradução livre significa “direitos de nomeação”, consiste em associar uma marca a um local ou estabelecimento, seja de natureza pública ou privada. Em Belo Horizonte, no entanto, o cenário tem crescido e já está presente em ambientes como o Mercado Central KTO, na Arena MRV do Atlético Mineiro, no Grande Teatro Cemig do Palácio das Artes, no Cine Theatro Brasil Vallourec, além da estação Central do Metrô de Belo Horizonte, batizada de Estação Central Supermercados BH desde abril de 2024.
Rodrigo Fortini Boschi, professor do curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas e especialista em branding, exalta a ideia e ressalta que ela requer cuidado: “É algo que não é exatamente novo, apesar de, em Belo Horizonte, a gente ter começado a ver isso mais recentemente do que em outras capitais do mundo. É uma estratégia muito eficiente como conexão, experiência de marca e até transferência de valor de marca”. Segundo ele, é preciso tomar cuidado sobre qual é a estratégia da marca propriamente dita. Como qualquer ação de patrocínio (fazendo uma analogia com isso), a marca precisa procurar saber se aquele espaço onde ela está colocando os naming rights tem a afinidade com seus valores e consigo mesma”, explica. Ele destaca ainda, que em geral, o processo é feito com marcas mais conhecidas, mas que na capital mineira, empresas desconhecidas se utilizam disso para “consolidação de marca”, subvertendo essa lógica.
Em mais um passo para facilitar esse tipo de concessão para a iniciativa privada, a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou em segundo turno, em 9 de outubro de 2024, um projeto de lei que permite que espaços públicos também tenham seus nomes vendidos. A prática, até então, comum somente em estabelecimentos já privados, agora pode se estender a lugares administrados pelo Poder Municipal. A principal crítica da bancada opositora ao projeto na Câmara vem de partidos de esquerda como o PSOL e o Partido dos Trabalhadores, que alegam que a Prefeitura de Belo Horizonte precisa investir em equipamentos públicos, para que estes possam funcionar de forma mais eficiente para a população. Por outro lado, os que propõem o projeto, o Partido Novo e o Republicanos, acreditam que a parceria entre público e privado pode fazer com que sejam oferecidos melhores serviços.
Em nota ao Colab, a vereadora Iza Lourença (PSOL) se posicionou:
É um projeto feito para beneficiar as empresas e não a população da cidade. Além de ser de mau gosto, a medida vai causar a descaracterização do nosso patrimônio, a banalização da simbologia dos espaços públicos e uma poluição visual da nossa cidade. Ou seja, não faz nenhum sentido as empresas usarem equipamentos públicos para fazer propaganda sobre seus produtos. Você já imaginou se a gente começa a dar nome de mineradora, que destrói nossas águas, nossa Serra do Curral, para um centro de saúde? Ou nome de locadora de veículo para uma escola municipal? Tem gente que quer legislar para as empresas e não para as pessoas, e, apesar da nossa resistência, foi por isso que esse projeto foi aprovado aqui na Câmara”.
Procurada, uma das autoras do Projeto de Lei, a vereadora Fernanda Pereira Altoé (Novo) por sua vez declarou:
O Projeto de Lei proposto tem como objetivo normatizar a celebração de contratos pelo Poder Público com a iniciativa privada para cessão onerosa de direito à nomeação de eventos e equipamentos públicos municipais, os chamados naming rights.
A proposta estabelece que poderá ser dado naming rights a eventos e equipamentos públicos municipais que desempenhem atividades dirigidas à saúde, cultura, esportes, educação, assistência social, lazer e recreação, meio ambiente, mobilidade urbana e promoção de investimentos, competitividade e desenvolvimento. Dentre outros pontos, o projeto busca criar um regramento para a concessão e determina que deverá haver contrapartidas financeiras ao município pela associação com o nome ou marca.
O uso de naming rights ainda é pouco explorado pelo Poder Público no Brasil, mas já é algo difundido em diversas partes do mundo. Dessa forma, é preciso explorar e difundir essa importante prática, que já vem dando certo em vários países e que permite um aumento de arrecadação pelos governos, sem onerar o cidadão.
Portanto, o projeto busca permitir e normatizar essa ferramenta importante, de forma que o valor pago pelas empresas pode ser revertido em melhores serviços para a população, trazendo benefício para todos e consistindo em uma forma inteligente de gerar recursos para os cofres públicos, sem precisar aumentar impostos ou criar tarifas”.
O Caso Mercado Central KTO

Fundado em 1929, o estabelecimento ocupa um espaço especial no coração dos mineiros e belorizontinos. No começo de sua história, em 7 de setembro daquele ano, foi criado como Mercado Municipal e era administrado pela Prefeitura de Belo Horizonte. Em 1964, o então prefeito Jorge Carone vende o terreno, alegando impossibilidade de administrar o terreno e estava decidido a fechar o Mercado. Para manter o funcionamento, comerciantes se organizaram, criaram uma cooperativa e adquiriram o imóvel.
Neste ano, o aniversário de 95 anos contou com uma surpresa: o Mercado Central passou a se chamar Mercado Central KTO. O novo nome faz referência a uma casa de apostas online, sediada em Malta, país localizado ao Sul da Europa. No Brasil, influenciadores como “Cole Markin”, Rafinha Bastos e Thiago Souza têm parceria firmada com a empresa. Além disso, patrocina jornalistas esportivos mineiros como Guilherme Frossard e Thiago Fernandes.
Para Raí Amorim, herdeiro da “Tradicional Limonada”, a loja mais antiga do espaço, a mudança é extremamente negativa, porque na visão dele, é uma parceria com uma empresa que tem ajudado a destruir famílias pelo Brasil: “Eu acho meio complicado ser uma casa de apostas [a empresa a deter os naming rights]. A gente vê que esse segmento está destruindo várias famílias do Brasil. Infelizmente, é um segmento que está para ser regulamentado, começou a ser regulamentado no ano passado ou nesse ano, eu não sei. Mas a maioria das empresas são empresas de fora, então todo esse dinheiro que está saindo das famílias e indo direto para fora do Brasil, não está sendo nem reinvestido aqui”, opina.
Ele destaca ainda que em nenhum momento os comerciantes foram consultados e que a comunicação da mudança pela administração do Mercado poderia ser mais efetiva: “essa comunicação não foi feita de maneira ampla aos comerciantes e aos associados. O conselho aprovou e os associados, de forma geral, não foram comunicados previamente. Muitos associados ficaram sabendo apenas pela grande mídia um pouco antes e outros ficaram sabendo apenas no dia por conta da troca das placas”, critica Raí. No entanto, a placa a qual o comerciante se refere é um letreiro com “Mercado Central KTO”, instalado no dia 7 de setembro. Ele foi retirado no dia 29 de outubro. Procurada, a assessoria de comunicação do Mercado Central KTO não respondeu ao contato da reportagem.
O que pensam os consumidores?
Entre os consumidores, a repercussão da mudança dividiu opiniões. Para Gilberto Dias, 60, advogado, parte da tradição se perde: “Independentemente da força de quem vai patrocinar ou dar o nome ao local, eu acho meio complicado e tira um pouco a tradição. O Mercado Central de Belo Horizonte, em contas, é 95, né? Então, na realidade, quando você associa um local tradicional a esse a uma marca, eu acho que perde um pouco daquela cultura. Então, eu cresci, tem 60 anos, desde menino, conheci como Mercado Central, eu acho que perde um pouco a tradição. Então, eu sou contra, justamente por isso. Porque traz uma comercialização desnecessária para o mercado”, diz.
Já para o engenheiro Eric Silva, 46, o novo “naming rights” é benéfico: “ Eu acho positivo, eu acho que as empresas precisam criar uma diversificação para poder fazer com que o modelo econômico dela seja sustentável. Então não existe a possibilidade de fazer isso, de fazer esse equilíbrio e balanço econômico sem que a gente tenha patrocinadores para poder fazer esse tipo de atividade”, explica.

Indignação que foi parar na Justiça
O advogado Daniel Deslandes abriu uma ação popular contra o Município de Belo Horizonte, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a empresa KTO, responsável pela plataforma de apostas, e o Mercado Central um dia depois do anúncio da parceria, no dia 8 de setembro. Segundo ele, é extremamente problemático pela grande tradição do estabelecimento e também devido às grandes polêmicas em torno das casas de apostas.
Então, ele obteve uma primeira derrota na Justiça. Segundo o juiz federal substituto Luiz Eduardo Stancini Cardoso, a decisão não se enquadraria em regime de urgência, negando o pedido do advogado. “Não há o caso de ‘perigo na demora’ que justifique a análise da tutela de urgência no plantão”, afirmou o magistrado na decisão. Ele prossegue: “mesmo que houvesse urgência, não vislumbrava “risco de grave prejuízo” ou “perigo de dano irreparável” caso a decisão fosse tomada apenas no dia útil seguinte. Ele pontuou que, se o juiz natural do processo vier a concluir pela ilegalidade da alteração do nome, haverá certamente medidas possíveis para reverter a situação”.
“O Mercado Central é patrimônio imaterial capital, encontra-se em processo de tombamento pela Prefeitura Municipal e associar a marca com jogos de azar causa inegável lesão ao acervo cultural, turístico e estético da nossa cidade, além de conspirar consta a moralidade pública. Portanto, Sim, principalmente vincular o nome do mercado a uma marca de jogos de azar que causam tanto mal à sociedade. Já foram registrados inúmeros casos de suicídios, homicídios e superendividamento por causa da jogatina, principalmente na modalidade do “jogo do tigrinho” que é o caso da KTO”, afirma Deslandes. Ele acrescenta que o processo judicial aguarda o julgamento da liminar.
Grupo BeFly domina “naming rights” na capital mineira

O Minascentro foi criado em 1981 e teve sua inauguração oficial em março de 1984 pelo Governo de Minas com objetivo de contribuir para o desenvolvimento das áreas de artes, cultura, indústria, comércio, ciência e turismo do município de Belo Horizonte. De lá para cá, passou por diferentes administrações.
A antiga Codemig (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais), atual Codemg, assumiu a gerência do espaço em 14 de setembro de 2016, gestão que foi até janeiro de 2018, período em que o importante estabelecimento belorizontino iniciou obras visando melhorias em sua estrutura. Em 2019, o Governo Estadual iniciou o processo de concessão à iniciativa privada.
Dois anos depois, o Consórcio Gestor Minascentro, composto pelas empresas Chevals e Ls Locações, empresas ligadas ao ramo de eventos. A Chevals tem como um dos sócios o empresário Rômulo Rodrigues Rocha, ex-diretor da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG).
Em 20 de junho de 2024, o naming rights é cedido à empresa BeFly, companhia que atua no segmento de agências de viagens. De acordo com o site oficial da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais, “o contrato para assumir o naming rights do Minascentro tem como objetivo promover ainda mais o turismo de entretenimento e os eventos corporativos. A expertise da Befly e seus nichos de atuação (agência de viagens, mobilidade, hotéis, entretenimento, entre outros) são indicativos dessa transformação no setor.” A reportagem acionou a BeFly, que não quis conceder entrevista.
Outro estabelecimento que foi alvo de compra de direitos pela agência de viagens foi a antiga casa de shows pertencente ao Grupo Marista, em julho de 2024. Anteriormente, a casa de shows pertencente já teve outras parcerias vinculadas ao seu nome. De 2003, ano da inauguração do espaço, até 2016, era batizado como Chevrolet Hall. De 2017 a 2020, em uma ação ligada aos Postos Ipiranga, passou a ser nomeado como KM de Vantagens Hall, o que durou até julho de 2024, quando se inicia a era BeFly Hall. A reportagem acionou a assessoria de comunicação da empresa, que não quis conceder entrevista.
A Arena MRV e a viabilização de um sonho

O estádio do Atlético Mineiro sempre foi um sonho para a torcida e a compra dos direitos de nomeação foi parte fundamental do processo para viabilizar financeiramente a construção da Arena MRV, inaugurada em agosto de 2023, no bairro Califórnia. A obra total do estádio, orçada em aproximadamente R$410 milhões inicialmente, contou com R$71,8 milhões só para que se pudesse chamar Arena MRV. Segundo o assessor de comunicação do Atlético Mineiro Rivelle Nunes, setores do estádio também foram vendidos, como o Setor Inter e o AcellorMittal.
Para ele, a venda foi simples, porque desde o início do projeto o torcedor foi acostumado a chamar a arena junto ao nome da empresa de engenharia: “Vender o nome de um espaço que já está consolidado como o Mineirão, por exemplo, é muito mais difícil. Porque no nosso caso, o torcedor foi acostumado desde cedo a chamar de Arena MRV. Eu via nas redes sociais alguns torcedores chamarem o estádio de Arena do Galo… [entre outros nomes] e outros [rebatiam]: não, é Arena MRV]”, destaca Nunes.
Ele destaca ainda que a empresa de Rubens Menin sairia, caso alguma outra cobrisse a oferta: “Quando o projeto foi iniciado, há 10, 11 anos atrás já havia a ideia de que a MRV desse nome ao estádio. Então, não teve uma pesquisa, uma busca por outro patrocinador. O Rubens Menin deixou a equipe da Arena bem à vontade caso surgisse uma empresa com uma proposta melhor, a MRV, sem problema nenhum sairia”, completa Rivelle.
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