Como uma única experiência pode afetar toda uma vida?
Ela se lembrava dos gritos. Lembrava-se dos tiros, altos demais para as mãos conseguirem bloquear o som. Lembrava-se das mãos trêmulas, as suas e as de seus irmãos. Lembrava-se do suor escorrendo pela nuca. Lembrava-se do próprio rosto refletido no espelho. Um retrato de pânico e angústia. E então o barulho. Muito mais alto do que os outros, tão perto que doeu os ouvidos. Um momento de desorientação.
Uma janela quebrada. O baque de um corpo no chão. Um grito de horror. Não estava nas intenções dela ouvir o noticiário. Deixara a televisão ligada enquanto esperava o bolo no forno. Apenas um barulho no fundo para se sentir menos sozinha. Mas estava lá. Mais de 20 pessoas mortas. A confusão. Os barulhos. Os tiros.
E então tudo aquilo voltava de novo. O sangue manchando o tapete, o cheiro insuportável. O choro engasgado devido ao choque. A sensação das pernas bambas, a dificuldade de se mover. A dor, muito mais intensa do que você imaginaria.
Era difícil respirar. A dor no peito, que a fazia se curvar. Os olhos lacrimejados. O batimento acelerado, incômodo. A ânsia de vômito. Os tremores, não apenas nas mãos. Era difícil impedir os dentes de baterem. Ela procurou com dificuldade uma toalhinha, e a mordeu com força. Seus pensamentos perdidos entre lembranças e tentativas de se resgatar, de pensar com clareza. Por favor, não. Por favor, não. Eu não quero ser assim. Meu Deus, por favor, permita-me um pouco de paz. Mas a paz estava muito distante para ser sentida.
Contra a fraqueza que sentia, ela foi a passos lentos em direção à cozinha. A cesta em cima do filtro de barro. Ela pega uma caixinha e a abre o mais rápido que pode. A unha no alumínio. A água caindo no copo. A sensação esquisita depois de engolir.
Seu caminhar a levou para o quarto, onde se deitou e tentou permanecer o mais imóvel possível. Pouco tempo depois, sua mente e seu corpo puderam descansar.
Mais tarde, o marido chegou em casa. Sentiu um cheiro de queimado forte, e encontrou o bolo no forno inteiramente preto. Ele procurou por ela, achando a situação toda muito esquisita. Por fim a viu no quarto, dormindo tranquilamente. Por fora, um corpo ileso. Mas não surpreende dizer, que as cicatrizes mais dolorosas são aquelas que não podem ser vistas.
Crônica desenvolvida por Julia Souza Ferreira (2° período)
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