Ô Senhor, eu lembro de quando minha menina nasceu. Eu tava gamadão nela, nada podia estragar aquele momento. Minha morena e eu fizemos mil planos! A gente mora na comunidade, na favela, mas é tudo bem ajeitado, queremos ter o nosso também. Papo reto, o hospital tava caindo aos pedaços, mas parecia que a gente tava no paraíso. Lembro de palavra por palavra que a gente falou lá:
– Minha gata, eu nem acredito que nossa bebê nasceu! A gente vai dar uma vida maneira pra ela, né? Este ano eu vou começar a pegar firme na nossa vendinha. Fazer o certo pelo certo.
– Vamo sim, lindo! Não vai ter caô. Olha com seu irmão pra te ajudar a decorar o quarto dela. Pensei em pintar tudo de rosa!
E foi assim que a gente fez. Dali uns dias, liguei pro meu brother e a gente combinou tudo. Pintamos o quarto, comprei uma boneca e uma placa “daora” com o escrito “aqui dorme uma princesa”. Fiquei liso, mas era meu sonho, tá ligado? Minha família vale a pena.
Trabalhei muito, fiquei fora da reta. Foram nove anos até chegar aqui. E hoje parece que o sonho acabou. Eu tive que ouvir minha filha perguntando: “Papai, a gente vai morrer?” Aquilo ali me quebrou por inteiro. Enquanto eu segurava ela firme nos meus braços, um policial apontou um fuzil na minha cara.
– Eu sou trabalhador! Tô com criança.
Tinha um rapaz lá no quarto da minha filha, entrou lá pra se esconder dos homens de preto. Eu e ela ouvimos uns três tiros. E agora o quarto não é rosa mais. Tá tudo vermelho. Já fizemos de tudo, ele tá limpinho. Mas a memória ainda tá suja. A minha menina não quer voltar lá. Tá com medo.
O que que eu faço, meu Deus? Ser um homem direito não adiantou nada. Eles querem matar a gente. É projeto de extermínio isso aí. E a minha filha? Como é que fica? Como é que eu vou dar uma vida digna pra ela desse jeito? Como ela vai crescer no meio de tanto disparo? Ela me perguntou se vai ficar tudo bem, meu ‘Deus. Mentir pra ela doeu demais.
Crônica desenvolvida por Laura Peixoto (2° período)
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