Belo Horizonte continua a nutrir uma cena cultural vibrante e plural, em que jovens artistas de MPB, inspirados pelo Clube da Esquina, renovam essa tradição. Ao mesmo tempo em que reverenciam o passado, eles trazem novas influências e estéticas, incorporando elementos do jazz, da música eletrônica e do indie, criando uma MPB que, embora diferente do original, conserva seu papel de reflexão e dialoga com as complexidades da vida brasileira.
A Música Popular Brasileira (MPB) surgiu na década de 1960 como um dos movimentos culturais mais impactantes da história do Brasil, em um cenário em que o país vivia sob a ditadura militar.
Compositores e cantores como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil deram voz a uma resistência que, embora silenciosa, ecoava com uma força arrebatadora. Em canções como “Apesar de Você”, “Cálice” e “É Proibido Proibir”, suas letras, aparentemente ingênuas, escondiam metáforas e analogias que desafiavam a censura e expunham as feridas da repressão e do autoritarismo. Cada verso era uma fresta de luz, que, mesmo sob o peso da censura, expressava o anseio coletivo por liberdade e esperança.
Esse movimento não apenas representou a luta política e social da época, mas também um impulso para valorizar a identidade cultural do país, colocando a música como uma das principais ferramentas de transformação social.
Enquanto a MPB dos anos 60 tinha um foco mais direto em denunciar o sistema e desafiar as restrições impostas pela ditadura, a MPB atual reflete uma sociedade em transformação, abordando temas que transcendem a política de Estado.
Questões como identidade racial, de gênero, orientação sexual e justiça social fazem parte do repertório de muitos artistas emergentes que seguem o legado dos pioneiros, mas com uma abordagem mais diversificada e uma linguagem mais próxima das novas gerações.
Embora as raízes do gênero sejam preservadas, a MPB atual explora uma ampla mistura de influências e estilos, incorporando elementos de outros estilos musicais. Essas novas batidas e sons trazem uma pluralidade que traduz as complexidades de uma sociedade globalizada e as múltiplas identidades que a compõem.
O uso de sintetizadores, batidas eletrônicas e arranjos experimentais marca uma diferenciação sonora que transforma o gênero, mantendo-o dinâmico e atual.
Esse novo perfil gera, por vezes, a discussão sobre a existência de uma “MPB contemporânea” propriamente dita. Em muitos casos, o que se vê é uma MPB que se reinventa como parte de uma fusão de gêneros, incluindo o samba, o funk, o rap e até o rock, além dos traços da MPB “tradicional”. O caráter híbrido e inovador dessa produção reforça a ideia de que a MPB contemporânea é um espaço em que diversos estilos podem coexistir e se transformar.
Em vez de desafiar uma censura explícita, a MPB contemporânea muitas vezes confronta censuras veladas e lida com o impacto das redes sociais na visibilidade de suas mensagens. Uma nova geração de músicos consegue, assim, ecoar os clamores da sociedade atual ao mesmo tempo em que homenageia os ícones do passado, representando uma continuidade e uma renovação das vozes.
Um exemplo do MPB nos anos 60 em Belo Horizonte é o Clube da Esquina. Ele marcou um momento ímpar ao fundir sonoridades brasileiras e internacionais em uma linguagem musical que se tornou símbolo de Minas Gerais. Milton Nascimento, Lô Borges e seus parceiros realizaram composições sobre o que conheceram da liberdade, do amor e da vida com uma profundidade poética que reflete a paisagem e o espírito mineiro, abordando temas que ressoaram em todo o país.
A influência da distância dos grandes centros musicais é vista de maneira ambivalente para alguns artistas emergentes da MPB em Belo Horizonte. Nascida no Rio de Janeiro, a cantora Flor Grassi reflete sobre essa relação: “Eu sei que eu teria contatos em outros lugares e tudo, mas Belo Horizonte é um polo, realmente, de talento, isso é uma coisa que a gente valoriza muito, principalmente na MPB”. Segundo ela, a geografia não é um obstáculo para a criação musical. “Estar longe dos polos musicais não significa que a gente não tá criando uma coisa que é nossa aqui, sabe? E que a gente precisa trabalhar aqui primeiro para depois explorar outros locais”.
Para a cantora, muitos artistas belo-horizontinos compartilham essa visão, valorizando o fortalecimento da cena local antes de tentar alcançar outros espaços. “A gente está aqui porque a gente está construindo uma coisa que é nossa, porque a gente está trabalhando entre a gente, porque a gente está fazendo diversos trabalhos que vão aprimorar nosso conhecimento musical”, explica Flor. Com essa trajetória, ela destaca que o trabalho em BH oferece uma preparação rica, proporcionando o aprendizado colaborativo com outros artistas locais, para que, eventualmente, possa levar ao cenário nacional uma identidade genuína.
Na cena musical de Belo Horizonte, a colaboração entre artistas emergentes tem se mostrado essencial. Flor Grassi expressa sua visão sobre esse cenário, destacando que a interação entre músicos independentes é enriquecedora, pois todos compartilham uma missão comum e interesses semelhantes. Ela ressalta que essa união cria um ambiente de crescimento mútuo, onde o talento de cada um brilha e a garra é perceptível.
Ao refletir sobre os desafios enfrentados na cena musical de Belo Horizonte, Flor menciona a dificuldade de engajar o público jovem. Embora as pessoas afirmem apoiar a cultura local, ela observa que muitos não comparecem aos shows ou, quando fazem, não prestam atenção nas apresentações. A artista destaca a frustração de ser uma atração inicial, frequentemente ofuscada por artistas mais populares, e a complexidade envolvida em preparar um show, incluindo questões logísticas e financeiras. Esse cenário torna ainda mais desafiadora a tarefa de conquistar e manter o interesse do público.
Enquanto a MPB contemporânea é moldada por artistas que desafiam as barreiras geográficas, a cantora Lua Sanja oferece uma visão singular sobre essa dinâmica. Nascida no município de Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte, a artista compartilhou uma visão singular da cena atual da música popular brasileira belorizontina. A cantora – que é jornalista graduada pela UFMG – trabalha também como modelo e mora em São Paulo atualmente. Ela destacou a dificuldade de trabalhar exclusivamente com música e a importância do incentivo do Estado a artistas independentes.
Lua acredita que a distância dos polos econômicos do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) não afetou diretamente o início de sua carreira, uma vez que ela se considera uma artista “mais digital” e sua principal forma de se conectar com os consumidores de sua arte é o YouTube.
A multiartista ressalta que o intercâmbio cultural é uma das principais vantagens do cenário musical de Belo Horizonte. Para exemplificar esse intercâmbio, ela cita a parceria musical de Djonga – rapper de BH – e a (extinta) banda Rosa Neon – que foi uma banda de pop relevante na cidade. A colaboração com musicais muito diferentes resultou em boa repercussão e sucesso.
A cantora também explica que ela implementa elementos da cultura mineira em sua arte por meio de sua forma de falar. “Eu acho que a mineiridade tá muito na forma de falar e também em quem tá falando e quem tá fazendo, sabe?”, reflete Lua. Ela ainda cita sua colaboração musical com a cantora e compositora mineira Clara Tannure, e disse que gosta muito desse tipo de trabalho: “Eu particularmente gosto muito de colaborações desse tipo, assim, acho que é uma oportunidade também de você experimentar universos diferentes, né?”.
Lua conta que a ideia do seu último lançamento musical (DDD31) veio a partir da ideia do clipe. A artista destaca que é uma pessoa muito visual e normalmente seu processo criativo acontece assim: primeiro ela pensa na ideia/conceito do clipe e depois compõe para encaixar nessa ideia.
Os gastos da produção do clipe e da música “DDD31” foram custeados pela prefeitura de Vespasiano (onde o clipe foi gravado). Esse custeio foi feito por meio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar n°195/2022), que é uma lei federal que visa apoiar o setor cultural nacional que foi afetado pela pandemia do COVID-19.
A artista é veemente ao destacar que a principal dificuldade de um artista independente como ela é o orçamento: “Porque tudo se faz com dinheiro, tudo se faz com recurso. E pra artista independente é muito difícil, né?”.
A cantora também acredita que a MPB pode atingir cada vez mais jovens: “Eu acho que a MPB, assim como a música pop, ela não tem um estilo. (…) Música Popular Brasileira é a música brasileira que tá fazendo sucesso”. Essa perspectiva singular da produção cultural brasileira insere questionamentos ao debate se o popular realmente é só a Bossa Nova dos anos 1960, por exemplo. Lua ainda ressalta que, nesse sentido, o sertanejo e o funk também podem ser considerados exemplos de música popular brasileira.
Para Lua, conciliar a carreira musical e a vida de modelo é essencial. Viver exclusivamente da música é um desafio para qualquer artista independente, e, por isso, ela ainda não sabe se quer ou se um dia pretende viver exclusivamente dos frutos de sua arte. No entanto, um fruto positivo desse panorama é que, por não estar condicionada a resposta comercial de suas músicas, ela não se vê amarrada às tendências do mercado. Assim, ela se sente mais livre criativamente, sem estar preocupada unicamente com o resultado.
Sanja ainda cita a importância do artista independente em democratizar a arte, que tende a ser uma atuação elitista e inacessível à maior parte da população. “O processo de democratização… ele sempre vem de baixo para cima”, diz a artista. Ela exemplifica esse ponto de vista com o fato do funk de BH estar conquistando cada vez mais espaço no cenário musical nacional. Artistas como Mc Rick, DJ Wesley Gonzaga e DJ Betim já vêm conquistando um espaço significativo no mainstream brasileiro. Eles são artistas belorizontinos de funk, e, nesse sentido, reiteram a tese de Lua de que a MPB está para além da Bossa Nova do século passado.
Já em relação a sua perspectiva dos próximos anos, a cantora diz que pretende lançar um álbum em 2025 e vê o cenário musical belorizontino como crescente e emergente na produção cultural brasileira, além de destacar a importância de expandir o horizonte da concepção do que é MPB.
Enquanto Lua Sanja reflete sobre a importância do intercâmbio cultural e das colaborações na construção da identidade musical mineira, Gabriel Paulo traz uma perspectiva igualmente rica, destacando a influência da cultura local em suas composições. Nascido em Belo Horizonte e criado em Catas Altas, no sul de Minas Gerais, ele tem 23 anos e, desde que retornou à capital, descreve estar “na correria”, tentando conciliar faculdade, trabalho e carreira musical. Por ter vindo de uma cidade pequena, Paulo ressalta o potencial cultural de Belo Horizonte e diz: “A gente tá fora do eixo São Paulo e Rio, mas eu estava fora de qualquer eixo. E então, vir do interior para cá, vir para a cidade grande, abriu muito a minha perspectiva de finalmente ter a possibilidade de tentar algo na música”.
O cantor independente diz que, por ter sido criado em um lar conservador, teve uma infância em que, infelizmente, não possuía muito acesso à cultura brasileira e as variantes da Música Popular Brasileira, mas durante a sua adolescência, e agora em sua vida adulta, teve a oportunidade de desbravar a cena do MPB moderno no Brasil e principalmente da Grande BH.
Ao ser perguntado sobre como tenta incorporar os elementos da cultura mineira em suas composições, Gabriel diz que o uso de gírias e expressões do “mineirês” são inerentes à sua personalidade e que essa característica acaba sendo refletida na sua forma de compor e no seu jeito de cantar. Essa identidade da fala tem sido mais observada no MPB contemporâneo em comparação com os clássicos da tropicália e outras “escolas” da música popular. O cantor expressa uma certa preocupação ao dizer que há uma dificuldade de conectar o estilo de Música Popular Brasileira moderna com o público jovem de hoje, devido à falta de visibilidade em grandes plataformas, mas acredita que há alternativas para fazer sucesso: “Eu não vejo ninguém parecido comigo no mainstream do Brasil, acho que o interessante hoje é que, no MPB, a maioria dos artistas são ‘nichados’, mas que fazem sucesso no seu nicho, então, qual que é o parâmetro de sucesso? Sabe?”, reflete ele. Para exemplificar, o compositor da música “Volta pra Mim” cita cantoras nacionais que fazem sucesso, mas não são reconhecidas de forma ampla no mercado fonográfico, como Duda Beat e a mineira Marina Senna, que lotam shows e festivais.
O artista falou um pouco sobre o processo de composição das suas músicas e da identidade visual do seu novo EP. “O nome do EP é Caleidoscópio. Eu ainda não divulguei, mas é um EP de músicas que compus em momentos muito diferentes da minha vida”. A música que leva o nome do EP foi a primeira que Gabriel escreveu na vida e a que diz ser sua preferida. Caleidoscópio tem três fases. Cada música representa uma etapa de um relacionamento. A primeira fase, “Só tu”, a fase central, “Caleidoscópio”, e a última fase, “Volta pra mim”. O conjunto das músicas possui uma identidade visual intrinsecamente ligada às mensagens que pretendem ser transmitidas, usando cores quentes e vibrantes para representar a paixão e o amor, cores frias para representar a tristeza e a melancolia e uma mistura dos dois extremos para representar a confusão de reflexos e concepções de um caleidoscópio. Em suas composições, ele busca misturar e explorar formas de inovar a música com batidas, ritmos e melodias provenientes das diferentes eras e estilos da MPB, mas adicionando um toque único, personalizado com traços da sua personalidade.
O artista, que além de músico é designer gráfico, foi o responsável pelo desenvolvimento das capas das músicas e pela idealização do videoclipe de “Volta pra Mim”, gravado em diferentes pontos turísticos da cidade de Belo Horizonte.
O músico independente diz ser metódico e muito organizado em diversas áreas de sua vida, e aconselha outros artistas independentes a planejarem sua carreira e seus gastos. Ele frisa que seu sonho é poder viver só da música, mas que tudo deve ser feito com calma, tem que ter planejamento. “Tem muita gente que tem o lado artístico, mas esquece desse lado estratégico, metódico”.
Gabriel deixa uma mensagem que ressalta os princípios e a base de onde surgiu a Música Popular Brasileira para o público e para os colegas músicos: “Focar em fazer um bom trabalho e fazer um trabalho que você acredita é o passo principal para furar a bolha do elitismo”.
A Música Popular Brasileira (MPB) é um reflexo da evolução cultural e social do Brasil, com raízes profundas na resistência política e nas identidades diversas do povo brasileiro. Desde sua gênese nos anos 60, a MPB foi uma voz potente contra a repressão, ecoando os anseios de liberdade e esperança em meio a um contexto desafiador. Ao longo dos anos, esse movimento não só desafiou os limites impostos pela ditadura, mas também se reinventou, abordando questões contemporâneas como identidade racial, gênero e justiça social.
Artistas como Flor Grassi, Lua Sanja e Gabriel Paulo exemplificam a nova geração de músicos que, apesar dos desafios enfrentados, encontram na cultura local uma fonte de inspiração e um espaço fértil para a inovação. Com uma abordagem colaborativa e uma apreciação pelas tradições mineiras, esses artistas não apenas celebram seu passado, mas também moldam um futuro que reflete a pluralidade da sociedade brasileira. Por meio de suas experiências e desafios, eles reafirmam que a MPB é, em sua essência, uma música capaz de dialogar com as complexidades do mundo atual.
À medida que Belo Horizonte continua a florescer como um polo cultural, a cena musical da cidade demonstra que a MPB está longe de ser um gênero estanque. Em vez disso, é uma tapeçaria vibrante de influências, estilos e vozes que, juntas, reconstroem o que significa ser brasileiro na música. Assim, a MPB não apenas mantém sua relevância, mas também se transforma constantemente, reafirmando seu papel como um agente de mudança e um reflexo autêntico da alma do Brasil. Essa capacidade de se reinventar, respeitando suas raízes e abraçando a diversidade, é o que garante que a MPB continue a ressoar nas gerações futuras, desafiando barreiras e celebrando a rica cultura brasileira.
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Reportagem produzida por Ana Luiza Dutra, Cairo Machado, Marina Saddi e Tayna Soares na disciplina Apuração, Redação e Entrevista no curso de Jornalismo do campus Lourdes da PUC Minas, sob a supervisão do professor Vinícius Borges.
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