Vocês querem conhecer a minha horta?”.
O convite veio de Tucano, membro da comunidade indígena Katurãma com origens do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, que recebeu a equipe do Colab em uma tarde nublada de segunda-feira em São Joaquim de Bicas. Em caminhada ao lado de Tucano, foi possível observar a situação da aldeia e conhecer mais intimamente a cultura do povo que ali habita, e as dificuldades por eles enfrentadas.
As comunidades indígenas mantêm uma relação íntima com a terra, compreendendo seus ritmos e ciclos de maneira profunda. Suas práticas agrícolas valorizam a diversidade de cultivos, a rotação de culturas e o manejo sustentável dos recursos naturais. Diferentemente dos grandes agronegócios, são valorizadas questões que vão além do resultado pecuniário. Eles observam a terra, avaliam se ela está apta, ajustam-se às fases da lua, que influenciam diretamente no crescimento das plantas, e consideram as épocas de chuva, que valorizam determinado tipos de alimentos.
Uma definição que tem se tornado popular sobre essas práticas é o termo “agroecologia” que, segundo Flávia Londres, integrante da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), refere-se a projetos que têm grande importância ambiental. “É uma tríade de ciência, movimento e prática”. Flávia Londres ressalta que a agroecologia é uma modalidade de produção que se baseia no desenvolvimento de técnicas agrícolas que respeitam as práticas tradicionais e o conhecimento acumulado.
Abizael de Jesus, indígena da aldeia Katurãma, localizada atualmente em São Joaquim de Bicas, explica os cuidados que a comunidade tem com a terra: “Geralmente, a gente faz as plantações aqui na época certa. Por exemplo, esse é um mês ótimo, pois é um mês chuvoso. Vem agora se aproximando do São João, que é chamado de mês da plantação porque é um mês chuvoso e é o tempo que nós temos para plantar feijão e milho. Se plantamos fora de época, ele não produz uma boa qualidade”. Ele completa contando que, para a dimensão da produção de alimentos no local, as fases da lua também têm grande influência: “Você não pode usar uma lua clara, que é a lua cheia, porque quando você planta nessa época ela dá um fungo e lagartas. Então, aquela lagarta come toda sua plantação, ela não desenvolve”, explica Abizael, a partir de suas experiências tradicionais.
O conhecimento também é aplicado no momento da construção das malocas (casas) na aldeia. Abizael de Jesus explica à equipe do Colab que o corte de árvores para a construção durante a lua clara faz com que a madeira fique mais vulnerável a pragas, como cupins. O valor dessas práticas vai além da dimensão técnica e científica. Flávia Londres explica que este é um “conhecimento tradicional, milenar, que a ciência hegemônica não considera como conhecimento científico”, sendo, assim, um saber cultural característico da aldeia.
A luta pela sobrevivência
A localidade atual em que os indígenas estão morando não é seu local de origem. O terreno de 34 hectares em São Joaquim de Bicas (MG) conhecido como a Mata do Japonês foi doado pela Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira (AMCNB) sob a condição de que os indígenas se responsabilizassem pela contenção de futuras invasões e pela preservação ambiental da área, que estava sendo desmatada e ocupada irregularmente por grileiros. A comunidade foi levada para São Joaquim de Bicas depois do rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho. O crime ambiental provocou o deslocamento de cerca de 31 famílias, que tentam se reorganizar no novo ambiente para onde foram levadas.
Dentre os novos desafios enfrentados está a péssima condição do solo para a agricultura porque a terra em que se encontram atualmente também foi devastada pela atividade mineradora nas redondezas, empobrecendo a fertilidade da terra, que já não apresenta muitos nutrientes necessários para o crescimento saudável das plantas.
“Ela [a terra] não tá me dando o retorno esperado. Precisamos de uma qualidade melhor do ambiente para plantar, mas eu acredito que fazendo o tratamento melhor da área, uma adubação da terra, por exemplo, pode ser que venhamos a colher um bom fruto.”, deseja Abizael de Jesus. Segundo ele, na preparação da terra, é preciso de adubo produzido pelo gado misturado ao calcário, que contribui para a recuperação dessa terra que está, nas palavras do indígena “tão cansada… e ela não era assim”.
Veio a Vale com esse minério, eles cansaram muito a nossa terra, não é a mesma coisa de antigamente. Muita gente fala que aqui era uma terra muito aproveitada e muito vantajosa para as pessoas, onde eles plantavam e conseguiam manter sua família sem precisar trabalhar para ninguém”.
Abizael de Jesus
Durante a conversa entre Abizael e Tucano, foram abordadas as dificuldades causadas pela falta de infraestrutura na comunidade como, por exemplo, terem passado dias sem água potável na aldeia. A Copasa informou à reportagem que não houve reclamações de desabastecimento na região nos últimos dias. O único problema registrado foi um vazamento identificado em 20 de maio de 2024, para o qual já está agendada manutenção.
Diante dessas adversidades, as atividades tradicionais dos indígenas não têm sido suficientes para manter economicamente a aldeia. A fonte de renda da comunidade vem de atividades externas, como apresentações em escolas, feiras e visitas guiadas no território. O artesanato, prática visceral em sua cultura, já não consegue ser realizado por eles, por falta de matéria-prima. A venda de produtos artesanais é feita com objetos “importados” de outras aldeias.
Essa realidade é resultado de uma questão importantíssima: o domínio que a população da Katurãma consegue ter de suas próprias terras. Abizael e seu colega, Tucano, relatam que, para extrair qualquer árvore, é necessária a aprovação do governo, afinal, sua terra é uma Área de Preservação Permanente (APP), registrada como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), e para a preservação da fauna e flora local, é necessário obter uma autorização junto à Secretaria de Meio Ambiente do município para a extração de árvores. Sua atividade cultural e agrícola não é danosa ao meio ambiente, mas são eles os que encontram limites para exercê-la, enquanto grandes latifúndios, com pouca penalidade, abusam de áreas naturais e burlam leis. Aos indígenas, a possibilidade de desempenhar seus ofícios é limitada pelo descontrole ambiental e desfavorecimento governamental.
Assim, essa e tantas outras aldeias seguem em luta por direitos e melhor qualidade de vida. “Muitas pessoas falam que indígena ganha tudo de mão beijada, eu não ganho nada de mão beijada, é muita luta para conseguir e para conquistar o que nós tínhamos há algum tempo e, hoje, nós não temos mais. É isso o que a gente faz, a gente consegue as coisas mas é fruto de muito esforço, de muito trabalho”. Pelos indígenas da aldeia Katurãma foi criada a AIKA (Associação Indígena do Povo Katurãma) uma organização sem fins lucrativos, que tem como principal objetivo a colaboração entre os seus associados, para contribuir com o fortalecimento étnico-cultural, a melhoria das condições de vida do povo Indígena e o desenvolvimento das atividades sócio-econômico e a preservação do patrimônio natural, social e cultural.
Reportagem produzida por Karen Cristina, Mariele Ferreira e Rayssa Moura para o projeto Múltiplas Leituras.
Parabéns à equipe que realizou a reportagem com o povo Katurãma.
Sugiro que prossigam com os demanda a grupos de retomada ( inclusive explicando bem o que significa pois esses indígenas chegaram a Brumadinho, Bicas e Mario Campos ( áreas de dívida) após o crime da Vale em 2019. Os Pataxó HaHa Hãe já foram unidos aos tratados nessa reportagem. Importância da complexidade ser vista do ponto de vista jornalístico, também a partir desse conceito cunhado pelo francês Edgar Morin.
Excelentes desdobramentos para vocês na exploração da temática com mais profundidade.
Gostei muito da reportagem e parabenizo axequioe por ter ido até Dao Joaquim, ter conhecido tanto os indígenas quanto a terra, as plantas, as árvores. Sao todos parte de um ser único. Nós!