“Eu parei no tempo quando a minha mãe morreu”. “Uma dor insuportável, enquanto eu tiver voz, eu vou buscar por justiça, eu vou gritar”. “Meu pai morreu pra mim no dia que ele matou minha mãe”. Essas palavras, carregadas de dor e revolta, ecoam a tragédia silenciosa vivida por milhares de crianças e adolescentes no Brasil: os órfãos do feminicídio. Elas não são apenas frases soltas, mas o retrato da violência de gênero, que destrói não apenas vidas de mulheres, mas de filhas e filhos marcados para sempre pela perda brutal e injusta da mãe.
Ele vai crescer uma hora e vai perguntar. Sabe? Meu maior medo é de não saber, nessa hora, passar amor o suficiente para que ele não se torne uma pessoa perdida”. A declaração é de Brenda Fernandes.
Brenda Fernandes divide com a irmã Lorrayne Fernandes os cuidados do sobrinho Gael, de um ano de idade. Ele perdeu a mãe Emily Fernandes, de 18 anos, assassinada com golpes de faca em janeiro deste ano, no apartamento onde viviam. O criminoso era namorado de Emily e pai da criança.
Segundo relatório da ONU, das 85 mil mulheres e meninas assassinadas no mundo em 2023, cerca de 60% foram mortas por parceiros ou parentes. Isso equivale a uma média de 140 por dia. Seis a cada hora. Assim como Gael, essa é a realidade dos três filhos de Fabiana dos Santos de Melo, de 36 anos. Ela foi assassinada pelo ex-companheiro e pai das crianças, em uma emboscada, em junho de 2021, e teve seu corpo jogado em um matagal no bairro onde morava.
Miguel Santos, de 19 anos, e seus dois irmãos, João, de 14 anos, e Lucas, de 7 anos, ficam sob os cuidados de uma amiga da mãe, Vanderlene Inácio de Souza, de 54 anos. Ela contou que por vezes divide a saudade da amiga com os menores.
O de 14 anos, há uns três meses atrás, eu perguntei: ‘Ô Lucas, tô te achando meio triste, o que que tá acontecendo? Ele disse: ‘eu tô com saudade da minha mãe’. Aí eu abracei ele e choramos nós dois, porque saudades a gente vai ter por muito tempo.”
Vanderlene Inácio de Souza
Os entes queridos notam esse comportamento dos órfãos do feminicídio, que percebem como a falta da mãe pode bagunçar o sentimento dos filhos. “Ele (Gael) tinha mania de pegar no cabelinho dela (Emily) para dormir e ela segurava na outra mãozinha fazendo carinho. Então, às vezes, você vê que ele dá umas crises, aí ele procura no cabelo das outras pessoas e fica muito agitado”, conta Brenda.
Impactos emocionais
Yasmin Cândido, de 19 anos, perdeu a mãe quando tinha apenas 16. Brenda Cândido foi assassinada de forma brutal, em maio de 2022. O namorado de Cândido queimou e abandonou o corpo em um lote vago. Brenda foi reconhecida somente pela arcada dentária. Mesmo depois de 4 anos do crime, Yasmin conta que os impactos emocionais persistem: “As coisas vão acontecendo na minha vida e, claro, a gente vai reagindo, mas é difícil. Tem que ter muita força, muita gente do nosso lado, muita sabedoria, porque não é fácil. E eu não desejo isso pra ninguém”.
Alcione Guedes Leão, psicóloga na Delegacia da Mulher de Betim, reforça a importância do acompanhamento imediato dessas famílias.
“A tristeza e o sentimento vai ser eterno. Sempre que você lembrar da pessoa, o luto, ele ressignifica todos os dias. Agora, a partir do momento que você paralisa a sua vida, e que você não dá conta de fazer, de seguir, aí ele se torna patológico. E precisa de avaliação de um profissional”.
– Alcione Guedes Leão
Foi o caso do filho do meio de Fabiana. A atual responsável legal pelo menor, Vanderlene, conta que, depois de uma avaliação comportamental da criança, foi alertada pela escola sobre a necessidade de acompanhamento psicológico. Segundo Alcione, em casos como o de Gael, onde o menor presenciou o crime, a exposição a uma situação de violência extrema gera preocupação: “Às vezes, crianças que não conseguem se comunicar claramente não se dão conta de verbalizar sentimentos. Então, tem que ter muito cuidado nessa avaliação, (considerando) o jeito que essa criança está na escola? Como que ela era? E atualmente? Ela está conseguindo brincar? Regrediu em relação a sono?”.
Mudanças
De acordo com Alcione, a ansiedade é um sintoma muito comum nesses casos e pode se manifestar de várias formas, incluindo ataques de pânico, fobias, transtornos de ansiedade generalizada: “As vítimas podem sentir que estão em constante sensação de perigo ou apreensão. Então, tá sempre em alerta, né? É como se ela estivesse sempre na defensiva de que algo vai acontecer, você imagina o estresse de um corpo, né? Liberando sempre todos os hormônios ali, adrenalina, noradrenalina, para se defender o tempo todo”.
Sintomas assim se tornaram habituais para Yasmin depois da perda de sua mãe.
“Eu fico com medo até de sair na rua, sempre fico olhando pra todos os lados, para ter a certeza que eu tô segura”
-Yasmin Cândido
Outro grande impacto nas famílias das vítimas de feminicídio é uma brusca mudança na percepção da figura masculina. Brenda Fernandes conta que, depois da perda da irmã, teve que iniciar um tratamento para lidar com o trauma que desenvolveu quanto aos homens. “Tenho uma imagem de homem meio suja. Hoje eu olho com um olhar diferente para a figura masculina, com nojo, sabe? É muito difícil sentir confiança”, diz.
A dor de perder um ente querido para o feminicídio não se apaga, mas o acolhimento e o suporte adequado podem ajudar as famílias a seguir em frente. “Foi necessário pra me dar força, discernimento e também pôr pra fora o que eu sinto. Era muito importante”, afirma Yasmin, sobre a importância do acompanhamento psicológico ao longo de seu processo de luto.
“Por favor, meu filho não!”
No dia do crime, segundo testemunhas, Emily ainda clamou pela vida do filho antes de morrer.
“Eu falo que uma das partes mais chocantes no julgamento foi o depoimento da testemunha, que disse que só notou que estava acontecendo algo errado no apartamento porque o último grito dela foi assim: ‘por favor, meu filho não'”
– Lorrayne Fernandes
Os últimos momentos de Emily chamam a atenção para os principais personagens dessas histórias brutais: os órfãos do feminicídio. Provavelmente, o último pensamento de muitas dessas mulheres tenha sido a certeza de que, a partir daquele momento, suas crias seriam obrigadas a passar o resto da vida sem as genitoras.
Miguel e Yasmin, além de lidarem com a realidade devastadora da perda, se depararam com grandes responsabilidades. Miguel Santos, ao se dar conta do sumiço da mãe, procurou imediatamente Vanderlene e relatou estar preocupado com os irmãos sozinhos em casa. Dali em diante, o jovem não só soube que teria que completar sua juventude sozinho, como também seria o alicerce dos irmãos menores.
Yasmin descreve a dificuldade de lidar com a adolescência sem a mãe: “Ela é quem me dava as coordenadas. Como eu tinha 16 anos, ela é que falava ‘isso é bom, isso é ruim pra você’. Então, quando ela morreu, foi difícil eu me conhecer. Tipo, o que é melhor pra mim? O que eu quero de verdade? Vai ser bom? perigoso? O que não é? É difícil isso pra mim até hoje”.
Alcione Leão também chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, os familiares da vítima podem sentir vergonha e medo do julgamento alheio ao demonstrarem sofrimento. Podem, então, ficar presos a perguntas como: “Mas como que essa família não percebeu que essa pessoa estava em tamanho sofrimento? Como que essa família não percebeu que ela tinha um companheiro que era abusivo?”
Essas perguntas também rondaram os pensamentos da irmã de Emily: “Porque eu sou a irmã mais velha, aquela mais chata que tenta ser mais dura, pra evitar esse tipo de coisa acontecer. Então ele passou uma versão dele que não existia e eu acreditei. Eu me cobro muito por isso, sabe?”.
Yasmin também conta que nunca imaginou que isso pudesse acontecer com sua mãe: “Foi um choque, muitas das ameaças que ele fazia, a gente não tinha muita noção. Ela não contava muito pra gente. Isso foi triste, porque talvez se ela contasse, isso não ia ter acontecido”.
Já Vanderlene, que conhecia e convivia com o autor do crime, contou que o homem “era de dentro de casa”. “Um detetive me ligou, estava desconfiado que era ele. Aí o detetive me perguntou, né? E eu falei ‘nossa, eu não acredito que foi ele, não’”.
Luto e burocracia
Após o feminicídio, o primeiro desafio das famílias é lidar com o choque e a dor da perda. Para além do trauma psicológico, os familiares precisam enfrentar a burocracia para a realização dos trâmites legais, desde a obtenção do atestado de óbito até a abertura de processos judiciais para garantir direitos básicos.
“O apoio jurídico e social é essencial. Tem leis municipais para apoio dessas famílias, aluguel social, pensão por um tempo, né? Benefícios, tem os municipais, que cada município tem o seu, e tem o do governo federal também. Então, é importante ter esses apoios para você saber o que é que a comunidade que você vive tem, que você pode acessar”, afirma Alcione Leão.
No entanto, esse processo é complexo e doloroso, uma vez que é um grande desgaste para parentes próximos da vítima, que são obrigados a repassar detalhes da tragédia para obter apoio legal – e que, mesmo assim, nem sempre é suficiente.
Tem uns dois meses que minha mãe conseguiu receber o Bolsa Família. Mas, mesmo assim, R$375,00, que é praticamente nada. Para quem tem um filho, sabe que isso não dá para nada. Minha mãe ainda brinca, fala que ele paga a conta de água e luz. É a única coisa que dá para pagar. A água e luz, mesmo assim o leite, fralda, a alimentação do Gael, tudo, não dá”
-Lorrayne Fernandes
A falta de acesso imediato a uma rede de apoio financeiro torna a situação dessas famílias ainda mais delicada. Esses processos, além de demorados, exigem recursos que nem sempre estão disponíveis.
E o estado?
No ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que garante pensão para filhos de vítimas de feminicídio. O benefício de um salário mínimo visa amparar crianças e adolescentes que perderam as mães em decorrência de violência de gênero. A pensão será concedida aos órfãos cuja renda familiar mensal per capita seja de até 25% do salário mínimo.
O benefício será pago ao conjunto dos filhos que eram menores de idade na data do óbito da mãe, mesmo que o feminicídio tenha ocorrido antes da publicação da lei. Caso seja comprovado judicialmente que não houve o crime de feminicídio, o pagamento cessará imediatamente, mas o beneficiário não será obrigado a ressarcir o valor, exceto em caso de má-fé.
“Estamos correndo atrás, a gente soube através de uma emissora de TV que ele (Gael) tem esse direito, mas eu vou falar que não é fácil, as leis no nosso país são meio complicadas. Então, cada hora manda a gente para um lugar, não é tão simples assim, ‘agora vocês têm que encarar o INSS’, é muito difícil, chega a ser até exaustivo”, completa Lorrayne.
Yasmin conta que não teve nenhuma ajuda financeira do governo, e que o processo para conseguir algum auxílio é tão desgastante que ela preferiu nem tentar.
“Tenho muito amparo da minha família, principalmente da minha avó e da minha tia, que moram comigo. Mas as dificuldades são grandes e a gente luta muito para se manter.”
-Yasmin Cândido
O desamparo financeiro também atingiu os 3 filhos de Fabiana. Tanto a mãe quanto o pai trabalhavam como autônomos e sem carteira assinada. Com o assassinato da mãe e a morte do pai 2 meses após ser priso, os filhos ficaram desamparados. Vanderlene confessa que só recebe auxílio do Bolsa Família, que não é suficiente para manter a casa onde mora com os 3 agregados e seus 3 filhos.
Seguindo a vida
Mesmo depois de uma tragédia mudar o rumo da vida desses filhos, que se vêem repentinamente sem as mães, a vida segue – e eles precisam se reconstruir. De acordo com a psicóloga Alcione, a dor da perda permanece, mas muitas crianças e adolescentes conseguem elaborar esse sentimento graças a um suporte emocional contínuo, terapia e grupos de apoio, para construir uma perspectiva de futuro mais saudável: “Apesar dos desafios, algumas crianças e adolescentes desenvolvem esses mecanismos de enfrentamento e conseguem ter uma saúde emocional, quando têm apoio da família, da escola, da rede comunitária que ela vive. Quanto mais precoce for o atendimento e cuidado, a chance do luto se ressignificar e ele tocar a vida como qualquer outra criança e adolescente na sua fase, pode ocorrer de uma forma natural”.
Brenda conta que o mais importante para ela e toda a família é o cuidado especial com o Gael, que ainda tem apenas um ano de idade: “Ele vai saber de tudo, da forma mais clara possível, com leveza, lógico. Ele vai ter os acompanhamentos necessários para que ele enxergue isso como um fato que tinha que acontecer na vida dele, pra ele ser um grande homem, e que ele possa também ser um grande pai, um belo esposo, marido, e eu acredito que vai ser, porque ele é muito carinhoso, e eu vou fazer de tudo para que essa tragédia não marque a vida dele de uma forma negativa. É assim que a gente vai levando”.
Já Yasmin, que completou a juventude sem a mãe e hoje vive a maioridade, conta que Brenda está sempre viva nela: “Eu fico em paz de que mesmo ela indo da forma que foi, nem deu pra se despedir, mas a gente não morreu com mágoa, essas coisas, sabe? E eu sempre pude ter a minha mãe pra ter momentos bons, que foram essenciais e são até hoje… Ela foi a que mais me ensinou coisas sobre a vida mesmo, conselhos e tal, e eu levo tudo que aprendi com ela até hoje.”
Enquanto Miguel, cujos irmãos menores ainda não entendem a dimensão da tragédia, assume a responsabilidade de lidar com a dor e encontrar forças para projetar um futuro.
“Minha maior alegria dentro de casa são meus irmãos, e isso me dá força. Busco conquistar as minhas coisas, né, para ter a minha família estabelecida com eles”.
-Miguel Santos
A dor, o sofrimento e a luta que esses filhos enfrentam para conseguir seguir a vida são as consequências devastadoras da violência de gênero, que tem impactos para além da vítima direta. Por isso, a importância da denúncia. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública o aumento do número de denúncias pode estar associado à redução de casos de feminicídio, pois permite que as autoridades identifiquem padrões de comportamento violentos e intervenham antes que o crime seja consumado.
Fique atenta aos sinais
A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006), que visa coibir a violência doméstica, oferece mecanismos legais para que mulheres possam denunciar agressões e buscar medidas protetivas. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu, no dia 13 de novembro deste ano, que medidas protetivas de urgência destinadas à proteção de mulheres vítimas de violência doméstica podem ter validade por tempo indeterminado. Ou seja, elas permanecem em vigor enquanto houver risco à segurança da vítima.
O Brasil também tem canais como o Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher) e a Delegacia da Mulher, que são recursos acessíveis para vítimas e testemunhas de violência. Esses canais facilitam a denúncia e garantem que as vítimas recebam orientações e apoio adequados.
A denúncia não é só um passo fundamental para a proteção da mulher; ela também contribui para a criação de uma rede de apoio que pode interromper ciclos de violência, evitando que o feminicídio aconteça e que filhos acabem tendo a vida atravessada por uma tragédia.
Para as mulheres, eu deixo a seguinte mensagem: é melhor você mudar de vida do que você perder sua vida.”
-Brenda Fernandes
Reportagem desenvolvida por Ana Clara Pinho, Giovanna Lara, Júlia Coelho, Karol Noronha e Maria Antônia Rebouças para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
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