A ação do tempo – desde rachaduras a sujeiras do cotidiano – em uma estrela da Calçada da Fama inicia de maneira significativa a obra de Coralie Fargeat. O nome em destaque que, com o passar dos anos, se mostra menos “relevante”, é Elisabeth Sparkle (Demi Moore), personagem central da trama. A realidade distópica vivida no filme A Substância, lançado em setembro de 2024, não se distancia da realidade, na qual o abandono acompanha o envelhecimento das mulheres e caminha ao lado de pressões sociais que enaltecem a juventude e o estereótipo do que é visto como belo e agradável.
A trama se estabelece pela busca de uma “nova” Elisabeth Sparkle, atriz que viveu anos brilhando sob os holofotes do cinema e da televisão, até que, devido ao seu envelhecimento, caiu no esquecimento e foi demitida do programa em que trabalhou por décadas. A atuação de Demi Moore é emocional, dramática e perturbadora, ela é capaz de representar a vulnerabilidade e o desespero de uma mulher que percebe sua relevância sendo perdida ao mesmo tempo em que busca uma imagem considerada socialmente perfeita. Com a enigmática “substância”, cujo nome dá título ao filme, Elizabeth é submetida a transformações físicas grotescas em busca da aparência inalcançável.
Contém Spoilers
Coralie Fargeat enfatiza a figura perturbadora do personagem Harvey (Dennis Quaid) cujos traços são asquerosos e percebidos em detalhes, como a maneira nojenta com que ele devora camarões enquanto ignora a presença de Elisabeth durante um almoço. O desprezo do homem por mulheres é observado e evidenciado durante todo o longa: com o exemplo de seu comportamento abusivo com a secretária Isabella, a quem ele debochadamente chama de “Cindy”. Essas cenas recebem um enquadramento desconfortável, em que o complexo de superioridade dele é destacado, bem como a crítica à objetificação de mulheres.
Sue (Margaret Qualley) é a personificação da perfeição louvada na sociedade vigente. Os traços angelicais, o corpo estruturado e a juventude a tornam irreal e, ao se considerar a enorme quantidade de edições e próteses utilizadas no corpo da atriz, ela se estabelece ainda mais como uma personalidade distópica. A jovem, “clone” de Elisabeth, recebe um tratamento muito mais cortês do que sua “versão mais velha”. Todo esse acolhimento, desejo e recepção, reforçam o etarismo retratado na trama, visando a fama e queda iminente de Sparkle.
O impacto da obra nas mídias sociais enfatiza o que é exibido durante todo o longa: cenas envolvendo Sue — a “nova Elisabeth” — são as mais comentadas, replicadas e louvadas. Em contrapartida, imagens de Elisabeth quase não são vistas e divulgadas pelos telespectadores como algo desejável e fascinante. Fator que se torna um espelho da realidade, cuja juventude é enaltecida e o “passado” é descartado.
O filme não se furta ao imergir no body horror, o grotesco é destacado como consequência da exaustiva luta pela perfeição. As transformações vividas por ElisaSue são incômodas, nojentas e perturbadoras, de maneira em que se estabelecem como uma crítica explícita à manipulação corporal vivida na sociedade contemporânea, bem como o sacrifício imposto por indústrias, com exemplo do mundo da moda e cinematográfico. Em A Substância o horror não é apenas físico, mas psicológico. Os frames do longa são mais um ponto que acentua o teor incômodo gerado pela película, bem como a trilha sonora. Com dimensões e tremores, utilizados em cenas e enquadramentos, o desconforto é evidenciado.
O uso do gore e das imagens impactantes buscam não apenas chocar, mas expor o espectador a uma realidade tão perturbadora, quanto grotesca. Mais do que um horror corporal, A substância se reafirma como uma forte e complexa denúncia às regras sociais e culturais que sufocam o corpo, a juventude e a beleza das mulheres. Para aqueles que buscam ser para sempre jovens, realmente querem viver para sempre?
"Forever young
I want to be forever young
Do you really want to live forever?
Forever or never Forever young I want to be forever young
Do you really want to live forever?"
Forever Young
Alphaville
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