Na contramão do sistema prisional tradicional, a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) oferece uma nova chance para mulheres privadas de liberdade. Na unidade feminina da Gameleira, em Belo Horizonte(MG), o trabalho é mais do que uma obrigação: é terapêutico, educativo e uma oportunidade de recomeço. Por meio da laborterapia e de atividades empreendedoras, as recuperandas constroem trajetórias que rompem com o ciclo da reincidência.
Implementada por meio da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC) conforme a Metodologia APAC desde a fundação da unidade, em dezembro de 2019, a comercialização de produtos feitos pelas recuperandas do projeto “A mão que destroi, hoje constroi”, além de lema, é um símbolo da reconstrução que se promove ali, resume Clarissa Maira Resende Rocha Vieira, encarregada de tesouraria da APAC Belo Horizonte.
Na APAC, o trabalho de empreendedorismo das recuperandas tem valor simbólico e humano. Os produtos produzidos pelas mulheres no sistema prisional, que incluem chinelos personalizados, peças de sublimação, roupas costuradas, cadeiras reformadas, hóstias, além de serviços em salão de beleza, são vendidos por preços acessíveis. Todo o valor arrecadado retorna diretamente às recuperandas, ajudando na compra de itens pessoais, como absorventes, cigarros e medicamentos, quando estes itens não são fornecidos pelo sistema público.

Vicentina dos Santos, 57 anos, confecciona tapetes de crochê na unidade onde cumpre pena. Para ela, a costura e o empreendedorismo ajudam no processo de ressocialização. Cada peça é vendida por R$10,00 simbolizando um passo a mais rumo à liberdade e à autonomia
Mais do que geração de renda, o trabalho empreendedor no sistema prisional representa autonomia para as mulheres privadas de liberdade. Segundo Clarissa, as mulheres privadas de liberdade têm acesso ao valor arrecadado e participam da gestão cooperativa.
“A finalidade é que o dinheiro volte para elas mesmas, como forma de incentivo e dignidade.”
Além da prática, a capacitação das mulheres é contínua. A unidade conta com cursos promovidos por parceiros institucionais, incluindo formações em empreendedorismo e capacitação financeira. “Temos vários cursos na unidade. As recuperandas se tornam empreendedoras a partir desse aprendizado”, afirma Clarissa.
Em 2025, um levantamento do Sebrae Minas, com base em dados da Receita Federal, revelou que 40,9% dos 2,1 milhões de pequenos negócios ativos em Minas Gerais, cerca de 897 mil empresas são liderados por mulheres. O estado ocupa o segundo lugar no ranking nacional de empreendedorismo feminino, atrás apenas de São Paulo, conforme a 3ª edição da pesquisa “Mulheres Empreendedoras”. No Brasil, as mulheres estão à frente de 41,5% dos pequenos empreendimentos.
Em Minas, a maioria das empreendedoras está na faixa dos 31 aos 40 anos, representando 27,7% do total o que indica uma presença expressiva de mulheres em uma fase mais madura da vida profissional. Quando o recorte é por segmento, o setor de Serviços lidera, com mais de 450 mil empresas comandadas por mulheres, seguido pelo Comércio, com 274 mil.
Deusa Nunes, 43 anos, é uma das mulheres presas que encontraram no método APAC uma oportunidade de reconstrução e autonomia. Ela reforça a importância de iniciativas voltadas ao empreendedorismo feminino, inclusive dentro do sistema prisional. Deusa participou de um curso de capacitação em alvenaria e vê na formação um ponto de virada. “Na APAC eu resgatei a minha dignidade”, afirma. Entre as principais diferenças em relação ao sistema prisional convencional, ela destaca o tratamento humanizado: ser chamada pelo nome, circular sem algemas, vestir roupas comuns e ter acesso à educação profissional e empreendedora. A máquina de costura se tornou símbolo de liberdade e transformação. No espaço da oficina, cercado por flores e borboletas nas paredes, Deusa produz não apenas roupas, mas também um novo futuro, costurado ponto a ponto com dignidade, trabalho e esperança.
Deusa também integra o projeto “Refazendo”, que transforma produtos apreendidos pela Receita Federal em enxovais para recém-nascidos, roupas infantis, bolsas e outros itens, doados a hospitais da capital mineira. A iniciativa é fruto de uma parceria entre a Receita Federal, a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e a própria APAC.

“Eu não sabia nem pegar na agulha e hoje sou apaixonada pela costura, por fazer roupas, lingeries, peças finas… Aprendi tudo aqui na APAC.”
Deusa Nunes, recuperanda

Atualmente, cursa o quinto período de Administração de Empresas, dentro da unidade prisional, e sonha em abrir o próprio negócio.
“Quero empreender nesse ramo e conquistar minha independência. É muito gratificante. Achei que não suportaria viver o sistema prisional antes de vir pra cá.”
Para ela, o empreendedorismo é mais do que uma possibilidade profissional e sim uma ferramenta de reconstrução pessoal. “É uma porta que Deus abriu para mim. Quando sair daqui, quero aplicar tudo que aprendi e abrir meu próprio negócio.”
O resultado da metodologia também já pode ser visto fora dos muros. Segundo a organização, uma ex-recuperanda, por exemplo, abriu sua própria empresa no ramo de produtos de limpeza e hortifruti, após cumprir pena na APAC. A identidade da empreendedora não foi divulgada pela instituição.
Atualmente, 113 das 139 mulheres da unidade participam da laborterapia. A APAC ainda promove apresentações culturais com seu coral oficial.
Para Valeci Ferreira, diretor do Centro Internacional de Estudos do Método APAC (CIEMA), o trabalho nas unidades é uma ferramenta de cura: “É terapêutico, educativo e profundamente transformador. Reencontra-se o senso de responsabilidade, redescobrem-se talentos, e resgata-se a autoestima. O trabalho liberta, transforma e cura.”
Com 68 unidades espalhadas pelo Brasil, cada APAC tem autonomia para adaptar suas atividades de laborterapia conforme a realidade local. Essa liberdade também permite que a criatividade floresça, fomentando o empreendedorismo e abrindo novas possibilidades para quem, muitas vezes, nunca teve uma.
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