O ditado popular “todo bom time começa com um bom goleiro“, conhecido no meio futebolístico, é, de fato, bastante usado por torcedores, jornalistas e profissionais que atuam no futebol. Mas, no Brasil, depois que a Seleção Brasileira sofreu a goleada histórica na Copa do Mundo de 2014 – o famoso 7 a 1 contra a Alemanha, no Mineirão -, o cenário vem sendo um pouco diferente. Mais do que goleiros, começaram a ser importantes os treinadores – e estrangeiros.
Como reação às críticas recebidas pela imprensa, clubes de futebol viram a necessidade de que houvesse uma modernização do futebol brasileiro e, com isso, começou a se ver no país uma vasta lista de treinadores estrangeiros, sejam eles sul-americanos ou não, contratados para atuarem no “país do futebol”.
Histórico de treinadores estrangeiros
Décadas atrás, técnicos de outros países já haviam passado pelo Brasil. O argentino Daniel Passarela, em 2005, foi campeão brasileiro pelo Corinthians. O uruguaio e ex-jogador Darío Pereyra comandou o Atlético Mineiro e o Grêmio, tendo sua última passagem no Brasil em 2003, pelo clube gaúcho. O alemão Lothar Matthäus também já esteve em terras brasileiras treinando o Athletico Paranaese, em 2006.
Esses e mais outros técnicos estrangeiros já haviam explorado atuar no futebol brasileiro antes deste cenário tornar-se comum. Mas, atualmente, dos 20 clubes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro, quatro são comandados por técnicos estrangeiros.
O atual líder da competição, Atlético Mineiro, tem Jorge Sampaoli como técnico, que ano passado comandou outro clube brasileiro, o Santos. O alvinegro praiano contratou para o lugar de Sampaoli outro estrangeiro, o português Jesualdo Ferreira, que hoje já não se encontra mais no cargo de treinador do time paulista. Continuando a lista, mais três clubes se encontram na lista daqueles que são liderados pelos ‘gringos’: o português Abel Ferreira chegou ao Palmeiras recentemente; o também português Jorge Sá Pinto atua como treinador do Vasco; e o argentino Ramón Díaz está à frente do Botafogo.
Em outubro de 2020, 30% dos treinadores da Série A do Campeonato Brasileiro eram estrangeiros
A lista de técnicos estrangeiros já foi maior. Há menos de 30 dias e, coincidentemente, na mesma semana, Domènec Torrent e Eduardo Coudet, ex-treinadores de Flamengo e Internacional, respectivamente, deixaram seus cargos no Brasil.
Mais conhecido como “Dome”, o espanhol, mesmo avançando de fase nas principais competições em que seu time disputou, foi alvo de críticas da imprensa diante dos resultados negativos – como, por exemplo o 4×1, sofrido pela equipe do São Paulo, em casa e, a goleada pelo Atlético de Sampaoli por 4×0, jogo que seria seu último como comandante do clube carioca.
Em 9 de novembro, Eduardo Coudet, ex-técnico do Internacional, e Domènec Torrent, ex-comandante do Flamengo, deixaram o cargo em seus respectivos clubes. O argentino aceitou a proposta do espanhol Celta de Vigo, após desentendimento com a diretoria do time portoalegrense. Ele alegou inúmeras causas para sua saída como, por exemplo, a falta de contratações que havia pedido e a promessa de que seria atendido em um curto prazo. O treinador deixou o Internacional na liderança do Campeonato Brasileiro, nas oitavas de final da Copa Libertadores e nas quartas de finais da Copa do Brasil.
Já o espanhol ‘Dome’, ao contrário de Eduardo Coudet, foi demitido pela diretoria do Flamengo após frustrantes e amplas derrotas no campeonato nacional. Em primeiro de novembro, no Maracanã, Domènec viu seu time ser derrotado por 4 a 1 diante da equipe do São Paulo. No domingo seguinte, foi a vez do argentino Jorge Sampaoli vencer o clube carioca, agora, por 4 a 0. Foi a última partida de Torrent no comando do Flamengo. No dia seguinte, a diretoria rubro-negra anunciou sua demissão. Mas por que essas demissões e saídas acontecem com tanta regularidade e pertinência no futebol brasileiro? Por que são tão prejudiciais para a evolução do futebol local?
Treinadores estrangeiros na liderança
Em 2019, pela primeira vez em 60 anos de Campeonato Brasileiro, o primeiro e o segundo colocados foram dirigidos por técnicos estrangeiros. O Flamengo do português Jorge Jesus não só foi campeão, como impôs a maior diferença aos rivais da era dos pontos corridos. A distância só não foi maior por causa da derrota por 4 a 0, na última rodada, para o Santos do argentino Jorge Sampaoli, o vice-campeão. O alto nível alcançado pelos dois treinadores levou a mais uma onda de críticas aos colegas brasileiros – uma reedição do “7 a 1”, agora do lado de fora dos gramados -, que estariam defasados e despreparados.
Gabriel Calabres, Gestor de Futebol pela CBF Academy, acredita que o futebol brasileiro, desde sua formação, até o grande baque sofrido na Copa de 2014, após derrota vexatória, tenha evoluído, mas ainda requer tempo para que a mentalidade extra-campo seja totalmente alterada. Segundo ele, desde que os clubes perceberam a necessidade de que houvesse mudanças, e que precisariam ser tomadas de forma drástica, muitas coisas internamente foram alteradas.
A formação desde as categorias de base, a instrução para a arbitragem sobre como lidar com situações adversas das delegações envolvidas em um jogo, enfim, já se vê melhora. Mas demissões e saídas como a do Coudet e a do Torrent, em meio a trabalhos acima da média em clubes brasileiros, evidenciam que grande parte destes erros de planejamento vêm diretamente das diretorias dos clubes de futebol que, muitas das vezes, não cumprem o que falam.
Gabriel Calabres, Gestor de Futebol pela CBF Academy
Um exemplo de profissional recente e vitorioso no Brasil é Jorge Jesus. O português chegou ao Rio de Janeiro em meados de 2019 para assumir o Flamengo. O resultado? Com pouco mais de um ano de trabalho no comando do time, Jorge Jesus quebrou recordes e escreveu um capítulo importante na história do clube. Após realizar campanha inédita e histórica no Campeonato Brasileiro, além da conquista da Libertadores, após 38 anos de jejum, o treinador é unanimidade no Brasil, totalizando 43 vitórias, 10 empates e apenas quatro derrotas desde que assumiu o time carioca.
Além disso, o lusitano apresentou um paradigma: ser vencedor no futebol brasileiro como um expatriado – ou seja, em uma associação diferente daquela em que cresceu. Em pouco mais de um ano no Brasil, Jesus conquistou a Libertadores de 2019, o Campeonato Brasileiro de 2019, a Supercopa do Brasil de 2020, a Recopa Sul-Americana de 2020 e o Campeonato Carioca de 2020.
Porém, antes de Jorge Jesus chegar ao Brasil, o experiente Sampaoli, argentino, que já venceu a Copa América de 2015 e 2016 e foi o último treinador da Argentina em Copa do Mundo, em ocasião, a de 2018, na Rússia, chegou ao Santos no início de 2019. O gringo, bastante agitado, conseguiu implementar seu estilo de jogo de posse de bola e de muita intensidade logo nos seus primeiros jogos à frente da equipe santista.
Atuando no Atlético desde março de 2020, Sampaoli conquistou seu primeiro título no Brasil: o Campeonato Mineiro de 2020. No atípico Campeonato Brasileiro do ano da pandemia, com ausência das torcidas nos estádios, Jorge Sampaoli lidera o campeonato nacional, com 42 pontos conquistados.
Profissionalização de técnicos no Brasil
Há evidências da necessidade de uma revolução na profissionalização dos técnicos no futebol brasileiro. Nossos vizinhos argentinos que intensamente vivem o futebol nos mostram isso, e em dados: pesquisa realizada pela CIES Football Observatory, o Centro Francês Internacional de Estudo do Esporte, uma organização independente de pesquisa e educação, localizada em Neuchâtel, na Suíça, apontou que treinadores argentinos de futebol são maioria no mundo entre os profissionais estrangeiros.
Ao todo, 68 técnicos argentinos trabalham fora de seu país. Além disso, são inúmeros treinadores argentinos mundialmente conhecidos e vencedores, como Diego Simeone, no Atlético de Madrid, e Marcelo Bielsa, atualmente na Inglaterra. A nação vizinha tem cerca de 15 mil treinadores locais licenciados e exporta profissionais para a América do Sul e Europa devido a dois fatores principais: o grande interesse dos argentinos em seguir a carreira e a formação eficaz são fundamentais para esse poderio
Essa formação acontece desde a década de 1960. Os argentinos têm no país, desde 1963, um curso específico para a preparação de treinadores. Desde 1994, o certificado e a habilitação são obrigatórios para se trabalhar em clubes da elite da Argentina.
O curso local de técnicos é organizado pela Associação de Técnicos do Futebol Argentino (ATFA, na sigla em espanhol) e pode ser feito em 39 escolas espalhadas pelo país ou na modalidade virtual, em que apenas os exames finais são presenciais. É preciso cumprir três anos de aula no curso para receber o certificado de nível mais alto.
O diploma, aliás, é o único da América do Sul que é aceito também pela União das Federações Europeias de Futebol (UEFA), o que pode explicar a falta de treinadores brasileiros na Europa e a ausência de credibilidade de cursos brasileiros.
O currículo tem disciplinas como neurociência, psicologia, gestão de recursos humanos, história do futebol, métodos de treinamento, entre outros. A única exigência para se matricular é ter ensino médio completo.
Para Willer Henrique, analista de desempenho No Velo Clube e formado em Educação Física, o motivo para que haja mais argentinos do que brasileiros espalhados na Europa é o sucesso das técnicas dos hermanos.
“Se voltarmos ao passado, desde a década de 1950, os técnicos argentinos foram vencedores no Real Madrid e no Nice, da França. Técnicos que foram bicampeões no Atlético de Madrid e no Barcelona. O próprio Bielsa é reconhecido como uma “escola”, por seus seguidores como, por exemplo, Jorge Sampaoli”, comenta. Outro ponto favorável, segundo ele, é o idioma. “Mas, por outro lado, brasileiros também foram vencedores em Portugal, onde a característica do idioma também coincide”.
Um aspecto importante, na opinião do analista, é a disciplina tática dos argentinos:
No Brasil, tende-se muito ao improviso e à técnica individual dos jogadores. O Brasil é o país que mais demite treinadores. Os técnicos brasileiros, infelizmente, não conseguem desempenhar um trabalho duradouro, fazendo com que não procurem se revolucionar, taticamente falando.
Willer Henrique