Consequência da desigualdade social no Brasil e no mundo, a pobreza menstrual tem movimentado o debate público desde que grupos de defesa dos direitos das mulheres pressionaram para que o assunto entrasse na pauta do Congresso Nacional, com o objetivo de sanar a dificuldade de acesso a insumos de higiene menstrual. Hoje, no Brasil, 25% das adolescentes não possuem acesso a absorventes e, segundo estimativa do Banco Mundial realizada em 2018, pelo menos 500 milhões de mulheres no mundo não dispõem de instalações adequadas (como banheiro, vaso sanitário, chuveiro e estrutura de saneamento básico) para a higiene no período menstrual. Dados do Fundo da Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelam que 713 mil meninas vivem em condições precárias em suas residências no Brasil.
Na tentativa de se contrapor a essa realidade, surgiu em 2020 o projeto Flores de Resistência, que atua na periferia de Belo Horizonte auxiliando mulheres por meio da distribuição de absorventes e insumos de higiene. O período foi marcado pelo aumento da extrema pobreza e consequentemente da insegurança alimentar, fatores que “andam de mãos dadas” segundo Lorena Nonato, uma das representantes do projeto. Ela ainda completa: “Mulheres que estão em situação de pobreza menstrual, são mulheres que também passam por insegurança alimentar. Então, no final do mês é necessário escolher entre saúde, higiene e alimentação.”
Para Nonato, a falta de dignidade menstrual ainda é um tabu, e a negligência do poder público durante muito tempo fez com que essa discussão não ganhasse a devida importância. “Os absorventes são itens de primeira necessidade, mas na nossa legislação, não consta isso. É um dever do Estado que a dignidade menstrual seja garantida”.
Menstruação também é política
É visando garantir a dignidade menstrual, assunto de saúde pública, agravado com a pandemia, que a falta de acesso aos insumos de higiene movimenta projetos de lei ao redor do país. E no âmbito do Congresso Nacional, foi posto em pauta o então PL 4968/19 de autoria da deputada Marília Arraes (PT-PE). votado e aprovado na câmara e no senado federal. O projeto que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, foi sancionado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro no dia 7 de outubro, mas teve um dos seus pontos principais vetados. O artigo 1°, que estabelecia a distribuição de absorventes para estudantes de escolas públicas e pessoas em vulnerabilidade extrema e o artigo 3°, que inclui na distribuição, presidiárias. Como justificativa, o presidente relatou que o projeto aprovado pelo Congresso Nacional não previa a fonte de custeio para essas medidas. Na realidade, o texto estabelecia a utilização de recursos do SUS e para mulheres em situação de privação de liberdade do Fundo Penitenciário Nacional.
A senadora e líder da bancada feminina, Simone Tebet (MDB-MS), cobrou a necessidade de realizar a votação do veto parcial. Para a parlamentar, o projeto é a garantia de se diminuir a pobreza menstrual no país. Segundo Tebet, o projeto tem como medida a fraternidade, solidariedade e igualdade e, por isso, merece entrar em vigor. Senadores como Flávio Arns (Podemos-PR), Leila Barros (Cidadania-DF) e Fabiano Contarato (Rede-ES) manifestaram apoio à demanda da senadora. Em resposta aos pedidos dos mesmos, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), reafirmou que o veto será novamente discutido. A previsão segundo parlamentares ouvidos pelo G1 é que a derrubada do veto ocorra em dezembro.
Destoando um pouco do cenário nacional, Minas Gerais teve seu projeto voltado à dignidade menstrual aprovado. De autoria da Deputada Leninha (PT-MG) a agora chamada Lei da Dignidade Menstrual (Lei 23.904/2021), prevê a distribuição de absorventes em abrigos, escolas estaduais, presídios e em unidades básicas de saúde. Mas mesmo depois da sanção do governador Romeu Zema (Novo-MG), os absorventes encontram dificuldade para chegar a quem precisa. “Apesar da sanção do governador, falta ainda regulamentação da lei para que de fato, os absorventes possam ser adquiridos e distribuídos. Não precisamos de retórica, precisamos de ação prática e orçamento, já que o instrumento legal foi aprovado”, declara a parlamentar.
A deputada que também foi professora da rede estadual e municipal em Montes Claros, comenta o que levou a criação do projeto: “Foram inúmeras as vezes em que minhas alunas faltavam às aulas por dias seguidos, ou iam para a escola com blusas de frio amarradas na cintura mesmo no calor que faz na cidade. Isso é pouco perceptível a olho nu, mas quando se analisa o todo, a realidade amplifica os motivos. Ao longo da construção do nosso mandato, fomos percebendo a temática da pobreza menstrual sendo revelada. E a preocupação com a situação dessas pessoas foi crescendo cada vez que tomávamos mais conhecimento sobre a realidade.”
Sobre o recente veto do presidente Jair Bolsonaro e considerando o atual cenário brasileiro a deputada exprime sua indignação: “Há negligência com a pessoa humana, sobretudo, diante do absurdo quadro de desigualdade social, do número estrondoso de pessoas na extrema miséria. Não é apenas um descaso com a mulher, mas com o povo negro, periférico, com o pobre de uma maneira geral. E claro, somos a maioria da população brasileira, mulher, negra e pobre e nesse contexto estamos diante de uma política genocida, que retira cotidianamente os nossos direitos, os mais básicos.”
Meninas negras enfrentam mais dificuldades com a pobreza menstrual
A situação das meninas negras é ainda mais preocupante. O risco relativo delas estudarem em escolas sem papel higiênico é 51% maior do que para meninas brancas, segundo relatório da Unicef. Ou seja, além do impacto na saúde mental das jovens, a falta de acesso a produtos básicos contribui para aumentar a desigualdade na educação entre homens e mulheres.
Kelly Quirino, doutora em comunicação, jornalista e pesquisadora de relações raciais, avalia que a questão da precariedade menstrual está diretamente ligada ao racismo e ao machismo: “Quando o Estado não fornece absorvente nas escolas públicas está mantendo essa estrutura do patriarcado e da opressão de gênero. Ele está oprimindo as mulheres, é uma violência de gênero e de raça.”
Utilizando o conceito de interseccionalidade – que faz análises sociológicas com base nas identidades sociais e sistemas de dominação e opressão – ela ainda completa: “Em uma sociedade estruturada a partir do racismo, do patriarcado, da heteronormatividade, ser uma mulher negra e pobre é sofrer muito mais. Então, isso está diretamente ligado à pobreza menstrual e como afeta às mulheres pretas, porque representam em sua maioria as mulheres pobres no país.”
A importância da educação sexual
A educação sexual é um fator essencial no combate à pobreza menstrual. É através dela que desde criança se pode aprender sobre a sexualidade, cuidados de higiene, prevenção de doenças e, para as pessoas que menstruam, como o ciclo menstrual funciona. Mas essa é outra realidade que ainda está longe de ser democratizada na maioria das escolas brasileiras. A ausência dessas discussões em sala de aula são efeitos históricos do tabu em se falar sobre sexualidade e equivocadamente ligar o assunto apenas ao sexo, quando na realidade cumpre uma função social de ensinar sobre o corpo humano, suas funções, necessidades e desenvolver autonomia e autoconhecimento.
A estudante de medicina e integrante do projeto Flores de Resistência, Cecília Diniz vê na educação sexual um ponto de extrema importância na luta pela dignidade menstrual, uma vez que a menstruação faz parte do ciclo reprodutivo. A menstruação está ligada à fertilidade, infertilidade, doenças sexualmente transmissíveis, contracepção e doenças ginecológicas que causam prejuízo à saúde sexual. “Até hoje, muitas pessoas não têm noção e direito sobre o próprio corpo, e a menstruação está diretamente ligada a isso, porque a falta de acesso a infraestrutura necessária também é uma falta de direito sobre o corpo.” conclui a estudante.
Na falta de produtos como absorventes, coletores menstruais e calcinhas, são utilizados como alternativas panos velhos, pedaços de tijolos, papel higiênico e até miolo de pão, para conter o sangramento. O que pode causar alergias e problemas como infecções ginecológicas.
Mariana Teixeira* (59), é uma das muitas mulheres que vivenciaram a falta de absorventes, antes mesmo do assunto ser pauta, e relata os desafios do período menstrual nessa época. “Eu era moradora do interior, e não tínhamos acesso a nenhum absorvente ou algo do tipo. As mães faziam “paninhos” com tecido de fraldas, e, caso houvesse lençóis velhos, eram recortados e guardados para a ocasião.” Depois de algum tempo, com a chegada dos absorventes, denominados “modes” na época, ela começou a usar, deixando de lado os lencinhos usados anteriormente. Ela conta ainda que apesar de seu ciclo menstrual não ser intenso, ela tinha muita cólica, mas não deixava de frequentar a escola.
*Nome alterado para não expor a fonte.
Reportagem produzida por Amanda Maciel, Anna Nunes Reis, Filipe Souza, Isabela Mendes, Ketrey Aquino, Maria Carolina Firmino, Maria Eduarda Gonzaga, Maria Fernanda Lages, Pedro de Lima, Pedro Meinberg em atividade interdisciplinar orientada pelas professoras Adriana Ferreira, Fernanda Sanglard e Verônica Soares.
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