A pauta dos manicômios voltou ao debate público em Minas Gerais depois da decisão do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais de interdição ética dos 16 Centros de Referência em Saúde Mental de Belo Horizonte (Cersams), julgando que não são aptos para prestar assistência médica e hospitalar. Diante disso, a proposta virou tema de audiência pública na Assembleia Legislativa (ALMG) no último dia 24 de agosto.
Atrelado a isso, a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) realizou uma denúncia sobre a estratégia do Governo Federal e de seus aliados de desmontar o modelo de atendimento dos serviços de saúde mental direcionando os recursos somente para mais hospitais psiquiátricos.
Em contrapartida a decisão do CRM, Laura Camey, vice-presidenta da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG) e usuária dos serviços substitutivos do SUS-BH, relata que os Cersams não são serviços hospitalares e sim Centros de Atenção Psicossocial (Caps). “O CRM traz um papel de desinformação geral, retratando os Cersams de forma contrária aos serviços prestados. A urgência psiquiátrica precisa de escuta, afeto e cuidado, através da confiança e vínculo. Os usuários dos Cersams não precisam de um leito hospitalar. Inclusive, temos dez leitos em Belo Horizonte no hospital geral para aqueles que precisam de cuidados físicos, mas as Cersams prestam outro tipo de cuidado, que não está no campo biomédico centrado, como o CRM quer retratar”, afirma Laura.
O psicólogo e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista Silvio Yasui aponta que, desde 2016, a política de saúde mental vem sofrendo ataques de grupos interessados em voltar aos antigos modos de cuidar, privilegiando a internação. “Trata-se de um movimento conservador que se articula com outros movimentos que buscam desmontar várias conquistas proporcionadas pelas políticas públicas em muitos setores. Defender as conquistas da política pública de saúde mental, bem como das outras políticas, é defender que o caminho para a sociedade brasileira é rumo à justiça social, na perspectiva da produção de laços sociais mais solidários e generosos. É defender a democracia”, diz o psicólogo, que é também uma referência no debate sobre saúde mental no Brasil.
Ao receber a notícia do possível fechamento dos Cersams, muitos usuários sentiram apreensão, chegando a entrar em crise, de acordo com Laura. “Os Cersams são lugares de sociabilidade, fechá-los significa tirar toda uma construção de pertencimento e identidade das pessoas. É uma violência imensurável”, afirma.
Luta antimanicomial no Brasil
A luta antimanicomial é um movimento social que nasceu na cidade de Bauru, em 1987, no II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental. Esse evento contou com a participação de profissionais, gestores, usuários dos serviços e familiares, professores, estudantes e pessoas interessadas em debater o tema da saúde mental e da violência institucional sofrida pelas pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos. A partir daquele ano, instituiu-se o dia nacional da luta antimanicomial, que passou a ser celebrado em 18 de maio.
Segundo informações disponíveis na carta de apresentação e de princípios da Coletiva de Luta Antimanicomial do Paraná (Clap), a ideia do movimento surgiu “devido à percepção de familiares, usuários e profissionais (fora da psiquiatria tradicional) da ineficácia do modelo de cuidado proposto pelos sanatórios e manicômios – que envolviam hipermedicalização, cárceres eternos, procedimentos invasivos experimentais, segregação e exclusão social, prejuízo da participação e funcionalidade, incapacidades e morte”.
Esse movimento se ampliou por quase todos os estados brasileiros, conquistando a adesão de trabalhadores da saúde, pacientes e familiares, gestores, pesquisadores, estudantes e artistas,influenciando na construção de uma nova política pública de saúde mental, que tem como eixo o cuidado em liberdade e em uma rede de serviços comunitários de saúde mental, como, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Como movimento social, contribuiu, ainda, para a promulgação da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida por Lei da Reforma Psiquiátrica.
A luta antimanicomial busca uma sociedade sem antigos e novos manicômios, sejam eles físicos ou mentais. Ela almeja acabar com a segregação e o preconceito perpetuados pelo manicômio, que todos sejam respeitados em sua individualidade, vistos como seres autônomos e com potencialidade de superação de suas questões, sem necessidade de isolamento e exclusão. Acabar com o estigma de que pessoas com transtornos mentais, devem ocupar um lugar de submissão ou de subalternidade e que a relação médico e paciente continue sendo hierárquica e de poder imposta como no período colonial e manicomialista.
Além disso, de acordo com Silvio Yasui, um dos maiores desafios da luta é o de mudar as mentalidades, mudar um certo lugar social que identifica o sofrimento mental como incapacidade, desabilidades. “Isso gera por vezes preconceitos que levam à exclusão, ao isolamento. Sofrimento mental é parte da vida, é um uma reação humana diante dos imponderáveis da vida”, explica o psicólogo.
Atrelado a isso, na visão da psiquiatra Vivian Gama, tendo como parâmetro sua experiência na área, a população brasileira não tem em geral bom acesso à política de saúde mental e está longe de conseguir ter um sistema de saúde pública eficiente neste âmbito.
Para Saber mais
A Coletiva de Luta Antimanicomial do Paraná (Clap) é composta por trabalhadores, usuários e familiares em defesa das Lutas Antimanicomial e Antiproibicionista. O movimento nasceu com o intuito de defender a construção de uma sociedade sem manicômios. Pretende que a luta antimanicomial seja uma causa abraçada por toda a sociedade e a reforma psiquiátrica se torne um imperativo cultural, que não possa ser revogado por meio de políticas de governos transitórios.
Questionada sobre a importância do movimento na vida das pessoas com transtornos mentais, a Clap, através das palavras de Lírio Negro usuário do CAPS Matriz, artista visual e educador popular, informou que “Vivenciamos o estigma que usuários da rede de atenção psicossocial ou pessoas egressas de hospital psiquiátrico ocupam um lugar de submissão ou de subalternidade e que a relação médico e paciente continue sendo hierárquica e de poder imposta como no período colonial e manicomialista. Por uma política transversal e pelo fim do estigma e garantia da participação de usuários em espaços democráticos de decisão a exemplo dos conselhos gestores e de saúde, conferências e audiências públicas. Para que as diretrizes da Política Nacional de Humanização se façam presentes, pelo fim do estigma as pessoas em adoecimento psíquico e dando continuidade ao legado de Nise da Silveira onde usuários, trabalhadores e gestores são essenciais para que luta antimanicomial aconteça até a erradicação dos manicômios e das internações compulsórias no nosso país. Não há possibilidade de cura privada de liberdade, de escuta qualificada e respeito à diversidade humana.”
Reportagem desenvolvida pelas monitoras Fernanda Bertollini e Isabella Alvim.
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