O som do surdo, agogô, tamborim e do repique se misturam em uma sinfonia que torna ao corpo impossível a missão de permanecer parado. Por trás de cada instrumento, uma dupla de braços trabalha incessantemente em um movimento ritmado e, por alguns meses, ensaiado. O par de olhos que acompanha cada instrumento na bateria é fundamental para transformar os sons destoantes em algo uníssono. O apito e o movimento constante das mãos caracterizam aquele que organiza e carrega a responsabilidade de comandar a bateria de carnaval, o regente.
Jhonatan Melo, 26 anos, nasceu em Eunápolis, cidade do interior da Bahia, próxima a Porto Seguro. Mesmo vindo de um dos estados com maior tradição carnavalesca, foi em Belo Horizonte que ele encontrou aconchego e solo fértil para explorar o que viria a ser uma grande vocação. Quando nos encontramos, em um sábado à tarde bastante primaveril — ainda que estivéssemos no inverno -, Jhonatan encerrava uma oficina que estava realizando com outros integrantes de um dos blocos em que ocupa a posição de regente, o Garotas Solteiras. Mesmo em setembro, cinco meses antes do carnaval, há a preocupação de começar os preparativos para a festa do próximo ano.
Na ocasião daquele sábado, além do ensaio, o objetivo de Jhonatan era ensinar o uso básico de alguns instrumentos importantes dentro da bateria. Ele explicou que, com o crescimento do carnaval, muitas pessoas têm interesse em integrar a bateria dos blocos, mas muitas vezes não possuem nenhuma experiência. Jhonatan defende a democracia em todos os âmbitos, e nesse caso não poderia ser diferente. Como músico e bom regente, no entanto, acredita que a qualidade do som deve ser garantida. Ao unir essas duas ideias, o regente passa a ter um papel social que não é necessariamente seu, mas que, ao ocupá-lo, contribui para a permanência do carnaval de BH como o conhecemos. Os regentes do carnaval, cuja missão é tocar a bateria, viram professores e fomentadores da música na capital.
Uma característica peculiar do carnaval de Belo Horizonte é a força política que impulsionou o seu surgimento por volta de 2012. Não é coincidência que no ano seguinte, em 2013, a capital mineira, como muitas outras do Brasil, passou por um momento de efervescência política, com atos alavancados principalmente pela juventude.
Apesar de o carnaval ter tomado proporções inimagináveis e repentina nos últimos dois anos, coletivos como Tarifa Zero e Praia da Estação foram alguns dos responsáveis por sua consolidação na cidade a partir da ideia de ocupação do espaço público. “O pontapé inicial, na minha opinião, foi o Praia da Estação. Com uma ação política que batia de frente com a política do Márcio Lacerda, que proibia o uso do espaço da Praça da Estação. O coletivo incentivou o surgimento de outros blocos com essa pegada engajada. Filhos de Tcha Tcha, Tico Tico Serracopo e Pula Catraca são blocos que surgiram dessa movimentação, e que começaram a ocupar os espaços da cidade de forma lúdica, mas com a ideia de confrontamento urbano”, explicou. E mesmo que hoje tenha sido atribuído ao carnaval grande valor comercial, muitos blocos continuam trabalhando com afinco para que essa continue sendo uma festa política e de resistência na capital mineira.
Jhonatan, por exemplo, integra o grupo de pessoas que acompanham o processo de estabelecimento de uma cultura carnavalesca em BH e enxergam uma potência política enorme nos blocos de carnaval. Hoje, ele integra o posto de regente ou subregente em 17 blocos que saem nos cinco dias de carnaval. Apesar do gosto pela música e pela festa, Jhonatan se envolveu com os blocos inicialmente como uma forma de engajamento político, em 2013.
Na época, ele integrava a bateria do Pula Catraca, bloco do coletivo Tarifa Zero. Naquele ano, ele abandonou o curso de artes visuais na UEMG para começar arquitetura, e se interessava bastante pela discussão da ocupação do espaço público — justamente a proposta dos principais coletivos envolvidos nesse primeiro momento do carnaval de rua. A partir daí, Jhonatan começou a se envolver cada vez mais com os blocos politizados, e os considera importantes agentes de conscientização e visibilidade.
“Falar sobre movimento transsexual em um bloco de carnaval através, por exemplo, de Cristal Lopez, é incrível. Hoje, uma mulher, trans, negra, é considerada uma das maiores rainhas de bateria do carnaval de BH. Você mobiliza algumas pessoas, você mostra a cara dos movimentos, dá lugar de fala. O fato de o Juventude Bronzeada se denominar um bloco de esquerda também é super importante. Nesse ano de 2017, eles fizeram um ato contra machismo maravilhoso. São campanhas políticas que com a festa ganham força e visibilidade. Muita gente sabe que o Então, Brilha! é um bloco LGBT, porque eles saíram no carnaval com as cores da bandeira, soltaram balões, e isso faz com que as pessoas se conscientizem sobre essas causas”, explicou.
Outra reflexão interessante de Jhonatan tem início na época em que ele cursava sua primeira graduação e trabalhava no Instituto Inhotim. Lá, sua ainda latente paixão pela tropicália ganhou mais espaço entre os assuntos de seu interesse e hoje é objeto de pesquisa e estudo para ele. Como no movimento artístico de Hélio Oiticica, Jhonatan acredita que o corpo possui um papel importante de ocupação da rua, porque ele é um objeto político. Outro ponto de interseção entre a tropicália e o carnaval apontado por ele é o da ressignificação dos espaços. Tanto o carnaval, quanto a tropicália enquanto movimento artístico, propõem que os espaços comuns sejam ressignificados e se tornem lugares de performance e de expressão artística.
O Alô Abacaxi, que saiu pela primeira vez em 2017, é outro bloco em que Jhonatam atua como regente. No melhor estilo tropicalista, Alô Abacaxi trouxe no carnaval deste ano elementos performáticos às ruas do bairro Santa Tereza. Além dele, Jhonatan atua também, de diferentes formas, em blocos como o Pisa na Fulô, Então, Brilha!, Juventude Bronzeada, Manjericão, Filho de Tcha Tcha, Dos Beethoven, Garotas Solteiras, Pula Catraca.
O carnaval integra hoje parte importante e muito relevante de sua vida. Apesar de a tendência ser a descaracterização do carnaval devido ao interesse das grandes empresas em patrocinar o sucesso belorizontino, que arrastou milhões de pessoas para vários pontos da cidade, ele garante que continuará lutando — junto com muitos outros — por uma festa de resistência, democrática e de ocupação, fazendo com que BH seja, cada vez mais, uma cidade cujo espaço é utilizado por todos.
Perfil escrito por Giovanna Mozelli e originalmente publicado na revista Metáfora.
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