
Para além de um simples museu, o Instituto Inhotim representa uma intervenção paisagística e cultural que alterou a geografia da cidade de Brumadinho. O Instituto está instalado em uma cidade devastada pela atividade mineradora e que, em 2019, foi vítima da tragédia ambiental decorrente do rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão. Convivendo com os impactos da mineração, que moldam a paisagem de seu entorno, Inhotim se apresenta hoje como um testemunho de preservação ambiental e valorização da cultura.
O acervo botânico de Inhotim abriga cerca de 4.300 espécies, muitas delas raras e exóticas, provenientes de diversos continentes. Destaca-se também a coleção de palmeiras, reconhecida como a maior do mundo. Esta biodiversidade posiciona Inhotim como um centro de pesquisa científica e de conservação, protegendo espécies que, fora dali, poderiam estar ameaçadas pelo avanço da atividade agrícola ou minerária.
Além do acervo vivo, o Instituto mantém 250 hectares de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), consolidando um corredor ecológico vital para a região. A gestão deste espaço segue padrões de excelência que contrastam com a gestão ambiental do território da cidade de Brumadinho.
Inhotim, laboratório de recuperação ambiental
A importância do Instituto Inhotim também está ligada a seu papel como laboratório de recuperação ambiental. Estudos acadêmicos mostram que a área ocupada hoje pelo museu já foi uma região degradada pela mineração. Na dissertação de mestrado O Instituto Inhotim na sensibilização ambiental, Maria Luiza Carlette Jungers aponta que o idealizador Bernardo Paz “transformou uma propriedade que antes abrigava um intenso trabalho minerário altamente poluidor em um espaço de arte contemporânea integrado à natureza”.
A pesquisa destaca ainda o “potencial de reversão ambiental” do projeto e sua função educativa: visitas mediadas permitem que arte e botânica se tornem ferramentas de sensibilização ecológica. Em 2015, cerca de 40% dos visitantes declararam que a arte integrada ao ambiente os fez refletir sobre os danos causados pelo ser humano, conforme trabalho disponível no portal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A arquiteta e urbanista Marimar Ferrer, professora de paisagismo e militante ambiental, reforça a importância do Instituto. Para ela, “o Inhotim tem um valor internacional para Minas, não só pela arte contemporânea, mas porque é um espaço paisagístico de altíssima qualidade”. Marimar lembra que o próprio terreno do museu foi, no passado, uma área de mineração degradada. Sua conversão em um parque museológico seria, segundo ela, “a prova de que a recuperação ambiental é possível quando há investimento, tempo e vontade política”.
Inhotim e Brumadinho: os contrastes
Na avaliação do paisagista Vinícius Rodrigues, o Instituto Inhotim oferece uma experiência visual marcante. No entanto, apesar de sua importância cultural, o local acaba afastando o visitante da realidade social e ambiental de Brumadinho.
Segundo ele, o público é levado para um ambiente encantador, que nem sempre incentiva a reflexão sobre o território afetado que existe do lado de fora dos muros do museu. “É muito mágico você entrar naquele espaço e aquilo realmente ser uma maquiagem ali de uma outra realidade… As pessoas entram em Inhotim e acham que aquilo é um mundo mágico, e não estão preparadas para refletir para além dos muros ou dos significados de tudo aquilo”.
O paisagista defende que Inhotim deveria ir além de sua existência como espaço para contemplação e assumir um papel mais ativo na reconstrução ambiental e simbólica da cidade de Brumadinho. Para ele, o museu poderia funcionar como uma ponte entre o “jardim idealizado” e as áreas destruídas pelo rompimento da barragem no ano de 2019. “Tem que conectar o Inhotim a essas áreas de recuperação. Ao invés de virar as costas, de criar aquele mínimo mundo perfeito dentro dos muros de Inhotim, a gente pode fazer eixos de reconciliação, jardins experimentais, espécies nativas, viveiros comunitários, pontos de memória e restauração ecológica”.
Além das vidas perdidas, a lama tóxica marcou Brumadinho de forma persistente. Um estudo científico publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fiocruz e outras instituições, mostra que a poeira de minério em suspensão aumentou em 75% os casos de alergias respiratórias infantis em algumas localidades. Além disso, metais pesados foram encontrados no organismo de crianças.
O jornalista Felipe Oliveira*, que atua na área de gestão ambiental, reconhece essa dimensão negligenciada quando diz que “a gente não pode tapar o sol com a peneira. A grandiosidade do que aconteceu é muito maior do que a beleza do Inhotim”. Para ele, uma cobertura jornalística responsável deveria contextualizar o museu dentro de uma cidade que foi e ainda é profundamente afetada.
O jornalista também explica que empresas como a Vale buscam frequentemente construir narrativas positivas através do investimento cultural, mas que isso não muda a percepção de quem viveu o desastre:
Para quem pesquisa e apura, ou para quem viveu a tragédia, isso não altera a realidade. Mas quem se informa só pela grande mídia pode ter a sensação de que a empresa está ‘fazendo muito'” – Felipe Oliveira*, jornalista.
* Nome fictício. Identidade protegida a pedido do entrevistado.
Para os moradores da cidade, porém, a realidade é outra: o prefeito de Brumadinho já declarou publicamente que o Rio Paraopeba está “abandonado”: “é inaceitável que, após tanto tempo, ainda não tenhamos uma solução definitiva. Brumadinho está sendo revitimizada dia após dia pela negligência e pela impunidade”.
Na mesma ocasião, Guilherme Morais, secretário de Governo e Reparação, afirmou que “os danos ambientais são incalculáveis e nada foi feito. Também não podemos ignorar que, a cada temporada de chuvas, a situação se torna uma tortura. O rio está assoreado e, se antes havia enchentes de água e barro, hoje há enxurradas contaminadas por rejeitos da Vale, invadindo casas, quintais, hortas, comércios e atingindo pessoas”.
Cinco anos depois da tragédia, a cidade de Brumadinho ainda vive sob os efeitos físicos e psicológicos do trauma, incluindo o medo latente de novos rompimentos. A presença constante da mineração, com seus caminhões, sirenes e barragens, reforça a sensação dos moradores de viver sobre um terreno provisório.
O Relatório de Análise de Acidente de Trabalho ressalta que os rejeitos atingiram severamente o Rio Paraopeba (LINKAR COM MATÉRIA DO RIO PARAOPEBA DO OUTRO GRUPO) , um dos mais importantes canais fluviais do estado de Minas Gerais, comprometendo o abastecimento e alterando ecossistemas por dezenas de quilômetros.
“A água é essencial para a sustentabilidade, e a crise ambiental é sistêmica”
– Relatório de Análise de Acidente de Trabalho.
Nos bairros mais próximos ao Rio Paraopeba, moradores relatam que não podem mais pescar, nadar ou usar a água para irrigar plantações. O curso d’água, que antes sustentava os modos de vida da população, hoje está constantemente associado ao medo e à contaminação.
O Relatório de Análise de Acidente de Trabalho expõe como os critérios técnicos de estabilidade foram flexibilizados para manter a operação da barragem. A tabela a seguir ilustra a distância entre o que era recomendado por especialistas e o que foi aceito na prática para a emissão dos laudos de estabilidade:

Arte: Amanda Gonçalves
A responsabilidade final pela fiscalização recai sobre o Estado. A Carta Internacional sobre recursos hídricos lembra que a crise ambiental exige uma governança robusta. O Estado deve arcar com a responsabilidade de vistoriar e garantir que a atividade mineradora aconteça sem oferecer riscos à população local.
Greenwashing?
O Instituto Inhotim, como diversas instituições culturais de grande porte, demanda recursos massivos para sua manutenção. Nesse contexto, o anúncio de um investimento de até R$ 400 milhões pela Vale, através do Instituto Cultural Vale, ao longo de dez anos, surge como um fato determinante para o futuro do museu. O investimento é apresentado publicamente como uma “parceria inovadora voltada para o desenvolvimento socioeconômico de Brumadinho“.
Este aporte garante a continuidade das operações, a manutenção dos jardins e a expansão das atividades educativas. No entanto, a origem desse dinheiro – a mesma empresa responsável pela devastação da cidade – cria um dilema ético.
A leitura jurídica deste investimento é cética e crítica. Raymundo Campos Neto, advogado que atuou na defesa de vítimas de outra tragédia, em Mariana, é enfático ao classificar essa movimentação:
O investimento da Vale no Inhotim se aproxima mais de uma estratégia de marketing verde (greenwashing) do que de uma medida jurídica efetiva de reparação” – Raymundo Campos Neto, advogado.
O argumento central é que grandes corporações utilizam aportes em cultura e meio ambiente para construir uma “narrativa pública de responsabilidade social”. Ao associar sua marca à beleza e à sofisticação de Inhotim, a Vale busca melhorar sua imagem, reduzindo a pressão pública e política. Isso opera como uma forma de “apaziguamento social”.
Segundo Campos Neto, três eixos devem marcar o futuro jurídico do desastre:

Arte: Ana Luisa Maciel
Esse último ponto faz com que Brumadinho junte-se ao precedente aberto pelo desastre de Mariana, cuja responsabilização avança em tribunais estrangeiros.
Para além de Inhotim: riscos à saúde
A tragédia da Barragem da Mina Córrego do Feijão não terminou em 2019. Em Brumadinho, o desastre continua se manifestando no corpo das pessoas. O que antes era uma cidade tranquila, segundo repetem os moradores, tornou-se um território onde o ar, a água e o cotidiano carregam incertezas. A saúde da população passou a refletir essa vulnerabilidade.
Quando uma cidade inteira é atingida por rejeitos de mineração, os efeitos não desaparecem quando a lama seca. O ambiente passa a carregar substâncias, poeira, instabilidade social e emocional, e isso sustenta um ciclo prolongado de exposição. A Fiocruz Minas, que conduz o maior estudo de saúde já feito na região, afirma que os efeitos podem durar décadas.
Ainda que muitos resultados estejam em andamento, já existe um consenso entre pesquisadores: viver em uma área atingida por rejeitos e cercada por mineração ativa traz riscos à saúde física, emocional e social – e esses riscos não podem ser ignorados.
A enfermeira Sirlane Gonçalves, que há 31 anos atua em saúde da família, urgência e emergência no SUS, testemunha esses problemas em seu cotidiano profissional. “Já existem estudos que comprovam influência no desenvolvimento infantil devido à exposição aos acontecimentos”. A afirmação se refere tanto aos aspectos ambientais (partículas químicas no ar, poeira metálica, alterações no solo) quanto aos aspectos emocionais de tragédias ambientais como o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão.
Mesmo sem apontar diagnósticos fechados, os pesquisadores têm observado crianças mais ansiosas, dificuldades de concentração, atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor e impacto do estresse familiar sobre o comportamento infantil são relatos frequentes entre a população de Brumadinho.
Esses efeitos são comuns em áreas atingidas por desastres ambientais. Segundo Sirlane, a criança não sofre apenas pelo ambiente físico, mas também pelas transformações ao redor: “mudança de casa, tensão constante dos pais, luto, insegurança… tudo isso influencia no desenvolvimento”.
Outro ponto destacado pela entrevistada é o aumento das alergias após a exposição à poeira de minério. A Fiocruz também investigou essa relação, já que a cidade está cercada por mineradoras em pleno funcionamento e, durante a seca, a poeira se espalha com força
Nesse contexto, a enfermeira observa um padrão: quanto maior a poeira, maior o desconforto respiratório. Os moradores confirmam essa percepção diariamente. Um deles relata:
Não tem como não viver com a poeira. As casas ficam sujas, tem que limpar todo dia. Aquele poeirão na cidade fica até feio”.
Poeira fina, partículas metálicas e alterações no ar são fatores que costumam agravar alergias e asma, especialmente em crianças e idosos. Embora nem todos os casos possam ser atribuídos exclusivamente à mineração, o ambiente cria condições para que doenças respiratórias se tornem mais frequentes e mais intensas.
De cidade tranquila a território pressionado
Luís Paulo, morador de Brumadinho, lembra com nitidez:
Brumadinho era uma cidade muito tranquila, muito bacana de viver” – Luís Paulo, morador de Brumadinho.
Essa tranquilidade desapareceu com a chegada das empreiteiras, do trânsito pesado e da sensação de urgência permanente. A mineração, que antes operava nos bastidores da cidade, passou a ocupar as ruas e as casas:
Hoje está uma cidade completamente alugada pelas empreiteiras… A cidade está adoecida com tudo que está acontecendo” – Luís Paulo, morador de Brumadinho.
A palavra “adoecida” resume o sentimento coletivo, que remete a algo que se rompeu e que não pode ser reconstruído apenas com obras ou indenizações. Há um desgaste emocional e social que afeta a percepção de pertencimento.
Nesse cenário de devastação, o Instituto Inhotim é objeto de admiração para o morador: “É um polo de qualidade de vida dentro do Inhotim… bom de visitar.”, afirma Luís.
No entanto, essa admiração vem acompanhada de uma separação clara: o museu é uma realidade “dentro” que não conversa com a de “fora”. Para Luís Paulo, o museu traz reconhecimento para Brumadinho, mas não compensa a perda da antiga normalidade.
Mineração como dependência
A fala mais contundente do morador aborda um tema recorrente na região: a dependência econômica:
Se a mineração acabasse em volta de Brumadinho, seria um caos. A cidade vive disso” – Luís Paulo, morador de Brumadinho
Esse é o ponto mais complexo da relação entre devastação e desenvolvimento. Para Luís Paulo, a mineração é perigosa, incômoda e suja, mas também é a base de renda da maior parte da população local. O ideal de “fim da mineração” também representaria desemprego e desamparo, inclusive para programações culturais que recebem investimentos das empresas mineradoras, como o Instituto Inhotim.
Futuro de Brumadinho
Brumadinho é hoje uma cidade que tenta seguir em frente carregando duas realidades muito diferentes. De um lado, um dos mais importantes museus a céu aberto do mundo. Do outro, a população que convive com o impacto da atividade mineradora e carregam lembranças difíceis da tragédia ambiental de 2019.
O museu é motivo de orgulho para os moradores, mas ele não consegue – e nem deve – apagar o que aconteceu.
Reportagem desenvolvida por Amanda Gonçalves, Ana Luisa Maciel, Bernardo Batista, Larissa Gino e Rafaela Berigo para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital no campus Coração Eucarístico sob supervisão da professora Nara Lya, no semestre 2025/2.




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