Em dezembro de 2023, a COP28 foi encerrada com um acordo explícito para acabar com o uso de combustíveis fósseis, mas não definiu metas precisas para eliminar gradualmente as fontes de energia não renováveis. A meta até 2050 é alcançar a chamada neutralidade de carbono, ou seja, reduzir e evitar as emissões de gases de efeito estufa compensando as emissões restantes por meio do uso dos chamados créditos de carbono. O principal instrumento para alcançar este objetivo é a transição energética, ou seja, a passagem de uma matriz energética focada nos combustíveis fósseis para uma com baixas ou zero emissões de carbono, baseada em fontes renováveis.
O processo de transição energética não é novo na história. No passado, vivemos outras grandes mudanças que marcaram época, como a passagem da madeira para o carvão, e do carvão para o petróleo. O que diferencia esta transição das anteriores é a urgência.

O mapa da transição energética
A matriz elétrica no Brasil é, em sua maior parte, renovável. Segundo o balanço energético de 2023 realizado pela empresa de pesquisa energética, as usinas de Itaipu, de Belo Monte e de São Luiz dos Tapajós são algumas das responsáveis por cerca de 62% da produção de energia elétrica no país, que oferecem essa energia “limpa”.
O estudo revisão da política energética do Brasil 2025, realizado durante a COP 30, em Belém, elaborado pela Agência Internacional de Energia – AIE, reconhece o Brasil como a principal liderança global na transição para uma economia de baixo carbono, pelo seu “compromisso” em promover uma transição “segura, inclusiva e sustentável”.
Embora ferro e o aço sejam necessários para a infraestrutura verde, novos minérios assumem papel central. O lítio e o cobalto são a base das baterias. O níquel é chave para usinas eólicas, enquanto o cobre garante a transmissão.
Outro destaque são as terras raras, como o neodímio, que são úteis na fabricação de ímãs para indústria automotiva, de semicondutores, aeroespacial e de defesa.
O protagonismo de Minas Gerais e os minerais estratégicos
Minas Gerais tem ocupado um papel central no mapa da transição energética no país devido ao grande potencial de minerais estratégicos, como por exemplo o lítio, que deu origem ao Lithium Valley Brazil, lançado em maio de 2023 na Nasdaq (maior bolsa de valores do mundo em negócios de tecnologia e inovação) pelo Governo de Minas Gerais. O intuito da iniciativa é atrair investimentos para fortalecer a cadeia produtiva do lítio no estado.
Atualmente, a única mina “oficial” de terras raras no país é a Serra Verde, em Minaçu, Goiás. Essa é a primeira fora da Ásia a produzir quantidades significativas desses metais.

No entanto, as promessas de mineração “verde” enfrentam graves questionamentos, como pontua Jeanine Oliveira, ambientalista e ativista do movimento “Tira o Pé da Minha Serra”:
“A mineração, por sua natureza destrutiva, não consegue atingir índice nenhum de sustentabilidade”
Já Daniel Neri, Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e militante da Frente Mineira de Luta dos Atingidos e Atingidas pela Mineração – FLAMA, afirma que não existe transição energética.
Transição energética é uma falácia, é uma greenwash muito bem elaborado” – Daniel Neri
Ainda, segundo Daniel Neri, a transição energética no Brasil enfrenta muitas limitações na prática. “Olhe para o balanço da Petrobras: quanto ela investiu em transição energética? Apenas 0,16% do que havia prometido”, criticou.
Jeanine Oliveira aprofunda a sua crítica ao modelo mineiro, apontando a gestão hídrica como o ponto de maior conflito. Ela destaca que a expansão da mineração é uma realidade:
Mineração como chave da transição energética
A transição energética exige uma demanda exponencial por minérios críticos, como lítio e terras raras, essenciais para produção de baterias e tecnologias digitais. Como explica o pesquisador especialista no estudo de minerais pela FIEMG, Eduardo Neves.
É imprescindível a utilização de conversores de energia, principalmente dispositivos que conseguem concentrar muita energia em pouco espaço. Então, para isso, entram alguns elementos como os ímãs de alta performance, como ímãs de samário cobalto e ímãs de neodímio ferro boro”. – Eduardo Neves
O Green Paper 2025 do IBRAM mapeia as ações do Governo Federal para a mineração. A proposta principal é que o país avance rumo à industrialização verde. O objetivo é agregar valor e garantir uma inserção soberana nas cadeias globais.
A Amazônia, apontada como região estratégica, concentra reservas de bauxita, manganês, cobre, ouro e terras raras. Porém o documento alerta para a necessidade de adotar mecanismos rígidos de rastreabilidade, integrando a mineração a planos de desenvolvimento sustentável.
A ativista Esther Maria, do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, explica que a nova fronteira de exploração se divide entre minerais de eletrificação e digitalização, mas reproduz padrões antigos:
O que a gente vê é que a fronteira do lítio carrega consigo fronteiras dos velhos minerais de exploração de ferro, por exemplo, que reproduzem o mesmo padrão, o mesmo tipo de fronteira que a gente via anteriormente.’’ – Esther Maria
A nova fronteira da mineração: terras raras chegam ao Sul de Minas
Embora Minas Gerais não tivesse jazidas de terras raras oficializadas, esse cenário está prestes a mudar. Minas desse tipo foram descobertas no Sul de Minas, nos municípios de Poços de Caldas e Caldas, abrangendo cerca de 800 km² com argila contendo íons de terras raras, Esses elementos são valiosos porque têm propriedades químicas e magnéticas especiais, fundamentais para produzir tecnologias modernas. Ainda em 2024, o governo de Minas Gerais assinou um protocolo de investimento com a empresa australiana Viridis Mineração para a exploração da área. Depois do anúncio, a Agência Nacional de Mineração (ANM) divulgou que recebeu mais de 100 pedidos de diferentes empresas para implementação de estudos geológicos no local.
A Viridis, acenou com investimentos na casa dos R$2 bilhões e na possibilidade de gerar milhares de empregos nas cidades do Sul de Minas, com centenas de milhões de reais revertidos em impostos para as prefeituras e o estado. O volume de extração é igualmente massivo: ao cabo de 13 anos, 800 milhões de toneladas de argila seriam processadas. Segundo o pesquisador do Instituto CIT SENAI ITR, Eduardo Neves, cada tonelada de argila gera cerca de 1,5 kg de mineral puro.
A realidade no Vale do Jequitinhonha
As cidades de Poços de Caldas e Caldas têm vivido com incertezas dos impactos ambientais e promessas de prosperidade econômica. Em lugares onde a mineração que busca esses metais para a transição energética já chegou, a realidade não tem se mostrado muito animadora para a população que vive por lá, como é o exemplo do lítio no Vale do Jequitinhonha.

Esther Maria, ativista do Movimento Popular pela Soberania na Mineração, acompanha audiências públicas em cidades da região que têm atividade mineradora, como Araçuai, Salinas e Coronel Murta. De acordo com ela, a população não tem voz ativa sobre as decisões de espaços explorados e reflexos dessa mineração no meio ambiente local.
Além disso, quando se trata de sustentabilidade, a situação também é controvérsia. Segundo Esther Maria, hoje as próprias mineradoras contratam as consultorias que elaboram o licenciamento ambiental, o que gera um problema de legitimidade.
Existe, como parte do processo de licenciamento ambiental, o direito a rodadas de diálogo com as comunidades. Só que hoje em dia, quem realiza esses processos de elaboração dos relatórios de impacto socioambiental são consultorias contratadas pelas próprias mineradoras. Então isso gera um problema mesmo de legitimidade” – Esther Maria
A ativista também aponta para irregularidades no Conselho de Meio Ambiente do Estado (COPAM). Segundo ela, o COPAM está passando por algumas irregularidades: “Ele está com mandato vencido e teve também um processo de esvaziamento da representatividade de movimentos de ONGs em defesa do meio ambiente. Então hoje em dia o COPAM está majoritariamente ocupado por setores privados e instituições que a gente chama de ‘testas de ferro’”, explica.
Testas de ferro é um termo usado para pessoas que agem como intermediárias em negócios, emprestando seu nome para ocultar o verdadeiro interessado.
Investimentos e a contradição da sustentabilidade
O governador Romeu Zema (Novo) busca atrair capital estrangeiro para a mineração mineira. Para isso, a Invest Minas lançou um guia de minerais estratégicos em 2024. A divulgação foi feita na PDAC, principal conferência global da área. Mais tarde, o Estado confirmou um investimento de R$ 1,5 bilhão. O valor virá da Itaminas para a cidade de Sarzedo. O foco será o desenvolvimento tecnológico do setor.
Mesmo que o governo anuncie seus investimentos com o lema de “mineração sustentável” – como no caso da Mina de Capanema, em Ouro Preto – quem estuda meio ambiente e mineração tende a discordar.
A ambientalista Jeanine Oliveira afirma que é impossível existir um sistema de mineração sustentável. Segundo ela, as atividades de mineração não se sustentam ambientalmente devido aos danos irreversíveis à fauna e à flora local, e nem socialmente, em um cenário onde os mais impactados, junto ao meio ambiente, são os moradores das regiões mineradas, como os casos em Itinga.
Em meio a promoções de investimentos, o atual governador do estado de Minas Gerais não foi à COP 30 por alegar uma “série de dificuldades em relação à hospedagem em Belém”. A Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais enviou uma comitiva ao evento para representar o estado e substituir o governador.
Desigualdade que mata: as mulheres negras e o peso da mineração
Uma pesquisa realizada pela ONU Mulheres e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mostra que, em cenários de catástrofes climáticas ao redor do mundo, ainda que não especificamente ligadas à mineração, as mulheres têm até 14 vezes mais chances de morrer do que os homens. Esse risco ampliado está associado a fatores estruturais, como menor acesso a informações e sistemas de alerta. Responsabilidades de cuidado que dificultam uma fuga rápida e desigualdades econômicas que limitam sua capacidade de resposta.
Isso se dá por diversos fatores, como a desigualdade de acesso à informação e alerta – homens costumam ter mais acesso a rádios, celulares e redes de aviso. Responsáveis socialmente por crianças e doentes, as mulheres enfrentam maior dificuldade para fugir rapidamente.
Esse número é ainda maior quando se trata de mulheres negras. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizou uma audiência pública em 23 de setembro de 2025 sobre o tema. A convidada foi Ângela Maria Gomes, engenheira ambiental pela UFV e doutora pela UFMG. Ela explicou que mulheres negras sofrem impactos específicos em desastres. Isso ocorre pela exposição à falta de saneamento e à moradia precária
Desigualdade no mercado de trabalho e violência
A Psicóloga e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Camila Veras Pessôa ressalta que com a chegada das grandes empresas mineradoras vem a promessa de emprego e renda para a população, mas que elas atingem muito mais o público masculino do que o público feminino.
Segundo o movimento Women in Mining Brasil, que faz levantamentos sobre a participação das mulheres no setor da mineração, apenas 21% do quadro de funcionários das empresas mineradoras em atividade no país é composto por mulheres.
A falta de oportunidades no setor tem impacto direto sobre a autonomia econômica dessas mulheres, o que as torna ainda mais dependentes de seus parceiros. Essa relação de dependência reforça ainda mais as desigualdades de gênero, em que as mulheres têm menos controle sobre seus próprios recursos, dificultando a conquista de liberdade financeira.
Para Benilda Regina Brito, do Coletivo Nzinga, a instalação de mineradoras impacta os territórios. As comunidades passam a enfrentar abuso sexual e vício em entorpecentes.
A Agência Patrícia Galvão também sistematiza dados sobre o tema. O órgão aponta que os sete principais estados mineradores concentram 31,2% da violência contra a mulher no país. Estão no grupo: Pará, Minas Gerais, Bahia, Goiás, Maranhão, Piauí e São Paulo.
O impacto das mudanças climáticas e a reparação
De acordo com dados apresentados por Benilda Regina Brito em debate interseccional preparatório para a Marcha das Mulheres e COP 30, da comissão de defesa dos direitos da mulher da Assembleia Legislativa de Minas, atualmente, no Brasil existem 300 barragens em risco de derramamento e 67% da população que reside nas áreas de perigo ambiental são negras. Além disso, 80% dos indivíduos que migraram devido às mudanças climáticas globais são mulheres negras.

A Doutora Camila Veras Pessôa diz que essa reparação não deve ser apenas econômica:
Ela não passa somente pela indenização ou pela reassentamento das casas ou compra de móveis, ainda que tudo isso seja extremamente importante, mas é uma reparação que precisa ser estrutural” – Camila Veras Pessôa
Para ela, o respeito deve englobar o modo de vida, a natureza e os bens comuns. As tradições daquele território também importam. Afinal, essa região não é apenas uma delimitação geográfica, mas algo material e simbólico. É a partir dessa compreensão que o processo de reparação deve ser pensado.
Uma comunidade atingida, seja ela por uma empresa ou por um desastre ocasionado por um rompimento que causa sofrimento e diversos impactos psíquicos à população, precisa ter garantida uma reparação que não se limite apenas à dimensão material indenizatória.
Transição energética: movimento econômico ou ideológico?
Embora, essencialmente, a transição energética seja uma pauta ambiental, sua colocação como tema no cenário internacional passou a ter também um viés político e econômico. Relatórios da Agência Internacional de Energia (IEA) indicam que a transição envolve disputas por minerais estratégicos e investimentos de escala trilionária. Fatores que explicam por que o debate ultrapassa a dimensão ambiental e entra no campo da geopolítica.
Durante a COP30, realizada no Brasil em novembro de 2025, essa ótica foi reforçada quando o britânico Chris Fitzgerald, diretor de Assuntos Internacionais da Octopus Energy, uma das maiores empresas de energias renováveis da Europa, afirmou que a transição energética está acontecendo “por razões econômicas, e não ideológicas”. Embora isso indique uma mudança irreversível, o empresário alertou que a revolução não está chegando ao bolso das populações.
Camila Veras Pessôa, doutora em psicologia e autora da tese de doutorado “Os impactos psicossociais e a resistência das mulheres atingidas pelo rompimento da barragem da mineração na bacia do rio Doce em Minas Gerais”, diz que é o próprio estado que financia a destruição dos territórios historicamente ocupados pela população negra e indígena. Ela afirma que esse discurso de responsabilidade social, de sustentabilidade e geração de empregos é, muitas vezes, um mecanismo de exploração, extração, desigualdade, violência e violação de direitos da população.
Ela ainda crítica que as pessoas que hoje ocupam os cargos de poder legislativo no Brasil, são muitas vezes, empresários ligados diretamente ao lobby da mineração.
…é uma relação muito íntima entre poder público e poder político que, teoricamente, deveria garantir proteção a essas populações mais vulneráveis.” – Camila Veras Pessôa
Reportagem produzida por Laís Milagres, Leo Rocha, Luiz Otávio Teixeira, Paula Lagares e Thiago Marinho para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital no curso de Jornalismo do campus São Gabriel, semestre 2025/2, sob a supervisão da professora Verônica Soares.




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