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Quanto vale a vida no Vale?

Entre expectativas de desenvolvimento e denúncias de violação, o Vale do Jequitinhonha vive a tensão do “ouro branco”, que ameaça a região

No Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, a promessa de desenvolvimento pela exploração de lítio cai em contradições. Enquanto o lado empresarial e governamental celebra investimentos bilionários e fala em desenvolvimento sustentável, comunidades indígenas, quilombolas e rurais denunciam violações de direitos, falta de consulta prévia e impactos ambientais que afetam diretamente a água, o ar e a saúde da população.

Nós sofremos os impactos da mineração, não tem diálogo, e eles não consideram que aqui tem indígenas e povos quilombolas. Na verdade, eles querem que as pessoas achem que nós somos empecilho para o desenvolvimento.

Esse é o depoimento de Uakyrê Pankararu Braz, uma pesquisadora indígena da Aldeia Cinta Vermelha de Jundiba, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Em entrevista, ela relatou os problemas que vivencia na comunidade em que reside e nas comunidades próximas ao local onde acontece a exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha.

O metal que move a transição energética

De acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), o lítio é um mineral metálico, pertencente à família dos alcalinos (grupo 1 da tabela periódica), sendo considerado o metal mais leve e menos denso dentre todos. Segundo Elaine Santos, socióloga e pesquisadora pós-doutoral no Programa USP Cidades Globais (IEA), no artigo “O lítio no Brasil: história, políticas e desafios industriais”, o elemento foi descoberto em 1817, na Suécia, quando o químico Johan August Arfwedson o identificou ao analisar a petalita, mineral que havia sido catalogado anteriormente pelo mineralogista brasileiro José Bonifácio, que foi um dos líderes da Independência do Brasil.

No país, as primeiras ocorrências registradas de minerais litiníferos (aqueles que possuem lítio em sua composição) são de 1882, quando o geólogo e político brasileiro Joaquim Cândido da Costa Sena registrou a presença de espodumênio no Vale do Jequitinhonha, especialmente em cidades como Araçuaí.

Ao longo do século XIX e início do XX, esses minerais foram utilizados de forma limitada, sendo explorados por garimpeiros em escala artesanal. Portanto, nesse período, não houve exploração comercial nem aplicação industrial do lítio. O cenário mudou no século XXI e, nos últimos três anos, passou a ocupar o centro das atenções políticas e econômicas de Minas Gerais. Com a promessa de desenvolvimento econômico, geração de empregos e melhorias na região do Jequitinhonha, o lítio vem promovendo no Estado uma nova corrida do ouro, em busca do chamado ouro branco.

Luciano Andrey Montoro, professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a importância do lítio se dá por ser um elemento químico leve: “Quando a gente olha na tabela periódica, vê que ele está lá em cima, no topo, à esquerda. É uma posição que mostra que ele é um elemento bastante leve. O fato de ser leve é uma coisa importante porque faz com que os materiais das baterias sejam mais leves em termos de massa”. Luciano explica as principais formas que o lítio é encontrado na natureza:

A leveza, juntamente com o seu potencial eletroquímico e sua capacidade de armazenar energia, o transformaram em um dos insumos mais valiosos e estratégicos da atualidade. Luciano Montoro explica que o lítio é um íon e forma uma espécie de carga muito pequena, que tem a capacidade de entrar na estrutura de outros materiais e se acomodar em posições específicas. Por isso, é indispensável na produção de baterias recarregáveis utilizadas em carros elétricos, celulares, notebooks, tablets e sistemas de energia solar e eólica. Além disso, o lítio é importante na indústria de vidros e cerâmicas, na fabricação de graxas e lubrificantes, e na área farmacêutica, onde é utilizado como estabilizador de humor em tratamentos psiquiátricos. Ele também é considerado peça-chave da transição energética, um processo que promete substituir o petróleo por fontes limpas e sustentáveis. No entanto, essa promessa não é neutra, uma vez que, por trás desse discurso, o avanço da mineração traz à tona velhas disputas por território, riqueza e soberania.

A pesquisadora Elaine Santos explica que o lítio passou a ocupar esse papel estratégico por causa das mudanças climáticas e da corrida tecnológica mundial dos últimos anos. Ela lembra que, embora exista um artigo da década de 1970 que já apontava o lítio como futuro componente das baterias e das tecnologias de energia, foi a pandemia de Covid-19 que gerou uma verdadeira reviravolta no debate. Segundo ela, esse período escancarou como vários países haviam perdido suas cadeias de produção e passaram a depender quase totalmente de fornecedores externos. A interrupção de fábricas, o fechamento de fronteiras e a falta de equipamentos básicos mostraram que economias como de países europeus e Estados Unidos não tinham autonomia nem para produzir itens simples, como máscaras, muito menos para manter setores tecnológicos funcionando. A crise também deixou evidente o peso da China, que domina grande parte das cadeias mais tecnológicas e concentra a produção de insumos necessários para baterias, eletrônicos e energias renováveis.

Essa combinação de vulnerabilidade industrial e dependência internacional fez o tema ganhar espaço no noticiário e na política. Para Elaine Santos, a pandemia não criou o debate, mas tornou impossível ignorá-lo. Ao expor falhas e desigualdades nas cadeias globais, ela transformou o lítio, que antes aparecia mais em relatórios técnicos, em um assunto discutido publicamente, impulsionando pesquisas, planos estratégicos e disputas por minerais considerados essenciais para o futuro energético.

Do subsolo às disputas de poder 

A exploração sistemática do lítio no Brasil teve início apenas no século XX, quando ganhou relevância internacional em razão da industrialização e do contexto geopolítico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra Fria (1947-1991). Durante esse período, as potências buscavam minerais estratégicos para indústrias químicas, tecnológicas e militares. Nesse cenário, o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) iniciou nos anos 1940 levantamentos geológicos em Minas Gerais, com o apoio de técnicos norte-americanos.

De acordo com artigo “O lítio no Brasil: história, políticas e desafios industriais”, como resultado, no ano de 1959 aconteceu a primeira exportação de lítio brasileiro: toneladas de lepidolita, extraída no Vale do Jequitinhonha, foram enviadas ao Japão. Ainda na segunda metade do século XX, surgiram iniciativas industriais voltadas ao manuseio do lítio como a Organização Química Industrial de Metais e Minérios Ltda (Orquima), que teve suas atividades integradas à Indústrias Nucleares do Brasil (INB) a Companhia Estanífera do Brasil (CESBRA) e a Arqueana de Minérios e Metais, em Minas Gerais.

A grande virada de chave ocorreu em 1985, com a fundação da Companhia Brasileira de Lítio (CBL), instalada entre Araçuaí e Itinga, no Norte de Minas. A empresa, que se consolidou como referência nacional e internacional, iniciou suas operações em 1991 e começou a explorar o lítio com o objetivo de abastecer o mercado interno de medicamentos, vidros, cerâmicas e graxas. Esse movimento acabou transformando Minas Gerais no núcleo da produção e exploração industrial de lítio no Brasil, protegida por legislações que reconheciam o seu valor estratégico, como o  Decreto 2.413/1997, que atribuiu à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) a regulação da industrialização e comércio do lítio. 

Em 2022, o Decreto 11.120/2022 revogou essas restrições que limitavam à CNEN as responsabilidades de controle do lítio, liberando seu comércio exterior.  Após essa medida, empresas multinacionais passaram a atuar com mais agressividade e em maior escala em Minas Gerais, sendo a mais emblemática delas a Sigma Lithium, instalada em Itinga no ano de 2018, que rapidamente se tornou uma das maiores produtoras globais de concentrado de lítio. 

O movimento foi celebrado por governos como símbolo de modernização e desenvolvimento sustentável. A Sigma, por exemplo, se apresenta como produtora de “lítio verde”, um termo que, segundo a empresa, reflete processos mais limpos, sem o uso de reagentes químicos e com menor impacto ambiental. Mas Elaine Santos vê esse discurso com desconfiança. “Nem sempre elas tão contando essa história para quem está no território, elas estão contando essa história para investidores”, afirma. “Então, óbvio que para quem tá no território tem que lidar com as explosões, tem que lidar com a fumaça e essa poeira. Não, aquilo não é verde”. Para ela, o rótulo é menos sobre sustentabilidade e mais sobre legitimação política e econômica.

O processo de extração do lítio apresenta riscos significativos, incluindo poluição e esgotamento da água, perda de biodiversidade e emissões de carbono. Cada tonelada de lítio extraída resulta em 15 toneladas de emissões de CO2 no meio ambiente. O impacto ambiental, leva à escassez de água em regiões já áridas.

Segundo Luciano Montoro, o termo “mineral verde”, muito usado para se referir à uma forma de extração sustentável, depende de como se dá o processamento e o manejo dos elementos. O Brasil, apesar de possuir a oitava maior reserva mundial, demorou a perceber o potencial desse mercado. Historicamente, o país teve experiências isoladas, como a já citada CBL, que abastecia setores como o farmacêutico, o cerâmico e o de lubrificantes, mas sua atuação foi reduzida e ofuscada nas décadas seguintes pela falta de incentivos e políticas públicas.

Quando o mundo descobriu o lítio

Para Elaine Santos, países como a Bolívia foram pioneiros na industrialização estatal do lítio no século XXI, assim como o Chile, o que deixa o Brasil em status secundário dentro da própria América Latina.

Muito antes, ainda em 1990, a Sony, empresa japonesa na área de fabricação de aparelhos eletrônicos usou o lítio na fabricação da primeira bateria recarregável de iões de lítio, para sua nova câmera filmadora (que mais tarde seria conhecida como Handycam). Comparadas com as baterias tradicionais, as de íon de lítio carregavam mais rápido, duravam mais e tinham maior densidade de carga, aumentando a vida útil da bateria mesmo em uma estrutura menor. Desde então, os olhos de todas as fabricantes de equipamentos eletrônicos voltaram-se para o elemento.

Com o avanço tecnológico no século XXI, a produção de telefones celulares, notebooks, tablets, além de bicicletas e carros elétricos ficou cada vez mais dependente do lítio para a produção de baterias. Esse processo coincidiu com a consolidação do metal como um pilar da transição energética global, já que as baterias de íon-lítio se tornaram a tecnologia essencial para o armazenamento de energia em um cenário de descarbonização. Com a expansão de fontes renováveis, como solar e eólica, que são intermitentes, tornou-se fundamental armazenar a energia gerada, e as propriedades únicas do lítio (leveza, alta densidade energética e reatividade) o colocaram no centro dessa demanda mundial.  Com a necessidade global voltada para um desenvolvimento sustentável, com foco na descarbonização, o lítio passou a ser não somente um material rentável e eficiente para a produção de baterias, mas também uma fonte de disputa comercial em que nações “brigam” para tomar o controle mundial da produção de células de armazenamento (baterias). 

Como o elemento não é igualmente distribuído em todos os lugares do planeta, alguns países, como Argentina, Bolívia, Chile, México e Brasil, todos na América Latina, detém cerca de 2/3 de toda reserva do mineral. Grande parte do lítio está distribuído em países latinos, fragilizados com políticas de priorização da busca por renda em detrimento do desenvolvimento de vantagens competitivas baseadas em tecnologia. Isso beneficia diretamente os países desenvolvidos que conseguem produzir bateria e comercializar mundialmente, aumentando sua rentabilidade em relação aos países explorados. Dessa forma, o lítio é parte de uma das principais disputas geopolíticas de nações globais, causando ainda mais a desigualdade entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, já que os países onde o lítio é explorado compram mais caro o produto final (como celulares, notebooks e carros elétricos) do que vendem seu recurso natural.

A exploração no Vale do Jequitinhonha

O Vale do Jequitinhonha, no Norte de Minas Gerais, é uma das principais fontes de extração de lítio do país. Por isso, o governo estadual defende o Projeto Vale do Lítio como um motor de desenvolvimento econômico, responsável por atrair bilhões em investimentos, gerar empregos e impulsionar políticas de saúde, educação e infraestrutura. Segundo dados do Governo de Minas, mais de 5,5 bilhões já foram investidos na região. A promessa é transformar o Jequitinhonha em um polo global do lítio e inserir Minas Gerais no mapa da transição energética. Segundo Priscilla Sette, Analista Ambiental da FIEMG, na região do Vale do Jequitinhonha, a possibilidade de desenvolvimento regional é muito grande. “A exploração do lítio já existe na região há mais de 30 anos, e há a possibilidade de criar um polo de exploração, pois é uma região carente de infraestrutura. Criar um “vale do lítio” fortifica a região e, se bem engajado com as políticas públicas, possibilita a implantação da infraestrutura que a comunidade necessita”, afirma a analista. 

Mapa de minas Geras com destaque para os municípios que há projetos de exploração de lítio / Gil Leonard

Por outro lado, a exploração mineral também traz tensões: comunidades indígenas, quilombolas e rurais relatam violações de direitos, impactos ambientais (como poeira, doenças respiratórias, contaminação da água e rachaduras em casas) e ausência de consulta prévia, que é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e pesquisadores como Elaine Santos questionam se o modelo de mineração em curso repete um padrão de extrativismo dependente, em que os benefícios econômicos ficam concentrados enquanto os custos sociais e ambientais recaem sobre os territórios explorados. A chegada da mineração de lítio mudou o cotidiano de comunidades inteiras. A região, historicamente marcada pela seca, pela pobreza e pela ausência do Estado, vive agora uma nova corrida por riqueza e poder. 

Em processos que envolvem não só empresas, mas também a população, como nos casos da exploração, a participação popular é fundamental. Segundo  a Analista Ambiental, Priscilla Sette: “Ela (a participação popular) promove mais ênfase na fiscalização e no controle social, e traz perspectivas diferentes da comunidade, com um olhar diferenciado para as suas reais necessidades. A participação pública já é um instrumento utilizado nos processos de licença, e dependendo do porte do empreendimento (como na mineração), são solicitadas audiências e reuniões públicas onde todos os estudos ambientais são apresentados, com escuta ativa da comunidade. Essa escuta ativa é uma importante ferramenta de decisão para os órgãos ambientais na etapa do licenciamento.” 

Porém o discurso de desenvolvimento e sustentabilidade contrasta com a sensação de abandono e insegurança sentida por quem mora ali. A militante Joyce Silva, que integra a coordenação regional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) , afirma que a chegada das mineradoras escancara desigualdades históricas. “Quando chegam esses grandes empreendimentos, já são automaticamente 16 direitos violados. Tem comunidades que, por exemplo, estão há 30 anos tentando ter acesso a água e não têm. Aí chega o empreendimento como a Sigma e consegue uma outorga de água em menos de dois anos’’, critica. Segundo Joyce Silva, decisões importantes foram tomadas sem a participação da população. “Quando a mineradora chegou, ela passava a lista de presença sem cabeçário. Então, os moradores pensaram: ‘lista de presença eu vou assinar, estou aqui’ e através dessa lista de presença eles utilizaram para mudar uma estrada centenária”, denúncia.

Joyce Silva considera o nome “Vale do Lítio” um símbolo de apagamento. “A gente foi considerado anos e anos como o Vale da Miséria. O MAB reafirma que aqui a gente não tem só lítio. Aqui a gente, antes do lítio, aqui tem povo, aqui tem indígena, tem quilombola, tem cultura, tem resistência. Modificar esse sentimento da gente com o território é apagar nossa cultura e nos vender como apenas um mineral.”, afirma.

A pesquisadora indigena Uakyrê Pankararu, da Aldeia Cinta Vermelha de Jundiba, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, conta que a vida na região sempre foi muito difícil por ser uma região semiárida e que já teve várias outras explorações. Dentre os impactos sofridos, especialmente, pela  exploração de lítio, a pesquisadora destaca, o preconceito e a segurança, principalmente para as mulheres, por terem diversas pessoas desconhecidas na região, que trabalham na exploração de Lítio: “Eu vivo numa comunidade em que pessoas desconhecidas estão entrando sem autorização”, afirma.

Uakyrê Pankararu afirma que a família vêm de uma base de movimento indígena e tem conhecimentos sobre os direitos, mas que há falta de diálogo com a empresa “Nós não temos diálogo nenhum com a empresa, a empresa nunca procurou a gente para consulta e nenhum consentimento, nem com nós, nem com nenhum, na verdade eles fazem audiência pública e a gente tem diferença de audiência pública para consulta e consentimento livre e pré-informado, que é garantido pela Convenção 169”.

A indígena crítica a falta de diálogo entre população e empresa: “Ela começou a operar, creio que em 2022, se eu não me engano, mas nós não ficamos sabendo nem da instalação, não ficamos sabendo de nada. Então, isso é uma violação de direitos, né? Nós vivemos porque não tem diálogo.”, afirma.

Geopolítica do lítio

O lítio no Jequitinhonha não é apenas um debate local, mas parte de uma disputa geopolítica maior, marcada pela corrida internacional por minerais estratégicos, pela vulnerabilidade das regiões produtoras diante das mudanças climáticas e pelas contradições entre desenvolvimento sustentável e exploração intensiva de recursos. 

É justamente nesse ponto em que a “corrida pelo lítio” se relaciona com as discussões internacionais sobre clima e energia, já que a exploração desse metal no Brasil está intrinsecamente ligada a agendas globais de sustentabilidade, justiça social e responsabilidade climática. A COP30, que ocorre em Belém, representa uma oportunidade histórica para o país reafirmar seu papel de liderança nas negociações sobre mudanças climáticas e sustentabilidade global. O evento permitirá ao país demonstrar seus esforços em áreas como energias renováveis, biocombustíveis e agricultura de baixo carbono, além de reforçar sua atuação histórica em processos multilaterais, como na Eco-92 e na Rio+20.

A COP-30 reflete a ansiedade da sociedade, com uma necessária mudança na estratégia global de eliminação da extração e uso dos combustíveis fósseis e com a implementação de políticas públicas voltadas à adaptação climática.  É um marco importante, pois nele se estabelece não apenas as diretrizes para redução de emissões de gases do efeito estufa, mas também se examina o impacto de tecnologias limpas e sustentáveis, que desempenham um papel fundamental em um futuro mais sustentável.

Porém, por enquanto, o processo de extração de algo que promete ser sustentável, tem impactos negativos em diferentes aspectos na região do Vale do Jequitinhonha. Uakyrê destaca a boa relação dos indígenas com a natureza e denuncia que percebeu, por exemplo, abelhas “desorientadas” na região e morcegos adentrando às casas dos moradores, por consequência dos impactos no ar, deixados pela mineração. A indígena cita também a dificuldade de acesso a água “E a questão também da água que foi muito difícil também o acesso à água através dos carros-pipa, porque a empresa estava tendo muita demanda de água na cidade e aí nós temos abastecimento de água com carro-pipa e isso dificultou, porque a gente estava procurando carro-pipa e estava difícil achar por causa dessa demanda que tinha por causa dessas empresas”, afirma.

Uakyrê explica que a comunidade Poço Dantas, perto de onde ela mora, fica ao lado de onde a empresa Sigma Lithium atua. Segundo ela, a população local fazia o uso da água do chamado Ribeirão Piauí, para beber e para pescar e que hoje eles não podem fazer mais o uso da água do ribeirão porque a pilha de rejeito da empresa fica em cima do ribeirão que consequentemente é impactado.

Para ela o que a empresa faz é uma falta de respeito com a população: “O Ribeirão Piauí deságua no Rio Jequitinhonha. E para a gente o Rio Jequitinhonha é um lugar sagrado, né? Um lugar que tem várias vidas também. Então, nós vemos que essas empresas, elas não olham para essas questões e não teve a consulta e o consentimento das populações indígenas e do povo quilombola, né, para poder operar na região.”, afirma.

Em 2024, comunidades e povos tradicionais do Vale do Jequitinhonha afetadas, foram à Assembleia Legislativa para tratar do assunto. Acesse aqui

Em setembro de 2025, o Ministério Público Federal chegou a recomendar a suspensão de atividades e pediu que a empresa apresentasse novos estudos de impacto ambiental, mas, na prática, pouco mudou. A pressão sobre as comunidades continua, e muitas famílias relatam medo de se opor ao empreendimento.

Uakyrê explica que todo esse processo de exploração afeta diretamente a saúde mental da população local. “O pessoal do Poço Dantas, que vive ao lado da mineradora, onde eles vivem cotidianamente com explosões, rachaduras das casas, noites sem dormir, e nenhuma perspectiva para o futuro, porque eles já estão, nós, né, estamos totalmente sendo mapeados por essas empresas, não estamos sabendo”. 

“Lá no Poço Dantas algumas pessoas estão tomando remédio para dormir, estão tomando remédio para ansiedade. Na aldeia também a gente tem casos de pessoas que estão tomando remédio para a ansiedade também, porque a vida aqui mudou drasticamente.” 

Uakyrê explica que os povos indígenas são colocados como empecilio para o desenvolvimento da região, mas que não verdade não são contra e só estão defendendo o que é de direito: “A gente está lá defendendo o Rio Jequitinhonha, as mulheres também e para dizer que nós não somos contra o desenvolvimento, mas de como ele é feito. O Vale do Jequitinhonha é muito rico, mas essas riquezas estão sendo levadas para fora, não tem nada ficando para a cidade, para as comunidades”.

Durante a Semana do Clima, que ocorreu entre 21 e 28 de setembro, em Nova York, Uakyrê foi à cidade norte-americana para debater sobre a importância da visibilidade no tema das mudanças climáticas globais. Segundo ela, foi uma boa oportunidade de conhecer e fazer estratégia de luta com outras pessoas,  de outros lugares. 

Foi uma oportunidade muito grande de conhecer e fazer estratégia de luta com outras pessoas de outros lugares. Foi muito importante a presença das mulheres indígenas nesses espaços, principalmente aqui do Vale do Jequitinhonha, onde estão acontecendo esses impactos, mas eu fiquei um pouco triste. Porque havia poucos indígenas no local de bastante discussão, e para falar sobre clima tem que ter presença de indígenas para falar sobre esse tema tão importante, porque nós somos os primeiros impactados por grandes empreendimentos. E também que o nosso povo tem que estar a par do que está acontecendo e decidir sobre nossas vidas e nosso território. Falar sobre clima é falar sobre territórios indígenas e esses territórios indígenas é que estão sendo alvo de grandes empresas e empreendimentos

Uakyrê Pankararu, pesquisadora indígena

Além dos danos ambientais, os efeitos econômicos e sociais são visíveis. Por exemplo, o preço dos aluguéis dobrou em pouco tempo, e o custo de vida aumentou consideravelmente. “O aluguel de uma casa antes custava menos de R$ 500, hoje em dia tá mais de R$ 1.000. Então imagina uma mãe solteira com mais de três filhos e tem que pagar um aluguel com mais de R$ 1.000. Além disso, a sobrecarga dos hospitais e o aumento da presença de trabalhadores homens vindos de fora também trazem novas preocupações, principalmente entre as mulheres das comunidades.

Mesmo diante desse cenário, o MAB aposta na organização popular e na busca por alternativas que garantam soberania, sustentabilidade e participação social. Uma das iniciativas é o Projeto Veredas, que implantou a maior usina fotovoltaica flutuante da América Latina, localizada em Grão Mogol (MG). “Não é que a gente é contra as barragens e a mineração, mas a gente é contra esse modelo que chega aqui para o território, que é um modelo que não é de desenvolvimento para o povo, porque realmente não fica para o povo realmente os benefícios’’, defende.

Para Joyce, o que está em disputa no Vale do Jequitinhonha vai muito além do lítio. É uma disputa por direitos, por reconhecimento e por futuro. “Por isso que o MAB puxa: Desenvolvimento para quem?”, resume.

Reportagem desenvolvida por Hadriann Oliveira, João Augusto, Leonardo Rezende e Lucas Rodrigues para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital no campus São Gabriel sob a supervisão da professora Verônica Soares, no semestre 2025/2.

Colab PUC Minas

Colab é o Laboratório de Comunicação Digital da FCA / PUC Minas. Os textos publicados neste perfil são de autoria coletiva ou de convidados externos.

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