A rotina de trabalho sob o regime 6×1 — seis dias trabalhados para um de descanso — é uma realidade para milhões de trabalhadores brasileiros. Embora a escala tenha sido criada para atender às necessidades industriais e econômicas, especialmente no início do século XX, a estrutura rígida continua vigente em muitos setores, como o comércio, a indústria e os serviços. Para as mulheres, essa dinâmica é mais perversa e se soma a desafios adicionais: a sobrecarga mental, a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e a dupla ou tripla jornada, que pode provocar impacto devastador na saúde física e mental.
Segundo o Ministério das Mulheres e do Trabalho e Emprego (MTE), as mulheres recebem 19,4% a menos que os homens. E além das 40 horas semanais, elas também trabalham cerca de 21,3 horas em casa, de acordo com dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em 2013, as psicólogas e mestres em Administração Adriane Vieira e Graziele Alves Amaral, que são respectivamente doutora em Administração e em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, publicaram um artigo destacando que o mercado já impunha às mulheres uma tripla jornada: profissional, familiar e educacional.
Para concorrer com mais igualdade com os homens, elas estão sujeitas a mecanismos de dominação que ainda as consideram as responsáveis pelo cuidado com a família e exigem educação continuada para deslanchar na carreira. O estudo afirma que mesmo mulheres provenientes de estratos sociais elevados precisam enfrentar pressões e discriminações relativas ao gênero na divisão social do trabalho, na inserção no mercado e na construção das carreiras.
Críticas à atual jornada de trabalho
A escala 6×1 precariza as condições de trabalho, prejudicando o descanso, a saúde mental e a vida familiar dos trabalhadores, especialmente das mulheres, que enfrentam jornadas duplas e maior vulnerabilidade no ambiente profissional
Jairo Nogueira, presidente da CUT Minas
A jornada de trabalho na escala 6×1, amplamente adotada em setores como comércio, postos de gasolina e farmácias, é alvo de críticas devido ao impacto negativo na saúde física e mental dos trabalhadores. Segundo Jairo Nogueira, presidente da CUT Minas, o modelo intensifica o desgaste físico e emocional, agravado pela falta de folgas suficientes e pela exigência frequente de horas extras.
As mulheres, em particular, enfrentam desafios adicionais, como a sobrecarga de trabalho doméstico e a menor remuneração em relação aos homens para funções equivalentes. Além disso, o formato 6×1 limita a convivência familiar e o acesso ao lazer, comprometendo a qualidade de vida. Para Nogueira, alternativas como escalas mais equilibradas e jornadas reduzidas, sem prejuízo salarial, são essenciais para preservar a dignidade e a saúde dos trabalhadores.
Preocupação do pequeno empreendedor
Maria das Neves Batista Santos, 59 anos, é comerciante em Lagoa Santa (MG) há 22 anos e demonstra preocupação com a possível redução da jornada de trabalho. Com a experiência de quem gerencia uma loja de colchões com apenas uma funcionária, Maria acredita que a proposta, embora pareça benéfica para alguns trabalhadores, pode gerar desemprego e aumentar a informalidade no mercado de trabalho, especialmente entre os pequenos empresários.
Para nós, lojistas, a redução da jornada pode gerar um aumento nos custos operacionais e, consequentemente, nos forçar a contratar mais funcionários, o que não seria viável para o meu tipo de negócio. Nosso país não tem condições de suportar essa mudança.
Maria das Neves, comerciante
Ela destaca ainda o impacto da carga tributária elevada, que já representa um desafio para os pequenos empreendedores. Maria também se mostrou preocupada com o possível aumento do trabalho informal caso a jornada de 4×3 seja adotada. Segundo ela, muitos empresários poderiam optar por contratar freelancers, dada a dificuldade de arcar com os custos adicionais de uma jornada reduzida. “Os impostos e encargos já são muito altos, e não sei como conseguiria manter a formalidade diante de uma mudança dessa magnitude”, indica Maria das Neves.
A comerciante revela que também lida com a rotina de conciliar o trabalho com as tarefas domésticas, demonstrando empatia pelas mulheres que enfrentam a dupla jornada. “Sei como é difícil conciliar o trabalho com as responsabilidades de casa, e por isso, sempre procurei flexibilizar situações para a minha funcionária, como dar uma folga mensal aos sábados”, conta. Maria das Neves espera que o governo e os empresários possam encontrar soluções equilibradas para as questões relacionadas à jornada de trabalho.
A dupla jornada e seus efeitos
O debate sobre a escala 6×1 no Brasil evidencia desigualdades estruturais que afetam desproporcionalmente as mulheres. Enquanto a legislação trabalhista oferece garantias mínimas, como o descanso semanal, ela ignora a sobrecarga enfrentada por quem concilia emprego formal, capacitação e trabalho doméstico não remunerado.
Esse cenário é ainda mais desafiador para aquelas que enfrentam jornadas exaustivas na escala 6×1, tendo apenas um dia por semana para lidar com as demandas do lar ou para exercer outro ofício e complementar a renda, sem muitas vezes ter tempo para cuidados pessoais.
Nas micro e pequenas empresas, onde as mulheres também estão presentes em grande número, essa dinâmica é agravada pela falta de suporte estrutural e condições de trabalho adequadas. O acúmulo de responsabilidades profissionais e pessoais gera altos níveis de estresse, esgotamento físico e mental, e aumenta o risco de condições como burnout. Além disso, a pressão para equilibrar vida profissional e pessoal muitas vezes limita o crescimento profissional das mulheres, inclusive no empreendedorismo, que surge como alternativa para a autonomia financeira, mas ainda carece de políticas inclusivas que atendam às necessidades específicas das trabalhadoras.
A gente não tem folga, literalmente. O único dia livre é para cuidar da casa e da família. Quando termina, já é hora de trabalhar de novo!
Jênifer Ferreira, vendedora
A atual escala impõe uma rotina exaustiva às mulheres, dificultando o equilíbrio entre trabalho, família e saúde mental. As entrevistadas destacam a sobrecarga emocional e a falta de tempo para si mesmas, tornando urgente o debate sobre condições mais humanas.
Propostas de flexibilização da jornada, como a redução do descanso semanal ou o prolongamento das horas trabalhadas, podem intensificar as dificuldades já enfrentadas, prejudicando ainda mais a saúde e os direitos das mulheres. Para reverter esse quadro, especialistas apontam a necessidade de políticas públicas que promovam maior equidade de gênero, como incentivos para a criação de creches, regulamentações trabalhistas mais humanizadas e programas de suporte psicológico para trabalhadoras. Essas medidas não apenas beneficiam as mulheres, mas também resultam em ambientes de trabalho mais saudáveis, sustentáveis e produtivos para todos.
Origem da escala 6×1
A escala 6×1 tem suas origens na gestão de Getúlio Vargas, em 1940, quando o então presidente sancionou a Lei n.º 5.452, conhecida como Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Embora a lei não mencione diretamente o modelo 6×1, estabeleceu um limite semanal de 48 horas de trabalho, vigente na época, permitindo que jornadas como essa fossem adotadas.
O limite atual de horas semanais para trabalhadores com carteira assinada foi definido em 1988, a partir da Assembleia Constituinte que elaborou a nova Constituição Federal. Durante os debates, houve uma proposta para reduzir a jornada para 40 horas semanais, mas ela foi rejeitada, e o limite foi fixado em 44 horas semanais. Ao longo dos anos, diversas tentativas de reduzir a jornada não avançaram. Em 2015, o senador Paulo Paim (PT) propôs um projeto para diminuir gradativamente a carga semanal para 40 e, posteriormente, 36 horas, mas o processo foi arquivado em 2022, sem votação.
Mais recentemente, novas propostas têm reacendido o debate sobre a redução da jornada. Em 2019, o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) sugeriu a adoção de uma semana de 36 horas. Agora, a deputada federal Erika Hilton (PSOL) propõe a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que busca trazer à pauta a implantação do modelo 4×3, com quatro dias de trabalho e três de descanso, reduzindo a jornada semanal para 36 horas, sem alterar o limite diário de oito horas. Essa proposta visa melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, oferecer maior flexibilidade e alinhar o Brasil às tendências globais que promovem uma abordagem mais equilibrada para a organização do trabalho.
Discussão em MG
Até o momento, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) aprovou uma audiência sobre o assunto, porém até o momento não existe uma data marcada para ser votada. Apesar disso, o tema vem ganhando relevância em debates no cenário nacional, com propostas que buscam alterar as jornadas de trabalho e promover melhores condições para os trabalhadores. As ruas de Belo Horizonte viram palcos de protestos para a busca do fim da escala 6×1, ganhando apoio de trabalhadores que exigem uma melhor condição de trabalho. A redução de horas trabalhadas em Belo Horizonte virou assunto dentro da câmara dos vereadores da capital, sindicatos e trabalhadores falaram sobre os prejuízos trazidos pelas 44 horas semanais com apenas 1 dia de descanso, visando debater em uma audiência pública a possibilidade da redução da carga horária.
Burnout: a exaustão silenciosa
O burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, tem se tornado uma realidade alarmante para muitos brasileiros, inclusive para mulheres que enfrentam jornadas de trabalho exaustivas. O regime 6×1 limita o tempo disponível para recuperação física e mental, tornando os trabalhadores mais vulneráveis ao desgaste emocional. A pressão por alta produtividade, combinada com o estresse cotidiano e a ausência de pausas adequadas, contribui significativamente para o aumento dos casos de burnout no Brasil.
Os principais sintomas da síndrome incluem cansaço extremo, sensação de ineficácia, dificuldade de concentração e irritabilidade constante, que podem evoluir para problemas mais graves, como ansiedade e depressão. No contexto da escala 6×1, esses sinais podem ser agravados pela falta de equilíbrio entre vida profissional e pessoal, já que o único dia de descanso muitas vezes é insuficiente para recuperar as energias e aproveitar momentos de lazer ou convivência familiar. Além disso, a percepção de que o trabalho consome a maior parte da vida do indivíduo aumenta a insatisfação e reduz a qualidade de vida.
Patrícia Tavares, 53 anos, formada em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1997, atualmente trabalhando em clínica analítica afirma acreditar que esses trabalhos seis por um, onde a pessoa trabalha de forma ininterrupta, é uma jornada de trabalho que certamente propicia a síndrome de Burnout. Tendo em vista que as pessoas vão trabalhar e vão ter poucas horas para descansar, para voltar para suas vidas pessoais, familiares e sociais, é uma jornada de trabalho que vai contra a mão do que a gente considera saúde mental.
Para mitigar os efeitos do burnout, é fundamental que empresas e empregadores deem políticas mais humanas e sustentáveis, como a flexibilização da carga horária, programas de apoio psicológico e a promoção de ambientes de trabalho mais saudáveis. Paralelamente, o poder público deve reforçar a fiscalização de jornadas excessivas e investir em campanhas que conscientizem os trabalhadores sobre a importância de cuidar da saúde mental. Somente assim será possível enfrentar esse problema crescente, que impacta não apenas os indivíduos, mas também a produtividade e o desenvolvimento econômico do país.
Repensando o modelo e buscando soluções
A PEC que discute o fim da escala 6×1 coloca o Brasil no centro de debates globais sobre o futuro do trabalho. Em um cenário onde se busca cada vez mais a humanização e a flexibilização das jornadas, o texto a ser debatido no Congresso propõe alinhar o país a práticas internacionais que priorizam a saúde, o bem-estar e a produtividade dos trabalhadores. Contudo, especialistas alertam que a implementação dessa medida exige estudos aprofundados sobre a viabilidade econômica nos diferentes setores e uma adoção gradual, respeitando as especificidades de cada ramo de atividade.
Atualmente, a legislação brasileira já permite a redução da jornada em alguns setores, por meio de negociações coletivas entre sindicatos e empresas. Entretanto, sabe-se que nessa negociação os trabalhadores ficam em desvantagem, e uma mudança estrutural mais ampla, como a proposta no Congresso, reflete um movimento global que reconhece as novas demandas do mercado de trabalho. Tecnologias emergentes e mudanças nas expectativas dos trabalhadores têm impulsionado iniciativas que promovam equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Outro ponto central é o foco crescente na saúde mental. Empresas estão investindo em programas de apoio psicológico, meditação e atividades que promovem bem-estar emocional, reconhecendo que a saúde mental está diretamente ligada ao desempenho profissional. Para mulheres submetidas a longas jornadas e à sobrecarga da escala 6×1, esses programas são ferramentas essenciais para prevenir condições como o burnout, um problema cada vez mais recorrente no mercado de trabalho.
A criação de ambientes de trabalho saudáveis também tem ganhado espaço. Estruturas que priorizam ergonomia, boa iluminação, qualidade do ar e espaços destinados ao descanso e às atividades físicas contribuem diretamente para o bem-estar dos trabalhadores. Em um contexto onde mulheres acumulam responsabilidades dentro e fora de casa, essas melhorias são fundamentais para aliviar o impacto físico e emocional do trabalho.
Além disso, empresas que promovem uma cultura organizacional positiva, pautada no reconhecimento, no respeito e na valorização de seus colaboradores, têm obtido resultados significativos em engajamento e fidelização. Essa abordagem é particularmente relevante para as mulheres, que enfrentam desigualdades salariais, falta de oportunidades iguais e os desafios da dupla jornada. Políticas de equidade de gênero, como incentivos para creches e programas de suporte, também são indispensáveis para mitigar essas dificuldades e criar um ambiente mais inclusivo.
Em um país onde milhões de mulheres enfrentam a sobrecarga da dupla jornada, investir em alternativas que promovam equilíbrio e qualidade de vida não é apenas uma necessidade econômica, mas também um imperativo social. Ao adotar práticas que valorizem o bem-estar dos trabalhadores, o Brasil poderá se alinhar às tendências globais de trabalho e construir um mercado mais justo, produtivo e sustentável para todos.
Conteúdo produzido por Alice Sena, Aline Lima, Amanda Araújo, Cecília Rodrigues, Maria Eduarda Mussi e Luisa Cambraia sob a supervisão da jornalista e professora Fernanda Sanglard na disciplina Apuração, Redação e Entrevista.
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