No ano em que o Brasil rememora os 40 anos do movimento pelas Diretas Já, que representou a luta pelo direito ao voto para a Presidência da República quando a ditadura já agonizava, o Colab busca promover reflexão sobre a importância histórica, o impacto e o legado desse acontecimento. Quatro décadas depois, quais são os conhecimentos e as percepções da sociedade sobre esse marco da democracia brasileira?
Apesar das Diretas Já terem sido um movimento democrático que marcou a história do Brasil clamando por mais participação política, quase 40 anos depois, a recessão democrática voltou a ameaçar: mais uma tentativa de golpe. No dia 8 de janeiro de 2023, as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas por golpistas que não concordavam com o resultado das eleições de 2022 e acreditavam que as urnas eletrônicas não eram seguras.
Segundo a pesquisa Perceptions of Democracy, que avalia o que as pessoas pensam sobre o sistema político, os dados internacionais deixam claro que as instituições democráticas estão aquém das expectativas da sociedade. O levantamento foi feito pela organização intergovernamental International Idea (Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral, na sigla em inglês). Para desenvolver o entendimento sobre a imagem da democracia no mundo, os pesquisadores selecionaram um conjunto diversificado de 19 países e fizeram cerca de 1.500 entrevistas em cada um deles.
Em 11 dos 19 países onde a pesquisa foi feita, menos da metade dos entrevistados expressaram confiança nas eleições mais recentes. A proporção é mais baixa em países como Colômbia, Índia, Paquistão, Iraque e mesmo em Taiwan e nos EUA. No Brasil, Dinamarca e Chile, mais da metade da população disse confiar no pleito. De forma geral, eleitores de 19 países se mostraram céticos em relação ao fato de as eleições serem livres e justas.
Ainda que 55% da população declarem confiança na Justiça Eleitoral, 30% dos brasileiros disseram não confiar e 14% confiar pouco, conforme a pesquisa A Cara da Democracia, do INCT Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT-IDDC) com dados de 2023.
Já a pesquisa Juventudes no Brasil 2021, coordenada pelo Observatório da Juventude na Ibero-América (OJI) mostra que as instituições que geram mais desconfiança entre os jovens brasileiros são os partidos políticos (82%), o Congresso Nacional (80%), o governo (69%) e a Presidência da República (63%).
Os dados demonstram que os brasileiros defendem o regime democrático, mas questionam e desconfiam das instituições democráticas, aderindo a práticas que podem colocar em risco a própria democracia. Segundo a cientista política, professora e militante na época das Diretas Já, Helena da Motta Salles, esse fenômeno não atinge só os jovens e tem relação com o extremismo reacionário. Ela afirma que o avanço da extrema direita no mundo é um fato. “Os governos de extrema direita têm avançado mundo afora. Não foi só no Brasil que houve um presidente de extrema direita (…). Então a gente vive uma onda muito grande de individualismo no mundo. Agora está mais difícil levar a população para rua. A gente percebe uma certa apatia”.
O descompasso entre a luta por mais democracia nos anos 1980 e as recentes manifestações antidemocráticas no Brasil e em outros lugares do mundo, como na tentativa recente de tomada do Capitólio nos Estados Unidos, servem de alerta para questões estruturais do autoritarismo, ainda presente na sociedade. Helena da Motta Salles afirma que foi criado um clima propício para questionar o resultado das urnas caso Bolsonaro fosse derrotado em 2022, o que, de fato, aconteceu. ‘‘Por que essas pessoas que começaram a questionar as urnas não contestaram quando seus candidatos foram eleitos, repetidas vezes, ao longo da vida política? Por que agora estão questionando? Antes o resultado era confiável? A urna mudou? Então, isso me parece muito suspeito’’, crítica.
O que as Diretas Já trazem para os dias de hoje?
Na época do movimento pelas Diretas Já, milhares de pessoas foram às ruas do país, principalmente os jovens e estudantes, para expressarem suas indignações com o sistema político implantado pelos militares e até então vigente. “O movimento conseguiu trazer muitas pessoas para as ruas porque havia uma demanda reprimida há muito tempo, esse grito era algo que estava contido. Desde o Ato Institucional número cinco (AI-5), a ditadura já tinha começado a se desgastar bastante. A transição democrática foi uma transição negociada. Nem os militares suportavam mais aquela situação, porque existem vários problemas. Havia disputas internas entre os generais que quebravam as regras das patentes e isso acabou sendo muito pesado para eles”, explica a cientista política Isabele Mitozo.
Helena complementa lembrando de suas vivências à época. Segundo ela, as pessoas começaram a se indignar ao terem acesso às informações sobre os abusos de poder, atrocidades e torturas da ditadura. “Então, a minha geração passou a adolescência e a juventude nesse clima. A gente ficava sabendo por meio de algum amigo ou conhecido, alguém da família que tinha sido preso. Aí quando a pessoa era libertada, ela contava o que tinha se passado, pelo menos por aí, em torno dela. E aos poucos, tudo aquilo foi sendo revelado”.
Minhas filhas eram pequenininhas, e aí a minha filha subiu no palanque e gritou com aquela vozinha de criança: “Diretas Já!”. E todo mundo viu. E eu acompanhava, assim como os meus amigos
Helena da Motta Salles, cientista política e militante do movimento
A transição democrática teve o engajamento de diversas pessoas públicas. Isabele Mitozo explica que o movimento foi marcado por nomes que contribuíram diretamente para a transição. Figuras conhecidas como Lula (PT) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que, mais tarde, disputaram em campos opostos as eleições para presidente em 1994, estavam lado a lado, gritando por Diretas Já. “O Lula destaca-se nessa luta porque é alguém que, desde os anos 70, se insere nesse campo político, é um sindicalista, mas que percebe que a ditadura não era só ruim para os trabalhadores, mas para todo mundo”. É alguém que tem um poder de liderança e retórica muito grande, e assim ele reúne muita gente (…). Naquela época, precisávamos sair dessa ditadura, então algumas diferenças foram deixadas de lado para que houvesse essa luta”, acrescenta Isabele.
Além deles, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Franco Montoro, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, que ficou conhecido como “senhor das Diretas”, também foram protagonistas. A União Nacional dos Estudantes (UNE) e outros movimentos tiveram alta participação. E justamente naquele momento foi fundada a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
O movimento (das Diretas) deixa um legado muito importante e interessante. Mostra para o campo da representação que essa insatisfação, quando expressada de modo coletivo, pode trazer mudanças ou pelo menos assustar um pouco, uma vez que o ator político precisa dos cidadãos, porque ele precisa de uma coisa chamada votos para se eleger e continuar ocupando esse campo de representação.
Isabele Mitozo, cientista política
Juventude e participação popular
Se os jovens foram importantes no cenário político da época, como atuam agora? O engajamento deles no movimento pelas Diretas colaborou com medidas políticas de participação política. “É importante entender que essa vontade de participação política levou a nossa Constituição a ter vários mecanismos conectados à participação. Ela é chamada de constituição cidadã pois foi construída de uma maneira mais participativa”, contextualiza Isabele Mitozo.
Fato é que a juventude da época sofreu represálias em nome da luta por um país democrático. “Os jovens estavam nas trincheiras desse movimento, estavam questionando nas universidades, muitos secundaristas foram torturados, assassinados e presos. Eles iam com muito medo, mas iam”, enfatiza Isabele.
Atualmente, o desbravamento e a participação política têm diminuído entre os jovens,conforme pesquisa realizada por Isabele Mitozo e outros pesquisadores, sobre participação política na cidade de São Paulo, com o Instituto Sivis e financiamento do Instituto Votorantim.
A cientista política analisou especificamente a participação institucional, por meio de mecanismos criados dentro de instituições políticas, seja por meio de um fórum de discussão que a câmara dos deputados promoveu ou a participação não institucional que são os protestos de rua e protestos online. “Foi curioso ver que não há uma tendência de participação dos jovens nem offline nem online. Pelo menos em relação à cidade de São Paulo”. Os dados analisados mostram que no online há uma tendência de participação dos mais velhos participarem. Em relação aos jovens não há muita diferença. “A juventude não está mais com esse fervor apesar de parecer que sim quando vimos as manifestações de 2013. Mas não era bem assim, não era só a juventude que estava ali, tinha todo o tipo de público”, ressaltou.
Helena da Motta Salles explica, também, que os jovens de hoje não se interessam em grande escala pelas causas coletivas. “As pessoas estão mais preocupadas em resolver problemas particulares, em resolver a própria sobrevivência, a profissão e a vida particular”, finalizou.
Democracia e movimentos sociais
A democracia, um sistema de governo que se fundamenta na participação popular, e os movimentos sociais, coletivos que lutam por mudanças e direitos, são pilares para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária. No Brasil, ambos desempenham papeis cruciais na promoção da justiça social, dos direitos humanos e da participação dos cidadãos.
A democracia brasileira, consolidada após o fim da ditadura militar em 1985, garante aos cidadãos o direito de votar, serem votados, expressar opiniões e participar ativamente na construção das políticas públicas. Esse sistema promove a transparência, a accountability e a alternância de poder, fatores essenciais para prevenir abusos e corrupção. “Com democracia, as pessoas têm mais respeito aos seus direitos, às suas preferências, à sua individualidade”, reforça a cientista política Helena da Motta Salles.
A democracia proporciona o espaço necessário para que os movimentos sociais possam emergir, organizar-se e influenciar políticas públicas. Por outro lado, os movimentos sociais revitalizam a democracia, trazendo novos temas à agenda política e pressionando por mudanças que refletem as demandas populares.
Desde as Diretas Já, os movimentos têm desempenhado um papel transformador na história do Brasil. Exemplos recentes incluem as mobilizações pela preservação do meio ambiente, pela igualdade racial e de gênero. As campanhas defendidas pelos movimentos quanto a essas pautas tiveram impactado na legislação e na conscientização pública.
A cientista política Helena da Motta Salles defende que “os movimentos sociais aglutinam pessoas que têm interesses semelhantes, e ali elas têm oportunidade de debater quais são seus interesses, qual é a melhor maneira de encaminhá-los para que eles cheguem às instituições”.
Apesar dos avanços, tanto a democracia quanto os movimentos sociais enfrentam desafios no Brasil. A polarização política, a desinformação e as tentativas de deslegitimar movimentos populares são obstáculos que necessitam ser superados na avaliação das especialistas.
A Implementação das Urnas Eletrônicas
Urna Eletrônica, segundo a definição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é um microcomputador de uso específico para eleições, resistente, de pequenas dimensões, leve, com autonomia de energia e recursos de segurança. Inicialmente foram nominadas como Máquinas de Votar pelo Código Eleitoral de 1932, ou Coletor Eletrônico de Votos (CEV).
A implementação das urnas, primeiramente, se deu apenas nas capitais e em cidades com número de eleitores acima de 200 mil, nas eleições municipais de 1996, graças à Lei nº 9100/1995. Após esse período, as eleições no país começaram a mudar e aderir ao sistema eletrônico: em 1998, dois terços do eleitorado brasileiro votou eletronicamente e, dois anos depois, 100% da população utilizou a urna para votar.
O principal motivo para a implementação da urna eletrônica e a extinção da votação por cédulas foi a presença de fraudes no registro dos votos e na apuração dos resultados. Além disso, outras premissas foram colocadas para a substituição do voto manual para o eletrônico, como: o registro do voto ou partido seria pelo número, e não mais por nome; a utilização da urna pelo eleitor deveria ser facilitada, podendo visualizar os candidatos na tela antes da confirmação dos votos; utilização em várias eleições, reduzindo o custo por voto; utilização de bateria em locais sem energia elétrica.
Apesar das urnas serem confiáveis e seguras, e o TSE provar de diversas maneiras que realmente são, com os Testes Públicos de Segurança da Urna Eletrônica (TPS), ainda existem pessoas que desconfiam desse sistema de votação, que é invejado por outros países. Isso acontece, principalmente, por conta da desinformação e da frustração de parcela da população em meio a um resultado negativo para elas, que tentam culpar o sistema pelo fato de seu candidato não ter sido escolhido.
A cientista política e professora Helena da Motta Salles expõe sua visão sobre o assunto: “Não existe uma questão em relação às urnas, existe uma questão em relação ao resultado das eleições. Se você começa a disseminar na população a ideia de que as urnas não são confiáveis, terminada a eleição você pode dizer que o resultado não é confiável. Porque você já está jogando essa ideia, desde antes, nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Daí para questionar o resultado das eleições é um pulo”.
Comparação com o sistema de votação dos EUA
Uma das maiores potências mundiais, os Estados Unidos, possui um sistema de votação que, sempre em época de eleição presidencial, chama atenção devido à complexidade do processo e, também, pela importância da economia local.
Diferentemente do Brasil, o voto não é obrigatório para os americanos. Isso acaba demandando um esforço maior por parte dos partidos políticos para convencerem e conseguirem fazer o eleitor sair de casa para votar. Além disso, a eleição é indireta.
Para chegar à votação final o processo começa com as primárias, depois vão para as convenções partidárias, os debates entre os candidatos e, finalmente, a eleição.
As primárias servem para definir os candidatos dos dois partidos. Os eleitores de cada legenda votam em seu nome favorito, em datas diferentes. Cada estado vai às urnas em um dia diferente. Assim, as vitórias nos estados vão somando delegados para cada candidato. O nome que somar mais delegados obtém a nomeação do partido para disputar a Presidência. Cada estado tem delegados de forma proporcional à sua população, ou seja, estados mais populosos garantem mais representantes, e vice-versa.
Os vencedores das primeiras votações costumam ganhar impulso na campanha, tanto em exposição na mídia quanto na arrecadação de doações, enquanto os nomes com mau desempenho inicial acabam enfrentando muitos problemas. Assim, vários candidatos desistem logo nos primeiros meses do ano e a briga tende a diminuir rapidamente entre dois ou três nomes.
Após a divulgação dos nomes dos vencedores das primárias, o próximo passo são as convenções partidárias. Esta etapa serve como espaço para que cada partido mostre suas propostas para o país e como pretende engajar os eleitores, através de inúmeros discursos feitos ao longo de alguns dias. Além disso, essas convenções são importantes para a projeção de novos nomes da política.
Finalizadas as convenções, os dois candidatos finalistas intensificam a campanha e participam de debates na televisão. No dia da votação, os eleitores vão às urnas escolher o novo presidente, além de deputados federais, parte do Senado e, em 11 estados, também haverá votação para governador.
A votação para presidente, porém, como dito inicialmente, não é direta. Os resultados das urnas moldam a formação do Colégio Eleitoral, que é formado por 538 delegados e, para que o presidente seja eleito, ele precisa ter, no mínimo, 270 votos.
A eleição presidencial americana é organizada pelos 50 estados. Cada governo local tem liberdade para organizar a votação como preferir e, ao final, apontar os delegados que votarão no Colégio Eleitoral. Cada estado tem direito a um número diferente de delegados, com base em sua população em relação ao total do país. Assim, a Califórnia, estado mais populoso, tem 54 representantes. Nenhum estado tem menos de três delegados.
Em 48 estados, o vencedor leva tudo: o candidato presidencial mais votado conquista o direito a indicar todos os delegados daquele estado. E esse modelo, porém, gera uma distorção no fato de que um candidato pode vencer na votação popular, mas não se eleger. Um exemplo foi o caso de Donald Trump em 2016. Ele obteve 62,9 milhões de votos, menos do que os 65,8 milhões da rival Hillary Clinton, mas levou 306 delegados, ante 232 dela.
O modelo de Colégio Eleitoral dá mais peso aos estados menores na disputa nacional. Com isso, a atenção dos candidatos durante a campanha é maior sobre os locais onde há maior indecisão do que em áreas mais populosas que tendem a eleger sempre o mesmo partido.
Conteúdo produzido por Antônio Cardoso, Beatriz Torres, Millena Alves e Rafael Fiorini sob a supervisão e edição da jornalista e professora Fernanda Sanglard na disciplina Apuração, Redação e Entrevista.
Este conteúdo foi originalmente publicado em 3/7/2024, às 20h, mas sofreu atualização dos links no dia 25/8/2024, às 18h.
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