Em 2023, as Jornadas de Junho completam 10 anos. O período é geralmente lembrado pelas fortes mobilizações sociais pautadas, em um primeiro momento, no aumento das tarifas do transporte público no país. No entanto, os protestos começaram a tomar proporções maiores, o preço das passagens deixou de ser o único motivador e o conflito entre policiais e manifestantes marcou aquele momento da história do país.
Nas ruas, jornalistas não eram bem vindos. Gritos contrários a veículos de mídia como a Rede Globo se tornaram comuns. A violência contra profissionais da imprensa era constante e as redações foram obrigadas a se adaptar. Uma década depois, ainda é difícil definir os acontecimentos daquele período e sua consequências, mas a hostilidade contra os jornalistas continua.
Como tudo começou
Em um primeiro momento, as mobilizações em São Paulo foram pautadas pelo aumento de 0,20 centavos nas tarifas de ônibus, com o Movimento Passe Livre (MPL) assumindo a organização dos atos. Um dia em especial ficou marcado na cidade de São Paulo: era 13 de junho, dia do quarto protesto contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo, na esquina da rua Maria Antônia com a rua da Consolação, e o conflito entre manifestantes e policiais tomou grandes proporções. Entenda a cronologia dos eventos que ocorreram durante as Jornadas de Junho de 2013. Segundo apuração do G1 e Jornal Nacional, ao todo, 11 jornalistas foram feridos e mais de 200 pessoas foram detidas durante o que ficou conhecido como a “Batalha da Consolação”.
Entre os jornalistas feridos estava o fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu o olho esquerdo depois de ser vítima de um tiro de borracha disparado pela polícia. Esse episódio ganhou bastante destaque na época e continua repercutindo 10 anos depois pois, ainda em 2013, Sérgio acionou a Justiça alegando que o incidente afetaria seu trabalho e entrou com um pedido de indenização por danos morais. As decisões judiciais, no entanto, não foram favoráveis ao fotógrafo que ainda tenta uma vitória na Justiça, como mostra apuração feita pelo UOL.
Apesar do então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, ter voltado atrás com o aumento das tarifas, as manifestações não terminaram. Em entrevista para o G1 em 2014, o doutor em história social e professor Henrique Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), comentou que foi justamente a forte repressão policial durante a “Batalha da Consolação” que fomentou os atos que expandiram a pauta para além dos 20 centavos.
Veja um breve contexto cronológico das Jornadas de Junho:
“O Gigante Acordou”
Durante as semanas seguintes, outras manifestações aconteceram por todo Brasil. Uma variedade de pautas estavam sendo levantadas, como o apoio a movimentos indígenas e movimentos pela educação, discursos contra a homofobia e a “cura gay”, pedidos de melhoria dos serviços públicos, além de protestos em oposição ao governo petista e a então presidente Dilma Rousseff. Havia também espaço para manifestações contrárias à realização da Copa do Mundo de 2014.
Naquela altura, o conflito entre manifestantes e policiais se tornou frequente, intensificando a atuação de militantes que foram chamados de black blocs pela mídia na época. Jornais como o Estadão, UOL e G1 usavam esse nome para se referir aos manifestantes alemães da década de 1980 que se vestiam com roupas pretas, máscaras, capacetes ou panos cobrindo o rosto para evitar o reconhecimento e perseguição por parte da polícia. A tática desse grupo consistia em formar um pelotão à frente da massa de manifestantes para combater a truculência das forças do estado por meio de ações violentas.
Alguns jornais usaram a postura do grupo para criminalizar e descredibilizar as manifestações, colocando os protestos como espaços de violência e depredação do patrimônio público e privado. Coberturas da imprensa tradicional, como a Folha de S. Paulo (imagens), corroboraram com essa narrativa, de modo que suas publicações davam destaque para os conflitos e a destruição de patrimônio, enquanto pautas que eram reivindicadas pelos manifestantes recebiam menos atenção.
Nas capas da Folha de S. Paulo, destaque para a truculência dos manifestantes nas primeiras coberturas
Dentro das redações, conflitos sobre a cobertura
Angelina Nunes, ex-repórter do jornal O Globo no Rio de Janeiro e representante da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) à época, conta que no início das manifestações existia uma sensação de euforia, e os jornalistas se orgulhavam de ver filhos, amigos e parentes participando dos atos. Esse clima festivo, segundo ela, foi aos poucos sendo tomado pelo sentimento de apreensão quando os casos de violência contra os profissionais que cobriam os atos começaram a aparecer.
Como representante da Abraji ela relata que, após perceberem a dimensão do que estava acontecendo, houve uma mobilização para entender a gravidade do problema. “A gente começou a ligar para as redações para contabilizar quantos jornalistas tinham sido agredidos. Lembro que ao longo daquela semana foi uma coisa horrorosa, teve um fotógrafo que apanhou três vezes nesse período. Estava acontecendo alguma coisa e a gente não estava percebendo, as pessoas estavam se revoltando contra os jornalistas”, relembra.
Em um dos atos, o repórter Caco Barcellos, da Rede Globo, quase foi expulso de uma das manifestações junto com sua equipe no Largo do Batata em São Paulo. Um grupo de pessoas presente no ato além de atacar verbalmente também investiram fisicamente para cima de Caco e seus companheiros, impedindo a cobertura. Em seu programa matinal, Ana Maria Braga chega a prestar solidariedade ao companheiro de emissora e exibe cenas do ocorrido. A situação se tornou tão alarmante que alguns fotógrafos começaram a ir para as ruas com equipamentos de proteção individual e repórteres se despiam dos símbolos dos veículos que faziam parte para evitar de serem identificados.
Angelina também revela um problema que ela percebia nas capas dos jornais veiculadas naquele momento. “Quando se estampa na primeira página, ‘os vândalos’, a gente tá falando de quem? Quando você taxa um professor de vândalo é uma coisa preocupante. Eu me lembro que eu estava dentro da redação e via as fotos com professores apanhando enquanto tinha outra foto de um black bloc jogando um coquetel molotov no prédio – foto mais valorizada do que a do professor apanhando”.
Segundo Angelina, jovens jornalistas não se conformaram com a forma como estava sendo editado o material, e iniciaram um movimento de discussão e reflexão sobre os limites éticos entre edição e manipulação dentro da redação. “Nas ruas, as pessoas eram vítimas de violência, mas isso não era mostrado nas páginas dos jornais”, comenta. A jornalista também lembra que a Folha de S.Paulo só mudou sua perspectiva sobre os conflitos e passou a dar a devida importância quando o jornalista Elio Gaspari vai para as ruas e presencia casos de truculência contra os repórteres, fotógrafos e manifestantes.
Mídia NINJA x Jornadas de Junho
Enquanto a imprensa tradicional tinha dificuldade de realizar as coberturas e adotava uma postura crítica às manifestações, uma rede de comunicação livre chamada Mídia NINJA mostrava outra versão dos acontecimentos de forma incomum. Segundo Fernanda Nalon Sanglard, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC Minas, a Mídia NINJA teve um papel fundamental para mostrar uma série de debates e pautas que as manifestações estavam promovendo, mas que eram ignoradas pelos veículos tradicionais. “A Mídia NINJA, nesse momento, ganha ascensão justamente por fazer uma cobertura diferente e por mostrar, por meio do uso das tecnologias, da internet banda larga, da transmissão ao vivo pelo celular, outras perspectivas da manifestação”, disse.
Os repórteres da Mídia NINJA usavam câmeras de ação ou os próprios aparelhos celulares para transmitir ao vivo a cobertura dos atos em plataformas como o Facebook e o Twitter. Membros dessa rede de comunicação chegaram a ser presos e hostilizados por policiais durante as lives, o que influenciou parte da opinião pública que assistiu aquelas imagens em tempo real ou que tiveram acesso por meio das mídias sociais. Fernanda comenta que a cobertura da Mídia NINJA “imediatamente teve um impacto nas redações” e recorda um caso envolvendo o jornalista Arnaldo Jabor, que minimizou as manifestações e saiu em defesa dos policiais em uma crônica no Jornal da Globo. “A grande maioria dos manifestantes são filhos de classe média. Ali não havia pobres que precisassem dos R$ 0,20. Os mais pobres ali, eram os policiais apedrejados que ganham muito mal”, disse o jornalista.
Fernanda Sanglard relembra esse caso e cita a importância de uma cobertura como a que estava sendo feita pela Mídia NINJA. “Arnaldo Jabor fez uma crônica que foi altamente criticada, depois disso ele volta atrás, pede desculpa e isso muda o tipo de cobertura que estava sendo feita naquele momento pelos veículos mainstream naquele momento”, comenta a professora.
10 anos depois
Passada uma década desde as Jornadas de Junho de 2013, ainda há visões conflituosas sobre o momento e as consequências das manifestações para a história do país. Há quem enxergue o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão do Bolsonarismo como uma das derivações dos movimentos de junho, por exemplo. Entretanto, não existe consenso sobre o que resultou da onda de protestos que começou pelos 20 centavos.
Rogério Christofoletti, professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), enxerga a importância dos eventos de 2013 para a história recente do país, mas questiona as consequências deles para o momento que vivemos hoje. “Não acho que ainda haja uma compreensão completa do que aconteceu àquela época e como isso se conecta com o que colhemos em 2018, 2020 e 2022. Por isso, acho que precisamos ter muito cuidado em estabelecer conexões. Uma coisa é observar correlação entre dois eventos distintos; outra é estabelecer causalidade. A primeira coisa não implica necessariamente na segunda”, declarou.
Apesar da falta de consenso sobre as influências e efeitos Jornadas de Junho, a violência contra jornalistas piorou desde aquele período, principalmente após a chegada de Jair Bolsonaro ao Poder Executivo em 2019. Nos últimos quatro anos, o ex-presidente foi responsável por uma série de ataques à imprensa e seus profissionais. A maior escalada, segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), foi no ano de 2022 – ano de corrida eleitoral ao qual Bolsonaro foi derrotado. Ao longo do regime de pandemia, o ex-presidente realizou ataques sistemáticos a veículos que expunham suas mentiras diante da crise sanitária.
Em comparação com 2013, os dados dos últimos quatro anos sobre a violência contra jornalistas por estado destacam uma diferença entre os polos em que aconteceram mais denúncias. Há dez anos, São Paulo, palco principal das Jornadas de Junho, foi responsável pelo maior número de denúncias de violência contra profissionais da imprensa. Em 2022, o Distrito Federal assume essa liderança, mostrando a relação de interesse político entre os ataques a jornalistas neste ano.
Angelina Nunes, que hoje é conselheira da Abraji e coordenadora do Programa Tim Lopes, enxerga o atual momento com preocupação: ela entende que os ataques aos profissionais da imprensa, principalmente pela internet, fizeram com que a classe deixasse de denunciar cada vez mais os casos de violência. Segundo Angelina, no caso de ataques cibernéticos, os jornalistas não prestam queixa quando são vítimas de hostilidade, pois normalizaram esse tipo de situação.
Entre os dados que mostram os tipos de agressão mais recorrentes na última década, os ataques cibernéticos têm um volume muito baixo se comparado às denúncias de agressões verbais, o que corrobora com o pensamento de Angelina sobre a normalização da agressão em ambiente digital. Depois de dez anos, a agressão aos jornalistas ainda é uma prática considerada frequente, com um modo de ação e recursos diferentes do que acontecia em 2013, mas que ainda é normalizada.
Reportagem produzida por Filipe Soares e Pedro de Lima para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital do semestre 2023/1 sob a supervisão da professora Verônica Soares.
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