O último episódio da primeira temporada de The Last Of Us, a adaptação do jogo de mesmo título, foi ao ar no domingo 12 de março, inaugurando uma fase de boas críticas para adaptações dos jogos para o audiovisual. A primeira adaptação de um videogame para as telas que se tem notícia foi o filme Super Mario Bros, inspirado nos queridinhos encanadores da Nintendo. O peso de ser uma das maiores franquias do mundo dos jogos não conseguiu sustentar o fracasso de crítica e bilheteria. Mas isso não impediu a indústria cinematográfica de continuar tentando, e por muito tempo, de continuar fracassando.
Por anos, a crítica especializada falou na “maldição das adaptações”, termo que se refere às inúmeras tentativas frustradas de adaptar histórias de videogames para a TV e o cinema. Nada era suficiente: fidelidade ao jogo, personagens queridos pelos fãs, grandes atores estrelando o filme, efeitos especiais, nada conseguia emplacar um grande sucesso. Para se ter uma ideia, o primeiro filme a se tornar um sucesso comercial do gênero foi Mortal Kombat, que amarga nota irrisória de 57% no Rotten Tomatoes.
Rotten Tomatoes é um site que funciona como agregador de críticas de cinema e televisão. Nele, são coletadas opiniões online de escritores que são membros certificados. Existem três selos de aprovação que são calculados a partir da compilação de comentários. O mais baixo é o selo Rotten, que indica os filmes com aprovação entre 0 e 59%.
Nos últimos anos, jogos eletrônicos já movimentavam um mercado financeiro de dar inveja à indústria cinematográfica. Segundo o site Mundo Estranho, o faturamento da indústria de games foi de US$91 bilhões somente em 2016, ante os US$38 bilhões do mercado do cinema. Faltava aos jogos o reconhecimento dessa potencialidade, além de ultrapassar a barreira que ainda deixava os videogames em uma categoria menor de entretenimento.
A indústria percebeu, enfim, que existe grande potencial a ser explorado a partir das histórias dos jogos e, mais importante, que era possível contar com um vultoso retorno financeiro. Experiências recentes, como o sucesso de The Last of Us, e, antes dele, Arcane, começaram a dar bons resultados.
The Last of Us chega com o pé na porta
Segundo a Variety, o primeiro episódio de The Last Of Us alcançou mais de 4,5 milhões de espectadores, consagrando-se como o piloto mais assistido da HBO em mais de uma década, atrás apenas de A Casa do Dragão, também lançado em 2022. The Last Of Us surge em um momento em que a opinião pública amadureceu em relação ao videogame, muito influenciada pelo nível das produções, que também amadureceram.
Deiverson Jorge, GameDev Indie (desenvolvedor de jogos independentes) e professor na PUC Minas no curso de Jogos Digitais, acredita que a relação de amadurecimento é simbiótica. Ele considera um grande desafio conseguir encontrar um ponto de equilíbrio para transformar um jogo em série ou filme, e não acredita ser possível falar do fim da maldição das adaptações. “A partir do momento que a ideia de uma adaptação começa a germinar, existe um longo caminho a ser trilhado pelos estúdios de cinema e game studios. O caminho passa por transpor a essência do jogo para aqueles que nunca tiveram contato com a obra original, até achar este ponto de equilíbrio”.
Segundo ele, o foco das adaptações dos jogos foi, historicamente, o universo infanto-juvenil, porque o público era infanto-juvenil. Ele considera a era de ouro dos games o intervalo entre 1980-1990. Como as crianças que cresceram jogando videogame nessa época, hoje, chegam à casa dos 30-40 anos, os jogos se adaptaram a esses novos antigos consumidores. “Então, é mais comum encontrarmos jogos com uma profundidade narrativa filosófica e dramática mais intensa que, do ponto de vista de uma criança, poderiam não fazer sentido”, aponta o professor.
Diferentes linguagens chegam a um acordo narrativo
Os jogos oferecem uma experiência bastante imersiva ao jogador. Mesmo naqueles não lineares, em que não há um mundo aberto, existe a possibilidade de explorar cenários e ambientes, ir para caminhos nem sempre programados e coletar itens escondidos. Do ponto de vista da linguagem e da experiência de quem consome, para Deiverson Jorge, há uma grande diferença entre essa experiência dos games, e uma experiência cinematográfica, em que o caminho é guiado pelos roteiristas e diretores, e o telespectador cumpriria uma função passiva, que absorve o que está sendo mostrado. “Em um jogo, você pode trabalhar uma narrativa com roteiro ramificado e as escolhas do jogador podem impactar a história e o mundo apresentado a ele. No cinema, você perde isso”, sintetiza Deiverson.
Já o coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas, Pedro Perez, discorda. Para ele, essa ideia do cinema como uma experiência de passividade é limitada e pressupõe o filme como uma obra fechada. Na opinião do professor, o cinema é, ao contrário, uma obra aberta que pode passar por diferentes interpretações de seus espectadores. “De fato, há uma linearidade, mas a narrativa não precisa ser linear. A estrutura narrativa pode ser extremamente complexa”.
Ainda sobre a imersão possibilitada pelos jogos, Davi Meireles, estudante de Cinema e Audiovisual da PUC Minas e fã declarado de The Last Of Us, cita uma série de exemplos de exploração do universo do jogo, desde documentos que explicam pormenores da história, cartas que trazem angústias pessoais do personagem, coisas escritas na parede. São elementos quase impossíveis de serem transportados para uma série. “A obra cinematográfica tem uma potência diferente de um jogo, realmente”, acredita o estudante. Para ele, na série, o roteirista é obrigado a colocar tudo no cenário, deixando tempo o suficiente para o telespectador prestar atenção.
Mudar ou não mudar a história?
A liberdade criativa nas adaptações é um ponto importante. No caso de The Last Of Us, um dos aspectos mais elogiados foi justamente a adição de coisas que não existiam no jogo. Davi Meireles enxerga isso como uma necessidade: “trazer essa origem e esses começos de episódios são bem interessantes”. Ao longo da série, a maior parte dessas adições ocorria no início dos episódios, antes mesmo da abertura – técnica narrativa conhecida como cold open. Já no primeiro episódio, a série faz um cold open que deu o tom do que The Last Of Us pretendia trazer de novo. A cena começa em um programa de televisão, muitos anos antes da proliferação do fungo. Um epidemiologista explica ao entrevistador a existência do Cordyceps, e eles entram em um debate sobre a possibilidade deste fungo contaminar os humanos. Tecnicamente, o fungo não sobreviveria à temperatura do corpo, a menos que a temperatura do mundo aumentasse e o fungo fosse obrigado a evoluir para suportar mais calor . “E se isso acontecesse? Nós perderíamos”, responde o especialista.” Esse é um bom exemplo de como The Last Of Us expande um universo já consolidado.
Sobre o uso dos cold open, o estudante Davi Meireles demonstra insatisfação com o fato de os criadores da série não terem ido mais longe. “Eu até achei que era uma coisa que ia continuar não é? Mas acabou que não”, lamenta. Ao mesmo tempo, é preciso considerar a inflexibilidade do público gamer, que não costuma dar folga quando o assunto é ser fiel à história que eles gostam. Sendo assim, existe uma tarefa dupla e simultânea na qual dois públicos distintos precisam ser agradados. Deiverson Jorge questiona como chegar nesse denominador comum: “Até onde a liberdade criativa na adaptação pode agradar ao público do cinema e desagradar os jogadores de videogames, fãs da franquia?”
Para alcançar essa transposição midiática com êxito, é válido que os produtores e roteiristas não sejam totalmente alheios à dinâmica de um videogame. “Como levar as emoções, sentimentos e experiências de um jogo de videogame sem que o roteirista, diretor, produtor de cinema não tenham experimentado jogando?”, indaga o professor de Jogos Digitais. Não ter um mínimo de contato prévio com a mídia pode dificultar o processo das adaptações, já que a incapacidade de capturar a essência da obra e transmitir isso ao público pode ser refletido no produto final.
“O roteirista precisa sentar e jogar dezenas de horas no jogo, capturando a essência dele, aquilo que fez com que o jogo fosse consagrado”, defende Deiverson. Segundo ele, é preciso haver um respeito com a história e com os fãs da obra original.
Os meios andam aos pares
Os jogos eletrônicos surgiram sem muita pretensão de ser mais que entretenimento. As primeiras experiências em arcades ou videogames como Atari se resumiam a destruir oponentes espaciais ou usar uma barrinha para jogar ping pong. Com o passar dos anos, os aspectos narrativos ganharam força e, assim como livros, televisão e até a música, o cinema também passou a influenciar os videogames.
Pedro Perez, coordenador de Cinema e Audiovisual na PUC Minas, acredita que, hoje em dia, o videogame “bebe do cinema para construir personagens, narrativas mais complexas do que esse jogos antigos”. Isso fica claro já no primeiro jogo de The Last Of Us: para além das inúmeras lutas com inimigos e zumbis, o que chama atenção é a potência narrativa.
Com a profusão de modelos narrativos sólidos nos videogames, o que acontece agora, segundo Pedro Perez, é um movimento contrário. “ É um retorno do cinema para o próprio cinema, de alguma maneira”. Ele sugere tomar como base o pensamento do filósofo Marshall McLuhan, que afirma que os meios de comunicação andam aos pares, um atuando como conteúdo do outro. Se antes era comum ouvir falar que o cinema ia acabar com a televisão, ou que o rádio ia acabar com os jornais, Pedro defende que este tipo de pensamento deve ser superado: “E o que acontece de fato é que todos esses meios se retroalimentam, aproveitando características essenciais um do outro”, explica o professor.
A saturação dos zumbis na cultura pop
De White Zombie, passando por Madrugada dos mortos Vivos, indo até The Walking Dead, a premissa de humanos que se contaminam e tornam-se mortos vivos, causando estragos e mudando completamente a dinâmica de uma sociedade, permeou a cultura pop por muito tempo. Foram tantos jogos, filmes e séries explorando essa temática que parecia não ser possível trazer algum frescor. Mas, ao que tudo indica, The Last Of Us conseguiu mais essa proeza. Como fã da série, Davi Meireles enxerga que a série tem uma lógica de construção das criaturas zumbis um pouco diferente. “Existe um trabalho para organizar e para pensar em como esses bichos existiriam de maneira orgânica e real.” A explicação de como se dá a infecção dos humanos na série corrobora a fala de Davi. Enquanto séries como The Walking Dead se limitavam a dizer que, do dia para a noite, uma infecção começou subitamente e devastou o mundo, The Last Of Us vai além. O já citado Cordyceps, é um fungo que realmente existe na nossa realidade. O criador da série Neil Druckmann, teve o cuidado de usar como base um conceito real da biologia, fazendo com que a distopia se tornasse factível.
A humanidade como trunfo
Para além de trazer uma premissa calcada na realidade, o que difere The Last Of Us da infinidade dos universos distópicos sobre zumbis é seu foco na humanidade dos personagens. O mundo quebrou e não existe possibilidade de voltar a ser como era. A partir dessa constatação, Davi, em seu papel de fã, elabora perguntas que permeiam a história do jogo: “O que sobreviver contra esses bichos fez com as pessoas? Como isso contribuiu para a degradação dessas pessoas nesse?”. De acordo com o estudante, a partir dessas questões o espectador pode compreender que fica difícil usar uma regra moral para nortear o comportamento das pessoas nesse novo mundo. Segundo ele, “você tem que fazer certas coisas para sobreviver, quem se mantém como antes é a exceção da exceção. As pessoas fazem coisas das quais elas não se orgulham para sobreviver a essas criaturas que são uma ameaça que desestruturou o planeta”, completa.
Um ponto crucial da trama está na relação entre os personagens Joel e Ellie, interpretados por Pedro Pascal e Bella Ramsey, respectivamente. Ao longo de nove episódios, The Last Of Us apresentou um mundo condenado por uma infecção devastadora. Joel, o homem que teve sua vida destroçada no primeiro episódio da série quando a filha é assassinada, reencontra sua humanidade ao conhecer Ellie. Depois de passar por inúmeros percalços e significativos momentos de conexão com a jovem, Joel precisa por fim, resolver o dilema que poderia mudar os rumos dessa realidade: salvar Ellie ou salvar o mundo?
Para o estudante e fã da obra, tanto o jogo quanto a série são construídos para o momento final em que os dois personagens são confrontados com uma provação sobre a confiança que depositam um no outro. Em 2013, quando do lançamento do primeiro jogo, The Last Of Us gerou intermináveis discussões sobre a decisão final de Joel – que não vamos detalhar aqui para não gerar spoilers. “As pessoas ficam engajadas em discutir o que elas fariam, o que está certo, o que está errado?”, questiona Davi. Instaurada a dúvida, ele acredita que nem a série, nem o jogo se propõem a responder essas perguntas mas, sim, abordar o significado do que aconteceu. Em um futuro distópico em que as regras sociais são desmanchadas e precisam ser reconstruídas, que valores se mantém? O que garante os vínculos sociais e afetivos?
Para Davi, “aquela [a decisão final] foi a escolha mais fácil que ele fez na vida”. Fáceis ou não, os criadores da série entendem o poder das decisões, e foram elas que fizeram The Last Of Us encerrar com chave de ouro seu nono episódio, superando a audiência do Oscar e abrindo um novo capítulo no mundo das adaptações.
Eu me pergunto, por que a maioria dos jogos que crianças e adolescentes usam são voltados para morte, tiros, guerras e competição? Será que existe algo maior por traz disto?
No mondo e nesta vida, há uma diversidade de temas interessantes que poderiam ser melhor explorados…