O clique inicial
Por mais que a própria Gabriela Biló atribua aos fotógrafos a pecha de “bicho chato”, foi isso que ela sempre desejou, ser um bicho chato. Biló, como gosta de ser chamada, formou-se em jornalismo pela PUC-SP. O interesse pela fotografia não foi um processo imediato. Durante a faculdade, ela se desdobrou em várias funções. De apresentadora de web canal, passando por garçonete e indo até animadora de grupo de crianças, ela foi desenhando seu caminho até descobrir seu apreço pelo mundo das imagens. E quando descobriu, achava que ser fotojornalista “era a coisa mais legal do mundo”.
A agilidade marcou o início da carreira, já que o mais importante era chegar primeiro e conseguir os melhores registros. Isso porque em agências independentes o ganho se dá por fotos vendidas. Pode ser que o fotógrafo vá a campo e, ainda assim, não consiga capitalizar com o trabalho. Munida de um rádio bombeiro, Biló se mantinha atenta às ocorrências. Em meio à correria para chegar o mais rápido em incêndios, desabamentos e tiroteios, a jovem paulistana atuava paralelamente como pauteira. Mas não era o que ela aspirava, Biló não queria lidar com fotógrafos, queria ser uma. Não tardou para que os espaços da indústria se abrissem para seu talento.
Logo nos primeiros meses que ela começou a fotografar, o Estadão a fez um convite para atuar como freelancer. Depois de um tempo, foi efetivada no jornal e por lá ficou durante nove anos. Biló deixou a “monótona” São Paulo e foi morar no maior pólo político do país, Brasília. Sua primeira ida à cidade havia acontecido anos antes e não poderia ser mais emblemática: o dia do impeachment de Dilma Rousseff. Desde então, encantou-se pela cidade, cobriu a posse de Bolsonaro e hoje em dia trabalha na Folha de S. Paulo.
Fora de foco: A labuta diária de ser uma mulher no fotojornalismo
Ser mulher no Brasil é um desafio diário, ser mulher e jornalista é uma tarefa hercúlea. Em fevereiro de 2020, foi revelado um dos maiores escândalos do governo Bolsonaro. Na ocasião, a jornalista Patrícia Campos Mello, também da Folha, fez uma reportagem sobre o disparo de mensagens no WhatsApp para beneficiar políticos durante as eleições do ano de 2018. Em reação a isso, como de praxe, o presidente Bolsonaro usou uma de suas conhecidas táticas de partir para ofensiva contra a imprensa, insinuando que a jornalista teria oferecido sexo em troca de informações.
Não é de assustar quando Biló declara que “deve ser ótimo ser homem”. Não que ela não goste de ser mulher, mas, “só por um dia”, desejaria ter alguns privilégios enquanto faz uma cobertura pesada. Desde o início da carreira, ela relata que todas as vezes que ganhava algum destaque, o mérito dela inexistia na equação. “Era porque eu saí com alguém, era porque eu estava dando pra alguém”, desabafa. Ela vivia uma situação delicada. Se por um lado apontar o machismo significaria correr o risco de ser tachada como a “feminista chata”, por outro, manter-se em silêncio para evitar ser repreendida seria tolerar os absurdos e deixar que as coisas continuassem como são. Para ela, a segunda alternativa nunca foi uma opção, porque se ela ficar em silêncio, “o que vai ser das meninas que começaram a fotografar agora?”.
Isso implica uma segregação no ambiente de trabalho, que precisa ser enfrentada por ela. Biló exemplifica a incômoda situação com um simples exemplo de “tomar uma cerveja com os chefes”. Até onde é seu dever corrigir comentários machistas em uma mesa de bar quando eles ocorrem? Como isso afetaria as relações interpessoais com os colegas de profissão? E em que momento, deixar de expor sua indignação com a misoginia internalizada em um discurso comum, vai de encontro com seu papel de proteger e otimizar as hostilidades de uma área nada receptiva à mulheres? Por isso, a fotojornalista frisa “Tem muitas coisas que você abre mão por ser mulher, […] você tem que buscar um caminho alternativo sempre.”, deixando claro as oportunidades perdidas pelo machismo que nos circula hodiernamente e a necessidade de “escolher suas batalhas”
“Isso é exaustivo”, comenta Biló, que resume em poucas palavras um sentimento tão profundo e complexo que acarreta milhares de mulheres em volta do globo, as limitações impostas devido à gênero: “Poder só me concentrar na minha fotografia, seria maravilhoso.” Uma gama de possibilidades perdidas, de explorar seu talento e de colocar a mão na massa na hora da produção, que lhe é impedida, pelo simples fatos de não ter o privilégio masculino em uma sociedade patriarcal, e as palavras ditas por Gabriela Biló em um tom baixo e consternado demonstram a sua frustração em ainda hoje estar diante disso.
Cartão de memória: experiências e visão fotojornalística
Quando se trata de sua vida profissional, a fotógrafa destaca a importância da música, filmes e artes audiovisuais em geral nos seus projetos. Para ela, o domínio do fotojornalismo está na absorção de todas essas inspirações, criando um estilo próprio mesmo se baseando em outros. Em sua visão existem vários tipos de fotojornalismo, como o de registro puro ou aquele que visa colocar significados, porém nenhum é melhor que outro. Pessoalmente, ela prefere ser do segundo grupo porque acha “divertidíssimo”, gosta do desafio de trazer outras camadas de significado em suas fotos, com foco na sua veia artística já citada previamente.
Uma das coisas que contribuem para a sua bagagem estética é a busca por se manter atualizada. É um hábito pessoal acompanhar as referências mais jovens que surgem no fotojornalismo. Segundo ela, a estética mais aceita pelo mercado pode mudar muito rápido, por isso é tão importante observar os novos produtores no ramo em que ela atua.
Brasília reúne os personagens mais controversos e relevantes do jogo político. Nesse campo de poder, é natural que grandes eventos se desenrolem. Sobre os seus momentos mais marcantes, Gabriela Biló conta que cobrir a posse do presidente Jair Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019 foi o ponto alto de sua jornada até aqui e deixou claro a importância do evento: “A posse é como se fosse a Copa do Mundo da política, acontece de quatro em quatro anos e é monumental”. Biló também contou sobre um momento mais recente, quando fotografou o encaixotamento das urnas eletrônicas para que fossem usadas nas eleições de 2022, sobre essa produção, ela disse: “Eu fiquei bem emocionada, achei bem bonito o momento”.
Sem sinal: Desafios
O papel da imprensa é o compromisso com a verdade. Mas como fica esse papel numa era em que fatos objetivos são menos influentes para moldar a opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais? O que o dicionário Oxford define como pós-verdade é o que gera o grande entrave do jornalismo atual. Na esteira dessa problemática, os jornalistas passam a ser os alvos preferenciais daqueles que não satisfeitos em discordar, optam por ataques diretos.
Em 2020 Gabriela Biló foi vítima de doxxing e teve seus dados pessoais vazados por um perfil bolsonarista. Biló é muito consciente dos riscos e possíveis desenrolares da profissão que escolheu, foi uma escolha pessoal. O que torna a situação um tanto mais complexa e difícil de aceitar é o fato de sua família ter sido exposta conjuntamente, chegando ao ponto de irem à casa de sua mãe.
Segundo o jornalista Sérgio Spagnuolo “Quando a porrada é forte e constante, a tendência é as redes sociais serem o martelo e os jornalistas, os pregos”. E Biló entende que essa dinâmica de ataques é muito propositiva para os detratores, pois a cada vez que um ataque acontece, um jornal se pronuncia sobre o caso e os perfis ganham muitos seguidores de quem não gosta de jornalista. É um engajamento orgânico.
Ativa no Instagram, Biló costuma postar seus registros no feed. Novamente, o cenário de ódio se repete, principalmente quando se trata de fotos do presidente. No entanto, ela também recebe uma carga considerável de elogios. Sendo críticas ou comentários a favor, seu modus operandi é simples, “não respondo”, afirma com convicção. Nesse ponto da entrevista, Gabriela Biló faz uma digressão importante, ela acredita que muitas das pessoas que admiram seu trabalho, talvez passem a ser mais reticentes se o presidente for outro. Afinal, independente do governo, o seu trabalho constitui uma fiscalização crítica, como ela define.“Então essas pessoas que elogiam hoje, amanhã talvez estejam não tão felizes assim”.
Em uma audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH) em 2022, jornalistas denunciaram o aumento de ataques à imprensa durante o governo Bolsonaro. Os profissionais da área acreditam que o presidente estimula a violência e impede a imprensa livre, sem a qual não existe democracia. Biló, que já foi chamada de golpista e alvo de ovadas durante o governo petista, confirma que os ataques se intensificaram na gestão Bolsonaro. Ela conta que hoje não basta descredibilizar o veículo em que o jornalista trabalha, os ataques são direcionados e com um toque personalista. A intenção é acabar com a vida da pessoa. “Agora não é só que eu sou a fotógrafa da Folha, eles vão atrás da Gabriela Biló.”
O instinto natural do ser humano é evitar riscos, na primeira situação de perigo agimos racionalmente para escapar o mais rápido possível. Porém, a tão propagada zona de conforto não é exatamente um processo evolutivo, pois muitas vezes serve como justificativa para cruzar os braços e aceitar resignadamente os problemas cotidianos. Gabriela Biló desconhece a zona de conforto. Nenhum dos percalços sobre os quais conversamos são impeditivos para que ela continue subvertendo o mundo das imagens, ou para que siga inspirando milhões de brasileiras. “Eu não quero ser uma mulher a menos. Eu quero ser uma mulher a mais”, ela sintetiza. Entre seguir passiva e enfrentar o mundo, crendo na possibilidade de que pode mudá-lo, ela escolhe a segunda opção todos os dias. Como todos os jornalistas, essa é sua motivação. “E isso não morreu em mim. No dia que morrer eu vou parar de fotografar vou parar de estar no ramo”, finaliza.
Contra perspectiva: futuro
Ao falar sobre seu novo projeto, o livro A Verdade Vós Libertará, com lançamento previsto para fevereiro de 2023, Gabriela Biló explica não se tratar de um livro de fotos, mas de um livro de arte, para ser um documento. A paulistana comenta que muita gente sempre falou que suas fotos estariam nos livros de história, “mas que história é essa? Que livros são esses?”, ela dispara. Essa provocação parte do pressuposto de que os tais livros de história estão sujeitos a serem escritos por quem está no poder. “Todas as vezes que a palavra ditadura aparecer vai ser substituída por revolução?”, questiona. Em suma, nada garante que eles sejam fiéis à realidade, a depender do governante. É exatamente por causa dessa incerteza que Biló fará o seu próprio livro de história. “Eu tava lá, sabe? Eu vi acontecer, eu fiz foto disso. Então eu vou fazer.”
A motivação da autora de primeira viagem foi aproximar as pessoas da política, fazer elas entenderem que pertencem àquilo e para não se sentirem distantes de algo que têm poder para mudar. Além disso, afirma: “Quando a gente vê as coisas que estão acontecendo, você fala “Não posso. Não posso deixar isso morrer num feed de Instagram, sabe? Em alguns poucos tuítes… Então transformar isso num documento é uma forma que eu encontrei de tentar contribuir de alguma forma, sabe?”
Biló conta ainda da escalada do autoritarismo no Brasil, com um ciclo, no seu ver, de início em 2013 com as manifestações de junho de 2013, as jornadas de junho, depois uma tomada de narrativa nas ruas, eleições, posse, Covid, e agora eleições de novo, consolidando ou finalizando esse arco político em 2023.
Há uma guerra de narrativas muito grande, muita fake news, muita verdade sendo manipulada. “O que é a verdade? É revolução? É ditadura? Que verdade é que a gente está falando? Quem tem poder escolher a história? Como é isso?” Então eu decidi fazer esse livro de fotografias […] ele é justamente uma história que a gente gostaria de esquecer, só que a gente não pode. Porque a gente não quer que a ditadura seja chamada de revolução.”
O livro conta com o design de Pedro Inoue, uma curadoria de áudios do podcast “Medo e Delírio”, de Cristiano Botafogo e Pedro Daltro, cartas do padre Júlio Lancelotti sobre a fé e a religião dentro do arco político, de Míriam Leitão sobre a ditadura e os militares no poder, de Juliana Dal Piva sobre a queda da popularidade do governo Bolsonaro e de Rubens Valente sobre a polarização e o impeachment.
Conteúdo produzido por Arthur Camarano, Júlia Mendonça, Leonardo De Deus, Letícia Lanes, Luisa Policarpo, Maria Eduarda Lisboa, Mateus Monteiro, Thiago Bueno na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard. A edição foi realizada na disciplina Edição em Jornalismo, sob a supervisão da professora e jornalista Maiara Orlandini.
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