Ela me acompanha desde os cinco. A primeira vez em que me estendeu a mão, foi na manhã seguinte a uma festa do pijama. Sim, o estopim para a sua chegada foi a fúria da energia de um grupo de meninas de nove anos. Não lembro de muita coisa da sua primeira visita: sei que as amigas de minha irmã mais velha passaram a noite acordadas. Davam cambalhotas nos colchões que se estendiam por todo o piso da sala de TV do apartamento em que morávamos, fazendo guerra de travesseiros e gargalhando. A única lembrança que guardo, no entanto, é a de acordar na manhã seguinte completamente zonza, dopada de anti-inflamatórios e remédios para enjoo. Minha mãe passava a mão nos meus cabelos enquanto eu dormia no sofá. Era o início de uma relação duradoura.
Aos oito, a duras penas, aprendi que suas visitas eram sempre para escancarar os sentimentos que eu tentava esconder: depois de uma crise de quatro dias, entre dores, novalginas e dramins, finalmente cheguei à conclusão de que expor as minhas frustrações e angústias era melhor do que recebê-la por longas e penosas horas. Talvez a culpa seja da lua em câncer. Talvez seja por eu ser a caçula da família. Talvez seja apenas algo que faz parte de mim e nem os astros, nem a minha constituição familiar tenham algo a ver. O que eu sei é que sou uma people pleaser nata e não há nada no mundo que atraia mais as temporadas dela comigo do que isso: basta fingir que está tudo bem para que ela venha ao meu encontro.
Aos dez, veio o primeiro tratamento: a médica alertou que o remédio poderia gerar ganho de peso, mas tudo valeria a pena para viver sem ela. Dez quilos a mais e seis meses depois, tudo voltou: sazonalmente, eu era obrigada a revê-la. Nos anos seguintes, quase me conformei. Aprendi que ligar da escola pedindo que meus pais me buscassem a cada um ou dois meses fazia parte de quem eu era – ainda que eu detestasse essa parte de mim.
Aos quinze, mais um tratamento: seis meses com medicação de uso contínuo, apenas uma ou duas visitas dela – e curtas, diga-se de passagem. Eu estava no céu. O médico suspendeu o remédio. Tudo voltou: em uma semana, cinco dias de dor aguda, trancada no quarto escuro, dopada. Entra em cena o remédio novamente. “Dessa vez você vai ficar nove meses tomando, vai dar certo”, disse o doutor. Deu errado.
Ano passado, descobri que Joan Didion também era assim (“será que a lua dela também era em câncer?”, me pego pensando) e pode parecer bobagem, mas, lendo “Na cama”, aprendi a detestar menos os períodos em que ela vem me ver. Naquele ensaio, Joan descreve a sua dor, mas a verdade é que eu sentia que ela estava descrevendo a mim e, de alguma forma, isso mudou a maneira como eu vejo as tais visitas.
Desisti da ideia de que algum dia ela pare de vir me ver. Seguiremos juntas, estou longe de amá-la, mas ela é parte de quem eu sou. E às vezes, até me traz boas ideias, como a de escrever uma crônica inteira sobre a nossa história, minha e da enxaqueca.
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