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Trote universitário: de violência simbólica a ambiente solidário

Colaborou: Pedro Alves.

O trote universitário é a recepção dos novatos que marca o ingresso na universidade. Psicólogas com quem a equipe do Colab conversou afirmam que é possível criar entrosamento entre calouros e veteranos nesses ritos de passagem, mas é preciso estar atento à hierarquia, que pode gerar intimidação.

De acordo com a psicóloga Neli Garcia, em muitos casos, a interação entre calouros e veteranos pode ser dificultada na ocasião do trote. “Gera-se o medo, a vergonha e o sentimento de insegurança e inferioridade nos calouros”.

Nos últimos anos, porém, trotes universitários vêm sendo modificados. A psicóloga, que também é pós-graduada em Psicologia Clínica e em Gestão de Recursos Humanos, destaca que, além do maior cuidado com o assunto, Instituições de ensino buscam cada vez mais conscientizar estudantes sobre as implicações dos trotes violentos.

Nessa ressignificação do trote, ela recomenda aos veteranos que, ao organizarem a brincadeira, pensem em uma alternativa acolhedora: “Tenho certeza que eles têm criatividade para pensar em algo acolhedor e que realmente tenha efeito de uma verdadeira interação”.

Da alegria ao medo

Valkiria Bocchetti, psicóloga pós-graduada em Neuropsicologia com formação em Dinâmicas Grupais, Arteterapia e Logoterapia e Análise Existencial, reforça que ritos de passagem podem ser benéficos aos calouros, se forem feitos de maneira saudável.

“Trotes com viés social podem servir para maior socialização dos calouros com colegas, bem como com a cultura universitária.”

Camila Bicalho, caloura do curso de Cinema e Audiovisual da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), considera que os trotes pelos quais passou ao ingressar na universidade não tiveram peso negativo.

Na ocasião, calouros foram recebidos do lado de fora do campus com brincadeiras envolvendo tinta e bebidas alcoólicas. A estudante também afirma que os trotes tiveram grande importância para ajudar a enturmar com seus colegas.

A recepção foi uma experiência legal porque a gente interagiu com os veteranos, nada me fez sentir desconfortável.

Camila Bicalho

Isabel Wai, que também é caloura de Cinema na PUC Minas, conta que, mesmo sendo uma pessoa introvertida, sentiu que “foi muito bom interagir com as pessoas sem ter medo”. Para ela, justamente por ter dificuldade em fazer amizades, o trote ajudou a conhecer melhor seus colegas e se sentir mais à vontade.

Maria Júlia Henriques, caloura de jornalismo da PUC Minas, conta que não houve nenhum constrangimento em seu trote: “Não foi nada obrigatório, nem pesado. No meu trote não teve nada que a gente não gostou”.

Outro calouro de jornalismo da PUC Minas, Iuri Cerqueira de Araújo, não consome bebidas alcoólicas e, mesmo assim, participou da brincadeira proposta pelos veteranos. Segundo ele, seus colegas não o pressionaram a participar: “Eu recusava, falando que não bebia, e nem insistiram”. O estudante, no entanto, também relatou que poderiam ter ocorrido outras brincadeiras que não envolvessem apenas bebidas alcoólicas, sem constranger os alunos.

Eu mesmo acabei não me envolvendo com muita coisa.

Iuri Cerqueira de Araújo

Em busca de experiências positivas

A experiência nem sempre é positiva para todos. Ainda há relatos de alunos e alunas que não se sentem acolhidos com a prática trote, em diferentes instituições. É o caso de Isabella Cunha, que entrou na universidade em agosto de 2019: “Eu acho desconfortável ser recebida da maneira como os veteranos receberam a gente”.

De acordo com a estudante, à época, os veteranos agiam e falavam em tom impositivo, e o trote não foi bem organizado. Outra estudante, Laurielle Saar, do 3º período de Matemática da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse que preferiu não participar dos trotes por causa da imagem violenta que manifestam.

Segundo a psicóloga Neli Garcia, para casos de violência, as consequências podem ser graves. Ela pontua que a violência psicológica não deixa de existir e, na maioria dos casos, é a mais difícil de curar.

Valkiria Bocchetti reforça que atividades violentas podem gerar ansiedade e outras dificuldades emocionais para calouros, como depressão e, dependendo do histórico do aluno, crises de pânico.

Confira a publicação de Valkiria Bocchetti sobre consequências emocionais dos trotes:

Valkiria Bocchetti também pontua que é importante que haja espaço de escuta e acolhimento para novos alunos a fim de ajudá-los no momento de adaptação, transformando o ambiente universitário em local mais confortável.

Violência pode atingir até quem não está participando

As consequências de um trote violento podem perdurar por toda a vida de um jovem.

Neli Garcia, psicóloga

Trotes universitários, além de causarem constrangimento aos calouros, podem também reproduzir estruturas de violência e reverberar violências simbólicas e preconceitos como o machismo e o racismo, como foi o caso do trote ocorrido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de Macaé no primeiro semestre de 2020.

Naquela ocasião, uma estudante foi pintada com tinta preta, característica da blackface, prática considerada racista, e também se vestiu de garçonete para “servir” aos veteranos.

Trote solidário

Uma alternativa aos trotes tradicionais são aqueles com cunho social, que visam arrecadar fundos para Organizações Não Governamentais (ONGs), por exemplo.

Os chamados trotes solidários têm sido cada vez mais frequentes nas universidades. Maria Clara Lacerda, estudante do 2º período de Jornalismo na PUC Minas, organizou um trote solidário com seus calouros no primeiro semestre de 2020 para arrecadar doações, como itens de higiene pessoal e alimentos não perecíveis. Ao final da gincana, o calouro que mais arrecadou recebeu um prêmio, como forma de incentivo.

Segundo Maria Clara, o trote foi bem sucedido: os veteranos arrecadaram cerca de 200 itens para a doação. “As doações serão direcionadas para o Lar Maria Clara, uma casa de repouso para idosos, localizada em Contagem, e para a ONG Mulheres por Elas, que arrecada kits de higiene pessoal para mulheres em situação de vulnerabilidade social em BH”.

O projeto foi idealizado pela estudante Maria Laura Carvalho, também do 2º período, uma das organizadoras do trote.

A estudante Raquel Joana, do 2° período de Jornalismo da PUC Minas

O trote solidário foi pensado para ajudar na integração dos calouros e, de quebra, fazer uma boa ação.

Maria Clara Lacerda

PUC Minas e os trotes

De acordo com o Regimento Geral da PUC Minas, são proibidos trotes estudantis que causem constrangimento e humilhação aos calouros nas imediações do campus.

A punição varia de acordo com a gravidade do trote, como previsto nos artigos 191 a 196 do documento, podendo ocasionar, até mesmo, no desligamento do discente da universidade.

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