Tu não imagina a emoção que é quando um bebê cai nas tuas mãos, ali, saudável, chorando forte. Acredita que tem criança que quando nasce eu até choro junto? É um grande privilégio. Pra mim eu fui iluminada por Deus, não tem explicação. Na hora do serviço a gente tá conectada com Deus, primeiramente, e deixa a natureza fazer a parte dela. Quando a mulher precisa de ajuda a gente diz: ‘faz assim”. Mas tem que deixar a natureza trabalhar primeiro. Em cada parto eu ganho mais conhecimento. Eu digo que parteira é sempre uma aprendiz. A gente não deixa de ser aprendiz”
Mãe Dôra Pankararu, parteira indígena
Maria das Dores Silva Nascimento (59) é parteira há mais de 40 anos. Entre os indígenas Pankararu, cujas terras estão no sertão pernambucano, próximo ao vale do rio São Francisco, é conhecida como Mãe Dôra. Além de exercer um importante papel de liderança comunitária e espiritual, foi reconhecida como Patrimônio Vivo do estado de Pernambuco em 2022, pela atuação na manutenção da cultura e tradição de seu povo.
Vinda de uma família de parteiras (sua avó, mãe e tias exerciam o ofício), Dôra conta que não tinha pretensões de seguir por esse caminho. Até que, aos 18 anos, acompanhou pela primeira vez o parto da própria cunhada. “Foi por acaso, eu estava na casa dela, a parteira me chamou para o quarto, para levar um lençol, e eu acabei ajudando”. A partir dali não parou mais. Já perdeu as contas de quantas crianças ajudou a trazer ao mundo, mas sabe que o número está próximo de 1200.
O trabalho é voluntário e ela atende todas as aldeias ao redor. Na maioria das ocasiões, leva alguma aprendiz: “Elas acompanham a gente nos partos, não só eu como as outras parteiras. A gente bota elas para fazer e fica do lado delas. É um respeito muito grande que o povo Pankararu tem pela figura da parteira, dando continuidade pra que essa tradição nunca morra”, conta. Dôra transmite seu conhecimento à nova geração mas, no que depender dela, ainda seguirá ativa por muitos anos: “Enquanto tiver bem, tiver coragem, saúde, e forças nas minhas pernas, eu vou estar partejando”.
No território Pankararu, os partos costumam acontecer nas casas, de forma natural. As idas para o hospital acontecem apenas quando a gravidez envolve riscos, como diabetes e pressão alta. Sobre essas situações, Mãe Dôra diz que costuma ter seu trabalho respeitado. Assim como ocorre no território indígena, ela pode acompanhar todo o processo na sala de parto. A única ressalva é em relação aos procedimentos: “No hospital eles não deixam a gente usar nossas ervas. Aqui na área a gente usa no antes, durante e pós parto. Lá eles não deixam, porque já tem outro método de trabalhar, mas ia ajudar muito”.
No mês de abril de 2024, Mãe Dôra recebeu o título de Notório Saber pela Universidade de Pernambuco. “Eu chorei do começo ao fim. Fiquei muito feliz em saber que o meu trabalho é reconhecido. Queria que todas as parteiras tivessem o que eu tive esse dia”.
Reconhecimento pelo IPHAN
O termo “parto tradicional” se refere às práticas historicamente desempenhadas por mulheres, a partir dos saberes tradicionais dos povos. Assim como Dôra Pankararu, milhares de parteiras espalhadas pelo país exercem esse trabalho em suas comunidades. Em 9 de maio de 2024, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu “Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais” como Patrimônio Cultural do Brasil.
Para Marília Nepomuceno, antropóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), esse reconhecimento é fundamental. Racializada e lida como parda no Brasil, a pesquisadora é de ascendência afroindígena e coordenou o “Cartografia de Parteiras Indígenas”, programa de salvaguarda das parteiras indígenas nordestinas realizado por pesquisadoras da UFPE.
É um ofício de cuidado, de grande expertise, que sustenta a vida, literalmente, em muitos territórios. Reconhecer isso como um elemento importante para a construção do país é uma reparação histórica. Produz visibilidade, ajuda a não criminalizar e a legitimar a prática dessas mulheres, gera autonomia para elas. Então, é muito importante que as instituições e órgãos públicos comecem a fazer essas reflexões”.
Marília Nepomuceno, coordenadora do projeto Cartografia das Parteiras Indígenas
A pesquisadora explica que o projeto surgiu da necessidade de visibilizar as parteiras indígenas dentro do universo das parteiras tradicionais, “porque elas têm contextos, comportamentos étnicos, rituais e cosmovisões particulares”. De acordo com ela, “lançar luz sobre os saberes e práticas das parteiras indígenas”, é fundamental para a preservação de seus ofícios, além de ser um instrumento para facilitar o acesso a políticas que as fortaleçam e gerem uma vida com respeito público.
Marília Nepomuceno ressalta que os indígenas, em geral, ainda são lidos de maneira equivocada. “Muita gente acha que há um fenótipo clássico, que eles estão concentrados no norte do país, possuem traços e modos de viver específicos. Mas a diversidade do ser indígena no Brasil é muito grande”. Segundo ela, isso se estende aos conhecimentos do parto. “As parteiras indígenas têm um conhecimento específico em relação às plantas e ervas medicinais que vão ser usadas no parto e assistência à saúde, têm entendimento sobre posturas, técnicas e manobras que dizem respeito à tradição delas. A maneira de lidar com o parto, com aquele rito de passagem, tem uma especificidade a partir de cada grupo étnico”.
Temos uma história de apagamento e genocídio do saber e das práticas indígenas no Brasil. E no Nordeste, sobretudo, porque foi na costa litorânea que a hibridação violenta entre povos e culturas se impôs, desde 1500, e se alastrou intensa e sistematicamente pelo resto do país. Então, as sabedorias que resistiram e se reinventaram são preciosíssimas, porque elas atravessaram desafios sobrenaturais para chegarem até aqui. Não são os pressupostos ocidentais que estão guiando essa métrica, mas há um repertório acumulado para entender porque se deve fazer tal manobra, usar tal planta, fazer tal ritual, se alimentar de tal coisa. Há uma expertise impressionante das memórias alimentares, do cuidado e de saúde sendo fomentada até os dias de hoje. Existe um conhecimento específico sendo produzido ali, entre as parteiras indígenas, que vem sendo passado de geração a geração através da oralidade”.
Marília Nepomuceno, coordenadora do projeto Cartografia das Parteiras Indígenas
A antropóloga, que também integra a equipe do Museu da Parteira, afirma que a atuação das parteiras extrapola o momento do parto. “As parteiras acabam se tornando, nas comunidades que são referência, delegadas, assistentes sociais, cuidadoras. Elas desempenham essa função de cuidado comunitário. São muito mais do que pessoas que acompanham as mulheres na hora que elas estão dando à luz. Elas são, de fato, mestras detentoras de saber, cuidado e auto-atenção comunitárias”.
Sobre a recepção das parteiras no sistema de saúde, Marília afirma que ainda há muito a ser trabalhado. “Elas vivem situações constrangedoras, muitas chegam ao hospital amparando uma mulher e são destratadas. Algumas parteiras, como Mãe Dôra, que também tem formação como agente de saúde e técnica de enfermagem, são respeitadas quando precisam ir para os hospitais em territórios não indígenas, mas esse respeito foi construído com o tempo. O acolhimento que o Estado articula para as parteiras ainda é muito desafiador”, lamenta. Segundo ela, na maioria das vezes, o que a equipe médica pensa é que os partos que chegam ao hospital tendem a ser mais complicados, “Eles acham que a parteira não deu conta, tem alguma intercorrência”, explica Marília Nepomuceno. “Então, isso acaba gerando uma leitura ruim das parteiras quando elas chegam nos hospitais. Eles não veem pelo lado de que a parteira foi lúcida, entendeu que teria limites para manejar aquela assistência e decidiu partir para uma assistência hospitalar”, completa.
Políticas públicas de saúde
Para Érica Dumont, professora de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora em saúde indígena, os saberes tradicionais podem colaborar em diversas fases da vida, principalmente no nascimento. “Temos vários estudos hoje que indicam que as mulheres, no contexto do parto e do pós parto, se sentem muito seguras com as orientações das parteiras tradicionais e sentem maior conforto em aderir ao cuidado delas. Então, mesmo que a assistência seja feita na unidade de saúde, quando elas estão acompanhadas por uma parteira, o pré-natal é mais tranquilo”. Ela acrescenta que esse tipo de pré-natal costuma envolver outras dimensões como a espiritualidade, a relação com a ancestralidade, a terra e o território.
De acordo com a pesquisadora, dados atualizados mostram que na maioria dos casos é possível viver a gestação e os partos nas aldeias, sem a necessidade de encaminhamento para uma cesariana ou intervenções fora do território. Além disso, os conhecimentos das parteiras são notórios nos cuidados. “Elas têm várias ervas e rezas que contribuem para reduzir a infecção no pré-parto e pós-parto. Há também um cuidado com a alimentação saudável, fortalecedora da mãe e do bebê. Tudo isso contribui para a redução da mortalidade infantil e para a melhoria da saúde materna, sem dúvida”, explica.
Para os pesquisadores da área, é importante que exista um diálogo horizontal entre os saberes tradicionais em torno do partejo e os saberes da medicina moderna. “Esse diálogo está previsto na Política Nacional de Saúde Indígena, mas ainda há muitas lacunas. Nem sempre os sistemas tradicionais indígenas, os saberes relacionados às ervas e aos cuidados no parto são incorporados nas unidades básicas de saúde. Ainda temos um longo percurso para que as parteiras, os pajés, as rezadeiras e as benzedeiras, sejam incorporadas de fato ao sistema, mas vários diálogos têm sido feitos nesse sentido”, afirma Érica Dumont.
Eu tive experiências muito bonitas de encontro com parteiras Pataxós, Xakriabás, que me ensinaram muito. Aprendi a pensar o parto pensando na terra, nas árvores, em como a natureza ajuda no algodão que vai ser usado, nas ervas que vão ser colocadas para macerar, para fazer as encergações ou os banhos. Aprendi sobre a música que precisa ser cantada, as rezas. Mas também tenho experiências duras, como as que tenho observado agora no território indígena Yanomami. É um contexto em que as gestações e os nascimentos são muito atravessados pela violência vivida, pelo garimpo, pelo racismo das instituições que deveriam acolher essas mulheres, mas são marcadas por muito desrespeito às vivências e aos modos de vida”
Érica Dumont, enfermeira e pesquisadora em saúde indígena na UFMG