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À espera do trabalho

Entregadores de ifood deitados em puff vermelho em uma praça

Foto de Licon Zarbietti

Quando pensamos no trabalho plataformizado, inúmeros estereótipos sobre os benefícios do trabalho digital são levantados, mas nem todos pensam sobre o tempo que passa à espera do trabalho. Grandes empresas do mercado digital investem fortemente no discurso do horário flexível e melhores remunerações. A multinacional Uber, por exemplo, não chama os motoristas da plataforma de funcionários, mas, sim, de colaboradores, reforçando a visão de motoristas como empreendedores e a plataforma como apenas um intermediário que liga o cliente ao prestador de serviço.

Porém, na realidade deste tipo de trabalho, a remuneração tende a ser mais baixa e os trabalhadores não são respaldados por direitos. O trabalho de plataforma representa a precarização no Brasil e no mundo, consequência da crise econômica global que aumentou o desemprego e o número de informais.

No mundo, o mercado do trabalho plataformizado já tem indicios de que a promessa de remuneração e liberdade no digital tende a não se realizar. A empresa alemã Clickworker, plataforma de freelancers, anuncia que os trabalhadores recebem US$9 por hora trabalhada, porém, segundo o relatório sobre trabalho digital e o futuro do trabalho, produzido em 2017 pela International Labour Organisation (ILO), a média por hora no software não passa de US$5.

Além da falsa idealização desse tipo de trabalho, os dados apresentados por essas empresas não contabilizam o tempo de espera pelo trabalho, apenas o tempo gasto na realização da tarefa, sem considerar quando o trabalhador está procurando a tarefa ou fazendo treinamentos, por exemplo.

Trabalho plataformizado pelo mundo

Em um contexto global, o mito das melhores condições de trabalho em plataformas digitais é sustentado pelo mercado estadunidense e europeu. Em plataformas de trabalho freelancer como a Prolific, tarefas podem chegar a 18 libras esterlinas por hora. Porém, na realidade, esses valores só estão disponíveis para trabalhadores no norte global. A escassez de tarefas de alto nível em outras regiões do mundo aumenta o tempo de procura por tarefas e, consequentemente, diminui o valor recebido por hora, quando considerado o tempo gasto com essa procura.

Segundo a pesquisa da ILO já citada, os trabalhadores da plataforma digital AMT americanos recebem 4,6 vezes mais que seus equivalentes indianos. Em relatos para o mesmo estudo, trabalhadores também ressaltam que, ao entrar nas plataformas, é necessário fazer um período inicial de treinamento com várias tarefas gratuitas ou por valor reduzido, com o intuito de melhorar suas avaliações. Durante esse treinamento, o trabalhador fica sem remuneração até conseguir reconhecimento para ser aceito por tarefas com tarifas mais altas

Eu acho que o pagamento para trabalhadores indianos é menor que o pagamento para os americanos. Isso significa que a tarefa com taxa maior está disponível para eles e aquelas que dão centavos estão disponíveis para o trabalhador indiano, são as que eu tenho que fazer.

Trabalhador da plataforma AMT da Índia, em depoimento à pesquisa da ILO
Foto: Alizee Baudez

De acordo com o relatório, a falta de tarefas com valor alto em países em desenvolvimento está relacionada com o preconceito por parte dos empregadores, que preferem trabalhadores americanos ou europeus. Empresas reforçam essa realidade porque permitem que as tarefas sejam restringidas a um grupo específico segundo certos critérios, entre eles, o país de origem. Entre os trabalhos que pagam bem, muitas são micro tarefas, ou seja, são feitas rapidamente, o que diminui o valor final, considerando que o pagamento é por hora.

“Uma tarefa paga 18 libras por hora e demora um minuto para ser realizada, ou seja, paga 0,30 centavos de libra. Para realmente receber as 18 libras, um trabalhador teria que encontrar 60 tarefas de um minuto”, conforme explica o relatório da ILO.

Trabalho de plataforma no Brasil

No Brasil, os trabalhadores digitais são representados, majoritariamente, pelos entregadores de aplicativos e motoristas. Em 2020, com a pandemia, a demanda por sistemas de entrega aumentou enormemente. Segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o número de pessoas ocupadas no setor de transporte de mercadorias no regime de conta própria aumentou 70% de 2019 para 2020.

No caso dos entregadores, o tempo entre entregas geralmente é curto, mas, por falta de regulamentação mais justa por parte dos aplicativos, muitos passam muito tempo esperando os pedidos nos restaurantes, sem remuneração. Segundo o relato de Vanessa Barbosa, entregadora do iFood, em episódio do ColabCast, os entregadores perdem muito tempo esperando o pedido.

A gente chega no restaurante e espera muito tempo. O tempo que o iFood dá para o restaurante para entregar o pedido é de 30 minutos, então, os restaurantes ficam muito folgados. Eles acham que a gente é obrigado a esperar 30 minutos, mas a realidade não é essa. Eu ganho por entrega, eu não ganho para ficar esperando.

Vanessa Barbosa, entregadora do iFood, em depoimento ao ColabCast

O caso do bloqueio branco

Além da demora nos restaurantes, os entregadores sofrem com outras estratégias do algoritmo do aplicativo que prejudicam seu trabalho. Paulo Galo, entregador e ativista, explicou em entrevista para a Folha de S. Paulo o fenômeno que os entregadores chamam de bloqueio branco: a consequência sofrida pelos motoqueiros que contrariam a plataforma. Se os motoqueiros cancelam corridas ou não trabalham no horário agendado, eles não recebem mais entregas, apesar de não estarem oficialmente bloqueados.

Vanessa Barbosa explica como o mecanismo do bloqueio branco prejudica a rotina dos entregadores:

Se, por exemplo, você fez uma meta, você está quase cumprindo sua meta e são oito horas da noite, eles vão te deixar no gelo, vão te dar um gelinho de meia hora, você vai ficar um tempinho esperando, para eles conseguirem te segurar mais na rua

Vanessa Barbosa, entregadora de aplicativo

Esses mecanismos do aplicativo existem para manter os trabalhadores ligados na plataforma, trabalhando, mas sem serem remunerados. Assim, trabalham mais e recebem menos, contudo, não podem recorrer ou reclamar pois, na teoria, não estão bloqueados. Ao mesmo tempo, as empresas se escondem atrás da tecnologia e da lógica do algoritmo para negar a prática.

Entregador se alimenta na rua enquanto checa o celular. Foto gentilmente cedida por Lincon Zarbietti

A consequência mais impactante desses mecanismos está na realidade do trabalho de plataforma, bem diferente daquilo anunciado pelas empresas. No contexto de países em desenvolvimento que sofrem com forte processo de viração, principalmente após a pandemia da covid-19, muitas pessoas desempregadas ingressam nesse mercado por falta de opção e se encontram presas às condições de trabalho impostas pelas plataformas.

O que a gente vê é que a gente está se tornando escravo, sabe? É como se fosse um vício.

Vanessa Barbosa, entregadora de aplicativo
Este texto é um dos cinco capítulos da série especial de reportagens do dossiê "Fronteiras", realizado por alunos do 5° período do curso de Jornalismo da PUC Minas para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital. Para acompanhar toda a reportagem, passe o mouse nos títulos abaixo e clique no capítulo de sua preferência:

Capítulo 1: A realidade do trabalho plataformizado 
Capítulo 2: À espera do trabalho (Você está aqui)
Capítulo 3: Viração: direitos trabalhistas em xeque
Capítulo 4: Condições do trabalho na era digital
Capítulo 5: Gig economy e trabalho on-demand: Direitos em falta
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