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Sinofobia: entenda o preconceito contra a China

Bandeira da China. Imagem: Reprodução/Freepik

A pandemia de Covid-19 teve grande impacto na vida cotidiana de todo o mundo. O primeiro caso conhecido do vírus SARS-CoV-2 foi identificado em dezembro de 2019 na cidade Wuhan, província chinesa de Hubei. Com alto índice de contaminação, a doença se espalhou rapidamente para outras partes da China e eventualmente para outros países devido à globalização.

O mundo precisou se adaptar à pandemia, enquanto instituições governamentais buscavam informações sobre a Covid-19 e como combatê-la. Devido à falta de explicações satisfatórias sobre a origem do vírus, o discurso popular tomou a frente das discussões nos primeiros meses de pandemia, o que colaborou para o surgimento de diversas teorias da conspiração a respeito do vírus.

O fator comum entre todas as especulações movimentadas pela desinformação é a culpabilização da China, país onde o vírus foi primeiramente identificado. Desde acusações de negligências a especulações de que a Covid-19 teria sido criada em laboratório e até mesmo a criação de estigmas como “vírus chinês”, a China se tornou alvo de ataques no que pode ser entendido como sinofobia.

Lizi C. Lee, economista e pesquisadora de economia chinesa do Asia Society Policy Institute’s (ASPI), explica como a pandemia contribuiu para o aumento de um preconceito que já persistia.

A pandemia de COVID-19 teve um impacto profundo no ressurgimento da sinofobia, traçando paralelos com episódios históricos de discriminação contra as comunidades asiáticas. O surgimento da pandemia em Wuhan, na China, remete ao tropo histórico de doenças ligadas a grupos étnicos específicos. Por exemplo, durante o final do século 19, os imigrantes chineses nos Estados Unidos foram injustamente culpados pela disseminação de doenças como a varíola. Essa tendência de bode expiatório ressurgiu no contexto da COVID-19.”

Lizi C. Lee, economista e pesquisadora de economia chinesa do Asia Society Policy Institute’s (ASPI)

A psicóloga e diretora de projetos especiais da Safernet Brasil, Juliana Cunha, explica como a incerteza leva a busca por conteúdos hostis: “Quando as pessoas não têm acesso a muita informação e lidam com fenômenos que até então são muito desconhecidos, que geram muitas incertezas e medo, isso pode levar as pessoas a se engajarem em conteúdos de desinformação”. Juliana também explica que, como há uma busca para um culpado para toda a situação do vírus, no caso, seria a China e os chineses – ainda que não haja culpabilização oficial.

Dados foram coletados e divulgados pela Safernet Brasil.

Sinofobia durante a pandemia

A disseminação do vírus foi um catalisador para que o pensamento sinofóbico se espalhasse mundialmente, com ataques generalizados não somente a pessoas de origem chinesa, como asiática no geral. Uma pesquisa realizada pela Pew Research, organização não-partidária dos Estados Unidos, com objetivo de informar sobre problemas, decisões e assuntos do momento através da análise de dados, reuniu, em abril de 2021, 352 asiático-americanos para falar sobre o crescimento da xenofobia durante o período pandêmico.

45% dos entrevistados afirmaram ter sofrido ofensas desde o começo da pandemia. Outros 27% disseram que podiam sentir que as pessoas ao seu redor estavam agindo como se estivessem desconfortáveis. Ao serem perguntados sobre as principais razões pelo crescimento da violência contra asiáticos nos Estados Unidos, 20% dos entrevistados citaram o ex-presidente Donald Trump como um desses motivos.

Em março de 2020, Trump realizou uma conferência de imprensa em que o termo “vírus chinês” foi utilizado em sua fala. O republicano enfrentou críticas ao seu discurso, que denunciavam que chamar o vírus dessa maneira configurava racismo. Tais críticas foram prontamente respondidas pelo ex-presidente, que disse que o termo “não é racista de forma alguma”.

”Porque vem da China” afirmou Trump ao ser perguntado da sua persistência em referir-se à Covid-19 como “vírus chinês”.

Além disso, o ex-presidente dos Estados Unidos também afirmou que “o mundo estava pagando pelo que eles fizeram”. Dois meses antes, em janeiro de 2020, Trump utilizou as redes sociais para parabenizar o governo chinês pelos seus esforços em combater o novo vírus. A rápida mudança de discurso não passou batida pelos veículos de notícias.


Tradução:  "A China tem trabalhado muito para conter o Coronavírus. Os Estados Unidos valorizam muito os esforços e a transparência deles. Tudo dará certo. Em particular, em nome do povo americano, eu quero agradecer ao Presidente Xi!"

Em setembro do mesmo ano, Donald Trump voltou a culpar a China pela disseminação do vírus em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). O então presidente dos Estados Unidos afirmou que existia uma batalha contra o inimigo invisível chamando-o novamente de “vírus chinês”, e que o país asiático deveria ser penalizado por “soltar essa praga no mundo.”

Para Lizzi C. Lee, a não distinção entre ações do governo e o pensamento do povo chinês resulta em generalizações infundadas. “É imperativo reconhecer que as ações de um governo não refletem as crenças e a conduta de toda uma população”, afirma a economista. “Para contornar generalizações prejudiciais, a ênfase deve ser colocada na crítica de políticos ou ações específicas, em vez de atribuí-las a uma nação inteira”.

As ações do republicano também repercutiram em território brasileiro, onde o então presidente Jair Bolsonaro também se utilizou de termos como como “vachina” para criticar o desenvolvimento da Coronavac, por exemplo, em parceria com o Instituto Butantã.

A sinofobia no Brasil

A imigração chinesa no Brasil data de 1810, quando D. João VI organizou a vinda dos chineses oriundos da colônia de Macau para realizar o cultivo de chá nas terras brasileiras. O Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) estima que, atualmente, cerca de 300 mil chineses vivam no Brasil, o que representa 5% dos imigrantes no país. Grande parte deles vive em São Paulo, na capital paulista.

Durante a pandemia, assim como outros países, o Brasil perpetuou narrativas de culpabilidade direcionadas à China. Com a chegada do vírus no país, os efeitos econômicos e sociais foram graves. Muitos comércios, em sua maioria de pequeno porte, precisaram fechar devido ao lockdown, que impedia serviços não essenciais de manterem suas portas abertas.

Em abril de 2020, o então ministro da educação Abraham Weintraub utilizou de seus perfis em mídias sociais para perpetuar sinofobia. Utilizando a foto da capa de uma das edições da popular HQ infanto-juvenil brasileira Turma da Mônica, em que os personagens visitam a China, o ministro caçoou do sotaque de chinês fazendo um paralelo com o hábito do personagem Cebolinha de trocar a letra r pela letra l.

Imagem: Reprodução de captura de tela do Twitter. Weintraub apagou o tweet original.

À época, o Ministério da Educação optou por não se manifestar a respeito da sinofobia contida no tweet, afirmando que não comentariam postagens do ministro nas mídias sociais. O post foi deletado tempos depois.

Ainda em março de 2020, Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente e também deputado estadual, utilizou o Twitter para fazer a seguinte afirmação:

Em resposta, a embaixada da China no Brasil expressou seu repúdio pelo comentário logo abaixo do tweet do deputado:

O discurso repleto de sinofobia também foi duramente criticado pelo ex-embaixador chinês Yang Wanming:

Se por um lado, o comentário de Eduardo Bolsonaro foi criticado pelos representantes da China no Brasil, por outro, muitos comentários demonstravam concordar com a fala do deputado, direcionando comentários de ódio para o país asiático.

Chineses com medo de sair às ruas

Lucas Chen, descendente de taiwanês e estudante de Letras da Universidade Federal de São Paulo (USP), idealizador do projeto de podcast Chinacast, conta como a pandemia foi um momento delicado para todos, mas especificamente para os chineses.

“Na pandemia as pessoas ficaram dentro de casa, evitavam contato social, essa coisa toda, mas particularmente para os chineses, foi um pouco mais delicado e eu cito aqui um exemplo pessoal. Meu pai tinha medo de sair durante a pandemia, não só por conta do vírus, mas por conta das notícias de ataques que estavam acontecendo a chineses” conta o estudante.

Lucas também conta que apesar de ser descendente, o medo de sofrer sinofobia nas ruas também existia nele. “Isso aconteceu muito mais nos Estados Unidos, mas chegou acontecer em algum grau aqui no Brasil. Teve um caso especificamente no metrô aqui de São Paulo com um japonês, que por ter traços orientais, foi atacado”.

O impacto nas mídias sociais

As mídias sociais também se tornaram um ambiente propício à sinofobia durante a pandemia, e isso refletiu nas buscas do Google, maior plataforma de pesquisas do mundo.

Para Juliana Cunha, os preconceitos expressados nas mídias sociais representam um espelho do que é vivenciado de forma estrutural fora delas. “Manifestações de discriminação nos conteúdos que circulam nas plataformas são reflexo das desigualdades e discriminações que a gente vive fora desses ambientes” afirma. “Então, uma coisa acaba retroalimentando a outra”.

Antes da confirmação do primeiro caso do vírus no Brasil, por exemplo, a atriz de ascendência japonesa Ana Hikari foi vítima de xenofobia enquanto estava em uma festa de pré-carnaval. Ana conta que foi abordada por um homem que lhe disse: “Sai com esse coronavírus daqui.”

O ataque à atriz demonstra como os comentários preconceituosos não se restringem ao ambiente digital.

Stop Asian Hate

Como forma de combate à crescente hostilidade promovida contra asiáticos, potencializada pela pandemia, o movimento Stop Asian Hate surge no cenário pandêmico em 2021. Motivado pelo tiroteio em três casas de massagem na cidade de Atlanta, Estados Unidos, que acabou matando oito pessoas de origem asiática, o movimento pedia o fim aos ataques de ódio contra asiáticos.

Em relatórios divulgados pela comunidade asiática-americana e das Ilhas Pacíficas (AAPI) em 2021, os chineses representavam 42,2% dos relatos de experiências de ódio, sendo o grupo étnico com maior percentagem da lista. Para Lizi C. Lee, o movimento exerceu um impacto profundo na conscientização da xenofobia contra asiáticos.

Esse movimento de base trouxe essa questão para o primeiro plano, mobilizou comunidades e angariou apoio de um amplo espectro da sociedade. Sua influência se estende à formulação de políticas e iniciativas destinadas a combater a discriminação, promover a inclusão e responsabilizar os perpetradores. O movimento serve como uma prova do poder transformador da ação coletiva no enfrentamento à xenofobia e ao preconceito”.

Lizi C. Lee

Para a pesquisadora, o diálogo intercultural e a educação ocupam um papel fundamental na mitigação da sinofobia e na criação de um ambiente caracterizado pela coexistência pacífica. “Ao promover programas de intercâmbio cultural e educação intercultural, as sociedades podem trabalhar coletivamente em direção a uma comunidade global mais inclusiva e harmoniosa, diminuindo assim a influência da sinofobia e preconceitos semelhantes”, comenta.

Pôr do sol em Xangai. Imagem: Reprodução/Freepik

Buscas no Google refletem preconceito

À primeira vista, o vírus foi associado ao consumo de morcegos, o que levantou dúvidas sobre a veracidade desse fato, fazendo as pesquisas aumentarem.

O consumo de animais incomuns para a cultura brasileira gera choque cultural, fazendo com que ideias semelhantes sejam foco de busca também, o que explica o aumento de pesquisas pelo consumo de cães, prática milenar da China que atualmente, é rara.

O termo “vírus chinês”, muito utilizado para se referir à Covid-19, também obteve crescimento nas pesquisas.

Todos os dados foram coletados do Google Trends. Foram analisados termos de pesquisa em território nacional.

A imprensa também colaborou para que os números de pesquisas pelos termos e a sinofobia aumentassem significativamente, principalmente no período inicial da pandemia, quando matérias de tom conspiratório foram vinculadas nos principais meios jornalísticos. Muitas das vezes, o material vinha de reportagens internacionais, e eram traduzidos para os brasileiros.

“No período da pandemia, inúmeras teorias de conspiração de que o vírus era criado em laboratório foram criadas por esses jornais estrangeiros e aí o Brasil foi lá e só replicou”, conta Lucas Chen, do podcast Chinacast.

China comunista e o imaginário da sinofobia

O comunismo é frequentemente relacionado à China principalmente devido à revolução comunista liderada por Mao Zedong em 1949, que resultou na fundação da República Popular da China. Após a vitória dos comunistas sobre os nacionalistas na Guerra Civil Chinesa, o Partido Comunista da China (PCCH) estabeleceu um regime comunista que moldou profundamente o país.

A partir desse período, a China foi guiada pelo princípio do comunismo, seguindo um sistema político de partido único, com a liderança do PCCH. No entanto, ao longo dos anos, a China passou por mudanças significativas em sua política econômica. Desde as últimas décadas do século XX, o país adotou reformas econômicas que permitiram elementos de mercado e empreendedorismo, impulsionando o rápido crescimento econômico.

Embora o PCCH ainda esteja no poder na China, a economia chinesa se tornou uma mistura de planejamento centralizado e características de mercado, o que resultou em um sistema frequentemente chamado de “socialismo de mercado”.

Império Comercial Chinês

Lanternas da China. Imagem: Reprodução/Freepik

Em contraste com as manifestações de sinofobia que surgiram dentro do Brasil, o país registrou, no primeiro semestre de 2023, a importação de 3,3 bilhões de produtos chineses, marcando um aumento de 11,4% em comparação ao mesmo período ano passado. O levantamento foi feito pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

A Shein, loja de roupas fast-fashion chinesa, faturou R$ 8 bilhões no Brasil em 2022, um aumento 300% em relação a 2021 e superando marcas tradicionais do mercado como Marisa e C&A, afirma relatório da BTG Pactual.

Para além do consumo de produtos, a China também marca presença nas redes sociais.

O TikTok, plataforma de origem chinesa, é atualmente a terceira plataforma de consumo de vídeos mais utilizada no país de acordo com a Kantar Ibope Media, representando 3,1% de audiência.

A plataforma de vídeos contém 82,2 milhões de usuários brasileiros maiores de 18 anos, conforme divulgado pela DataReportal, o que coloca o Brasil no top três dos países que mais consomem o TikTok, atrás apenas dos Estados Unidos e da Indonésia.

Repertório cultural na luta contra o preconceito

Alessandra Rocha é advogada e, no começo da pandemia, passou a estudar sobre a cultura milenar da China.

Como forma de organizar seus estudos e também promover a cultura chinesa em um momento em que a sinofobia crescia dia após dia, Alessandra decidiu criar o podcast Chá da China.

Muita coisa que usamos hoje foram criadas na China, bebemos chá, que tem sua origem lá, fazemos acupuntura, que é parte da medicina tradicional chinesa, usamos papel, que é invenção dos chineses. Sem mencionar tudo o que usamos hoje que é fabricado na China, como as próprias máscaras de proteção contra o vírus, que em sua maioria vinham de lá.”

Alessandra Rocha
Imagem: Reprodução/Acervo Pessoal

Alessandra acredita que o maior contato com a cultura chinesa e a disseminação de informações verídicas são a chave para o discernimento da realidade em casos de ódio e xenofobia. “Quanto mais informações de qualidade as pessoas tiverem, de fontes confiáveis, como estudiosos, pesquisadores, pessoas que vivem ou já viveram na China, quanto mais tiverem contato com essa cultura, mais vão ser capazes de discernir entre o que é a realidade e o que é uma imagem criada por meio de informações, muitas vezes fake news, superficiais, até mesmo fantasiosas, fornecidas por quem também não conhece muito e só reproduz o que ouve por aí” afirma.

Lucas Chen, do ChinaCast, explica que há uma dependência da economia brasileira com os Estados Unidos, mas que a evolução na qualidade dos produtos de origem chinesa tem sido notada não apenas no Brasil, como no resto do mundo. “Antes você achava só produtos chineses na Liberdade, em São Paulo, ou em poucos centros de comunidades chinesas que se estabeleceram ao redor do nosso país. Depois de um tempo, isso começa a se disseminar, produto chinês em tudo quanto é canto”.

Conheça músicas de C-POP, gênero de música popular chinesa, na playlist do Colab. Curadoria de Larissa Guimarães:

A China pelo olhar brasileiro

Imagem: Reprodução/Acervo Pessoal

O estudante de engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) André Luis Assis Figueiredo tinha uma ideia certa: fazer intercâmbio. Sua ideia inicial era ir pra França, pois fazia curso de francês há dois anos, mas ao se deparar com a opção de ir para Hong Kong, o estudante decidiu seu destino sem pensar duas vezes.

André conta com sua experiência como um brasileiro na China em um bate-papo:

Ouça o podcast com o intercambista André Luis Assis Figueiredo.
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