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Silêncio rompido: Estado reconhece crimes da ditadura

Vera Paiva presente na solenidade // Foto: Isabella Silva

O golpe civil-militar no Brasil ocorreu em 1964 com apoio do Congresso Nacional sem o amparo na Constituição e com a deposição do presidente João Goulart. Entre os atos institucionais da Ditadura Militar, o AI-5, decretado pelo general Costa e Silva em dezembro de 1968, suspendia as atividades do Congresso e autorizava a perseguição de opositores. Assim, principalmente a partir de 1968, o Estado brasileiro patrocinou uma repressão, baseada em censura, medo, tortura sistemática, prisões ilegais e desaparecimentos.

Nesse contexto, militantes políticos, estudantes, trabalhadores foram vítimas de vigilância, sequestros e prisões arbitrárias. Esses desaparecidos políticos simbolizam uma ferida aberta na história brasileira, marcada pela negação de direitos fundamentais e pela luta incessante de familiares e movimentos sociais pela memória e verdade.

Retificação das certidões de óbito 

No dia 28 de agosto de 2025, foram entregues as primeiras certidões de óbito revisadas do país para 63 famílias das vítimas da ditadura militar. A reunião ocorreu na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com presenças especiais, como Vera Paiva, filha de Rubens Paiva e Eunice Paiva. O evento contou com personalidades importantes nesse processo de retificação, como a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, e a presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Augusta.

Televisão mostando a palavra Verdade na tela.
Reunião organizada pela Comissão de Direitos Humanos da ALMG / Foto: Isabella Silva

A ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar, também presente na cerimônia, disse que participava do evento também como cunhada do desaparecido político Paulo Costa Ribeiro Bastos, capturado pela ditadura em 1972.

“Essa cerimônia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais resgata a memória dos mártires que lutaram pelo ideário da liberdade. O reconhecimento, por parte do estado brasileiro, dos atos de horror, das brutalidades e das violências contra ele perpetradas e contra todos os que tombaram lutando pela liberdade. Finalmente, os mortos escaparam e revivem hoje como cidadãos. Vamos sorrir”, desabafa a ministra.

A nova formulação presente nas certidões de óbito das vítimas agora traz explicitamente a responsabilidade do Estado brasileiro, descrevendo que a morte foi: não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população, identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964.

Ao registrar a responsabilidade direta do Estado nas mortes, o Brasil afirma manter viva a memória dos que lutaram por liberdade. É um gesto de reparação simbólica, que transforma silêncio em voz e invisibilidade em presença histórica. Mais do que nunca, é preciso lembrar: não é tempo de regredir.

Violação

A tortura foi o sistema adotado para extrair informações e criar dor nas vítimas presas e condenadas nesse período. A Comissão da Verdade de São Paulo conta a história de Eduardo Collen Leite, o Bacuri, o militante que, depois de preso, foi torturado por 109 dias nas mãos de seus executores, sendo submetido a todo tipo de torturas, como olhos arrancados e as pernas lentamente consumidas pelas infecções das fraturas e feridas, até ser morto por agentes do Estado.

Gildo Macedo Lacerda, estudante universitário e militante, foi morto em 1973, por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão subordinado ao Exército. A versão oficial  noticiava que Gildo Lacerda teria morrido em um tiroteio provocado por outros colegas de militância, que foram presos e confessaram um encontro na Avenida Caxangá, em Recife, no dia 28 de outubro de 1973.

Mais tarde, em 1993, o Ministério da Aeronáutica enviou um relatório prestando explicações sobre alguns desaparecidos políticos. Sobre Gildo, o relatório reiterava que a morte foi em tiroteio no dia 28 de outubro, junto com José Carlos da Mata Machado, reforçando a versão oficial. Esse esforço para esconder a morte dos militantes ficou conhecido como “Teatro de Caxangá”, em alusão ao caráter fantasioso do episódio. 

No livro Pela memória de paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, presente!, da professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Tessa Moura Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda, evidencia a dor e a importância de resistir.

“Por que negociar sempre com as Forças Armadas? O que as Forças Armadas fariam se algum desses governos resolvesse decretar leis contra ex-torturadores, revisar a Lei da Anistia, julgar militares envolvidos no terrorismo de Estado, propor uma Comissão da Verdade antes da advertência da OEA? E por que as Forças Armadas, nessa negociação que sempre se fez, negam pura e simplesmente a existência de um regime de exceção e até mantém o elogio ao período mais terrível da nossa República? Por que não consta nos livros de história que meus filhos leem na escola a história de seu avô e de muitos outros como pessoas que lutaram pela democracia e pela Liberdade de todos? Por quê?” (LACERDA, 2023, p.84).

Cartaz de Oswaldo Orlando da Costa exposto na Assembleia Legislativa de MG / Foto: Isabella Silva

No relatório final da Comissão da Verdade, Oswaldo Orlando da Costa aparece como membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e com a data do desaparecimento em 7 de fevereiro de 1974 ou em abril de 1974. Na solenidade, familiares de Oswaldo receberam o documento com alívio em saber que a história e a memória ainda prevalecem. Em fala, os entes disseram “A gente passa a ter uma certeza de que o Estado, através do trabalho dessa Comissão assume todas as maldades, das arbitrariedades cometidas pelo estado, não só com família do Oswaldão, mas com a família de 63 mineiros e muitos outros brasileiros, então eu quero agradecer por esse momento.”

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