Era uma data tão emblemática, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Mas eu nunca gostei muito desta data, por motivos pessoais mesmo.
Entendo a importância, mas nunca celebrei o 20 de novembro, por acreditar que a consciência tem que ser diária. Então, nesse dia, eu sempre fico mal, mais quieto, mais reflexivo. E, assim, decidi ir para o estádio.
Minha relação com o Galo é desde que me conheço por gente. Meu padrinho Luizinho jogou no Atlético e também chegou a jogar no rival, Cruzeiro, mas minha família, em sua grande maioria influenciada pelo meu avô, que era atleticano fanático, se tornou atleticana. É até engraçado, todo aniversário é natural a gente cantar o hino do Galo depois dos parabéns. Foi algo passado de geração em geração, os mais novos até estranham quando vão a um aniversário e não cantam o hino.
Sou atleticano e, desde pequeno, a gente foi construindo esta paixão, mesmo nos tempos difíceis. Eu acho que foi quando o Galo estava jogando a Série B que criei este vínculo – eu lembro, era novo ainda -, meu pai me levava para assistir todos os jogos.
Os jogos do Galo sempre funcionaram para mim como uma terapia. É terapêutico, sabe? Juntar a família, os amigos, os vizinhos, fazer uma van e ir para o estádio virou um costume.
O jogo era Atlético e Juventude. Já na reta final do campeonato Brasileiro, o Galo estava cada vez mais próximo do dia de se sagrar campeão. Esse dia dá até um filme. Logo na ida, tivemos um problema com a van: já quase chegando na Pampulha, ela estragou e tivemos que pedir carona para terminar o trajeto até os arredores do estádio.
Por ser uma reta final de campeonato, o estádio estava ficando muito cheio e não conseguimos comprar ingresso para o mesmo setor, então tivemos que ficar separados. No mesmo setor ficaram: eu, meu irmão, as nossas namoradas e meus primos.
Quando entramos, estava aquela atmosfera de jogo decisivo, as arquibancadas vibrantes, a chuva caindo, o jogo difícil, os gols não saiam e, no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo, decidimos comprar algo para beber.
Como estava lotado, ao voltar para a arquibancada, tivemos que ficar na escada, entre as cadeiras, para acompanhar a partida. Foi nesse momento que apareceu um cara querendo passar de qualquer jeito. Minha prima pediu calma para ele, falou que estava muito cheio, pediu para ele esperar um pouco. Aí chegou um outro cara que puxou esse primeiro e, depois de passar pela gente, virou para trás, encarou minha prima, olhou para o meu irmão e disse:
“O que você tá olhando macaco?”
Olhei para ele e perguntei: “O que você falou?”.
Ele respondeu que não ia repetir porque a gente chamaria a polícia. Ele continuou andando até onde o filho dele estava e, ao ser perguntado sobre o que estava acontecendo, apontou para nós e respondeu assim: “É aquele bando de macaco ali”.
Todo mundo que estava próximo ouviu. Ele tinha consciência do que tinha acabado de fazer e saiu.
Minha namorada falou para sairmos dali, com medo de ele voltar e agredir a gente. Até que um torcedor que estava por perto chamou um segurança e fomos com ele até a delegacia do Mineirão para prestar queixa.
Ainda na delegacia, fomos abordados pela equipa da Itatiaia para uma entrevista, e a matéria saiu logo após o jogo. Assim que a gente saiu do estádio para encontrar o pessoal da van, começamos a receber mensagens de pessoas conhecidas, estava todo mundo abalado pela situação. Nossa família fez uma grande rede de apoio e foi aí que começamos a contar para eles tudo o que tinha acontecido.
Esse caso repercutiu bastante na mídia local, recebemos muitas mensagens positivas, mensagens de apoio de familiares, amigos e até de desconhecidos, mas também recebemos mensagens negativas, de pessoas falando que a gente queria chamar atenção. Respondi da seguinte forma:
Se eu quiser chamar atenção, eu vou chamar da maneira que eu sei fazer, que é vencendo na vida, fazendo o jogo virar, buscando melhorar a cada dia mais como ser humano, amigo, namorado, profissional, filho, é essa a realidade. Se eu quisesse ficar famoso por isso, imagina quantos casos que eu teria para contar na televisão
Logo na segunda-feira, fomos à delegacia para formalizar a queixa. No local, fomos encaminhados para uma delegacia especializada, do outro lado da cidade. Demos nosso depoimento, houve testemunhas, identificamos o agressor, porém, a gente sabe que a justiça no nosso país é muito morosa e, até hoje, estamos esperando alguma resposta.
A sensação que fica é de impunidade. A gente espera justiça, mas também sabe que vários e vários casos passam batido e viram estatística. Isso porque passamos por todos os trâmites legais e burocracias para formalizar a queixa. Por essa sensação de impunidade, de que nada acontece, sabemos que muitas pessoas acabam deixando de denunciar.
É complicado, é uma luta diária. Não existe uma fórmula mágica. Acredito que regredimos muito nos últimos anos, mas tenho a esperança de que a gente caminhe para um futuro melhor. Que a gente consiga trazer discussões mais conscientes, mais lúcidas, para as universidades, para as grandes mídias, para os estádios, e que ações mais efetivas sejam tomadas.
Infelizmente, em um dia tão emblemático como o 20 de novembro, quando as pessoas “se tornam conscientes” a gente viu ali, escancarado, que isso é uma mentira. Percebemos que as pessoas ainda estão muito distantes de terem essa consciência.
Foi um dia pavoroso para todos nós, porque não foi só a gente que sofreu, foi a nossa família, as pessoas que gostam da gente, que conhecem a nossa essência, que estão aqui com a gente no dia a dia. Chegar em casa e ver seu pai assistindo a reportagem chorando… Não tem o que falar.
Se eu pudesse dar um conselho às pessoas pretas é: se protejam. A gente sabe que o mundo lá fora é assim, que o racismo existe. Tem gente que parece que usa uma venda nos olhos e fala que isso não acontece, mas o racismo está presente na nossa sociedade. Eu aconselho as pessoas pretas a procurarem, sim, a justiça. Infelizmente, a raiva é enorme. No momento, você pensa em até ir para as vias de fato. A gente já está cansado disso, cansado de viver isso, de dar entrevistas, de tentar alertar, e quando se trata de a justiça fazer a parte dela, nunca somos comtemplados. A justiça não está acostumada com a gente do outro lado da mesa, mas é bom ir se acostumando por que nada mais vai passar.
Depoimento de Carlos Miguel de Almeida ao repórter Otávio Loureiro para disciplina Laboratório de Jornalismo Digital. Este relato faz parte da reportagem desenvolvida por Lucas Jannotti, Maria Clara Soares, Otávio Loureiro, Pedro Leite e Sofia Gontijo no semestre 2022/1 para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, sob a supervisão da professora Verônica Soares da Costa.