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Quando a representatividade será suficiente?

As eleições municipais de 2020 foram marcadas pelo aumento da diversidade entre pessoas eleitas. Minorias políticas como negros, indígenas e membros da comunidade LGBTQI+ mostraram sua força nas urnas este ano, indicando ser possível haver ruptura com o histórico de representatividade política, majoritariamente composta por homens brancos e heterossexuais.

Assim como observado em todo o território nacional, as eleições no estado de Minas Gerais resultaram em um maior número de candidatos que representam grupos minoritários. Na capital mineira, por exemplo, a candidata com o maior número de votos foi Duda Salabert (PDT), uma professora transsexual. Duda recebeu 37.613 votos e foi considerada a candidata mais votada na história de Belo Horizonte.

Em conversa com a vereadora eleita, ela afirma prezar por um mandato do povo e acredita que a representatividade de minorias nas câmaras compõe a resistência face ao governo Federal. Além dela, Paulete Blue (PSDB) e Gilvan Masferrer (DC), de Bom Repouso (MG) e Uberlândia (MG), respectivamente, representam uma parte dos transexuais eleitos no país.

Em relação ao pleito de 2016, a proporção de candidatos negros eleitos em Minas Gerais apresentou aumento de 26,6% para 29,9% entre os prefeitos e de 41% para 43,9% entre os vereadores, de acordo com dados do TSE. A cientista política Viviane Freitas observa mudanças significativas nas eleições no que diz respeito à diversidade, devido às crescentes movimentações sociais em plataformas digitais. A participação do público na política por meio das mídias sociais possibilitou um aumento do diálogo e uma alteração no quadro político tradicional. 

“Não é porque há mais mulheres e negros na Câmara Municipal que teremos mais facilidade de aprovar projetos que tratem dos direitos das mulheres ou dos negros”

Viviane Freitas

Entretanto, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pretos e pardos representam 53,3% dos habitantes em Minas Gerais. Isso quer dizer que, apesar do aumento do número de candidatos negros, eles ainda ocupam menos da metade das cadeiras nas câmaras municipais, o que não condiz com a proporção de habitantes negros do estado. 

Além disso, apesar de haver um aumento no número de pessoas que não correspondem ao padrão usualmente observado de homens brancos nas câmaras municipais, percebe-se que estes vereadores ainda representam uma parcela pequena em relação ao número total de candidatos eleitos nas eleições de 2020, como mostra o mapa abaixo. Das cidades representadas, Paracatu, Uberlândia e Diamantina possuem as maiores proporções de candidatos não pertencentes ao padrão mencionado. Em contrapartida, observa-se em Pouso Alegre, Muriaé e Governador Valadares os menores números.

Mapa das Comarcas de MG. Fonte: Aplicativo de resultados do Tribunal Regional Eleitoral
Duda Salabert, vereadora mais votada da história de BH.
Arquivo pessoal / Duda Salabert

“Nós não temos acesso nem a banheiro ainda”

A vereadora mais votada de Belo Horizonte, Duda Salabert, conta sobre sua candidatura e sua luta como mulher transsexual no meio político

As eleições municipais de 2020 para a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura de Belo Horizonte chamam a atenção para um dado divulgado pelas pesquisas: este ano, o Brasil teve recorde de candidatos LGBTQI+ concorrendo a uma vaga. Historicamente, o Brasil teve poucos nomes que representaram os direitos dos gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais no Poder Legislativo, o que faz com que este ano represente um marco para a comunidade.

Dados da revista Exame apontam cerca de 60 candidatas que se identificam como mulheres transsexuais, dentre elas Duda Salabert (PDT), a vereadora eleita mais votada de Belo Horizonte. Em entrevista ao Colab, a representante fala sobre sua jornada, perspectivas e lutas pela ocupação de altos cargos por representantes da comunidade LGBTQI+.

Colab – Por que você manifestou interesse pela candidatura?

Duda Salabert – Eu nunca tive o objetivo de me candidatar politicamente. Até porque minha formação política se deu dentro do anarquismo clássico, que tem uma visão muito contrária e crítica às instituições partidárias e à forma como o poder se cristaliza dentro dessas organizações.

Então, na verdade, após o golpe que ocorreu com a Dilma e as manifestações de junho de 2013, eu senti a necessidade de estar em um partido, justamente para poder buscar, por meio dessas ferramentas partidárias, a luta pela democracia no Brasil. E há também uma questão importante: os números do grupo que faço parte justificam também um pouco da minha entrada em um partido político.

O Brasil é o país que mais mata pessoas travestis e transexuais do planeta. Nós lideramos esse ranking há 11 anos, 80% dos assassinatos contra pessoas travestis e transexuais ocorre com uma violência exagerada, significa paus enfiados no ânus, corpos esquartejados. Dificilmente uma travesti é morta só com um tiro aqui no Brasil, dificilmente uma travesti é morta com uma facada só no país. 

Além disso, deve-se lembrar que 91% das travestis e transexuais de Belo Horizonte não concluíram o segundo grau. Se 91% das travestis e transexuais não concluíram o segundo grau, mostra que a escola tradicional é muitas vezes um espaço de reprodução de ódio, violência e intolerância com a diversidade, então não existe evasão escolar para travestis e transexuais, o que existe é expulsão escolar, porque a escola tradicional brasileira é intolerante à diversidade, e mais intolerante ainda contra as pessoas travestis e transexuais. Por isso é raro uma pessoa trans que tenha concluído o ensino médio.

Além disso, 90% das travestis e transexuais estão na prostituição. Quarenta e um por cento das travestis e transexuais com HIV, ou seja, a cada duas travestis que você vir, possivelmente uma está com HIV e estima-se que nossa expectativa de vida não supere 35 anos no Brasil. Então esses números mostram que nós nunca fomos pauta, nem no centro, nem na esquerda, nem na direita.

Nós nunca fomos pauta da política pública na história do Brasil. Nós temos que ocupar nossos espaços e fazer políticas públicas a partir dos nossos olhares e das nossas vivências, então, por isso, eu entrei em um partido político, justamente por entender que é necessário estarmos nesse espaço para rivalizar a construção de políticas públicas. Mas isso não justifica eu me candidatar é só estar em um partido político para construir ideias de projetos para serem reverberadas pelos candidatos e pelos políticos eleitos.

Eu vivi intensamente o partido do qual fazia parte, que era o meu Psol, há uma frase do apocalipse que eu amo, que diz “Deus vomitará os mornos”, ou seja, não há nada pior que uma pessoa morna, uma vida morna, uma fé morna, uma política morna. Então vivi intensamente aquele partido, eu fui convidada para disputar o governo do Estado em 2018. Rejeitei disputar o governo, porque não queria me candidatar. Depois me convidaram para disputar para deputada estadual e federal, também rejeitei. Se eu tivesse disputado, possivelmente teria ganho. Eu fiz três vezes mais votos do que o deputado eleito Aécio Neves, eu vou levar isso para a minha lápide. Depois me convidaram para disputar no Senado, eu aceitei por entender que nós vivemos na maior crise da história do capitalismo daquela época, hoje já se aprofundou, mas naquela época já era uma crise no sistema capitalista. E toda vez que ele entra em crise, há um achatamento da humanidade, que é nos reduzir a coisa, máquina e objeto. E coisa, máquina e objeto só trabalha, só produz. E uma das grandes resistências que nós podemos fazer em um contexto de crise, é disputar a dimensão simbólica.

A dimensão simbólica é tudo aquilo que não é concreto, tudo que não é material, mas é aquilo que nos humaniza. Então, por exemplo, o amor não é algo concreto, não é algo material, uma máquina não ama. Então quanto mais amor nós temos, mais humanos nós somos. A fé não é algo concreto, não é algo material, mas algo que nos humaniza. Quanto mais fé nós temos, mais humanos nós somos. Os sonhos, as paixões, as utopias estão na dimensão simbólica. E aí eu entendi que a minha candidatura teria uma dimensão simbólica, porque a palavra Senado, em sua etimologia significa “senhores”. É um espaço para senhores. E ter uma travesti disputando o Senado daria uma dimensão simbólica porque é uma travesti querendo penetrar o espaço dos senhores.

Temos que lembrar que o banheiro feminino só foi construído no senado em 2016, porque é um espaço para senhores. Até a última eleição, a idade mínima para disputar no senado era 35 anos. Trinta e cinco anos é a expectativa de vida de uma travesti no Brasil, então é mais simbólica ainda a candidatura. E o Senado sempre foi um espaço ocupado por moralistas. Todo senador sempre foi um moralista. E meu corpo, que é visto como um corpo imoral, rivaliza o conceito de moralidade daquele espaço. Então é por isso que eu aceitei disputar aquela eleição, que foi uma disputa da dimensão simbólica, porque a gente não quer só o concreto, a gente também quer o simbólico. A gente não luta só pelo pão, a gente luta pela poesia. A gente não quer só comida, a gente também quer a bebida, a diversão e a arte, então foi por isso que eu aceitei.

E este ano, 2020, eu aceitei novamente disputar para vereadora por entender que a pauta LGBT e dos direitos humanos corre risco em Belo Horizonte. Temos que entender que nós somos a primeira capital do Brasil a aprovar em primeiro turno o projeto “Escola Sem Partido”, que é um projeto que criminaliza o que estamos fazendo aqui agora, que censura o que estamos fazendo aqui agora, que é discutir gênero. E esse projeto quer criminalizar esse debate. É um projeto antidemocrático, então entendo que é necessário eu estar como vereadora desta capital, lutar contra esses projetos, lutar contra o avanço desses setores antidemocráticos.

Qual é a importância de haver pessoas LGBTQI+ na Câmara?

Nós temos que entender que, em âmbito federal, o Congresso Nacional nunca aprovou uma lei voltada para a população LGBT. Durante toda a história do Brasil, o Congresso Federal, a Câmara dos Deputados e o Senado, nunca aprovaram uma lei para melhorar a qualidade de vida das pessoas LGBT. Todos os avanços que tivemos em âmbito federal, veio por parte do STF (Superior Tribunal Federal). Então, a criminalização da LGBTfobia, o casamento homoafetivo, a adoção, nunca veio perante lei em âmbito federal mas que acaba reverberando em âmbito municipal também.

Nós não temos leis municipais voltadas para a melhoria da população LGBT, então nós temos que ocupar esses espaços, porque nenhuma transformação na sociedade ocorre se não for pela política, ou melhor dizendo, toda transformação ocorre por meio da política. Se nós queremos que os direitos humanos também pertençam a nós, temos que ocupar aquele espaço para fazer políticas públicas para a população LGBT.

Você é uma candidata muito ativa nas redes sociais e possui muito contato com adolescentes e jovens adultos. Na sua opinião, qual é o papel deste grupo de novos eleitores no que diz respeito à luta contra a LGBTQI+fobia?

Eu entendo que o que muda a sociedade não são novas leis. As leis são importantes para garantir direitos, mas elas não promovem mudanças profundas na sociedade. As mudanças ocorrem por meio de mudança de consciência. Quando nós conseguimos mudar a consciência das pessoas, a gente muda o país. Nós temos uma lei no Brasil que criminaliza o racismo, nós temos uma lei que proíbe o racismo no Brasil, quantas pessoas já foram presas por racismo no Brasil? Nós temos um presidente abertamente racista eleito.

Então, mais do que leis, nós temos que ampliar o debate sobre gênero e sexualidade em sala de aula. Essa nova geração que está vindo carrega consigo esse anseio de transformação e todas as transformações que têm ocorrido ultimamente vêm por parte da juventude. Vamos lembrar que em junho de 2013 a juventude foi para a rua, a juventude é o motor de transformação da sociedade. É a juventude que traz uma nova consciência. Então, nós temos que entender que é importante a juventude ocupar esses espaços políticos justamente para fazer transformações na sociedade.

Como fala aquele cantor Belchior, “o passado é uma roupa que não me serve mais”. Se o passado é uma roupa que não nos serve mais, é a juventude que vai transformar a sociedade. Nós temos gerações antigas, anteriores a nós, que tinham posturas e pensamentos preconceituosos relacionados a alguns grupos. Eu, sendo muito honesta, não me preocupo muito em transformar a consciência dessas gerações anteriores porque muitos deles nem querem se transformar, até porque foram criadas nesse tipo de pensamento. Eu me preocupo com essas novas gerações. A juventude que está vindo aí é uma juventude que tem tudo para transformar a política e transformar o país, numa perspectiva não só da população LGBT, mas também pela questão ambiental, pela questão dos direitos humanos, pela questão das religiosidades, pela questão do respeito. Então eu tenho muita confiança.

Você consegue perceber mudanças significativas em relação à participação LGBTQI+ na política nos últimos dez anos?

Sim, nós tivemos mudanças que são conquistas. Essas conquistas são nas ruas, temos que entender que a política partidária institucional acaba sendo um reflexo, uma consequência do que é construído nas ruas e os movimentos sociais estão muito organizados. Assim como tem os movimentos ambientalistas, tem o movimento feminista e outros diversos, o movimento LGBTQI+ também é um movimento organizado, e essa organização tem resultado em conquistas de ocupação da política partidária institucional, nós temos por exemplo deputadas estaduais eleitas que são travestis e transexuais e é inconcebível em gerações anteriores termos uma transsexual eleita, devido ao processo de preconceito que existe no Brasil.

Isso mostra que hoje, parte da sociedade já se sente representada por determinados grupos sociais, como o LGBTQI+. Vale lembrar que quando eu me candidatei ao Senado em 2018, eu fiz a candidatura dando aula, 50 aulas por semana e terminamos a eleição com 351 mil votos, fato que me coloca como a quarta mulher mais bem votada na história das eleições de Minas Gerais e aí você me pergunta se isso é minha maior vitória, e eu falo que não. Eu fui votada nos 853 municípios, ou seja, Minas Gerais tem 853 cidades e eu fui votada em todas, por menor que seja a cidade eu tive voto e aí você fala, então essa é sua maior vitória? E eu falo que não. A minha maior vitória é saber que por onde eu passo tem pessoas que falam assim: “Duda meu pai não me aceita, mas disse que votou em você”, ai eu respondo para elas que o pai aceita ela sim, ele tem dificuldades para aceitar seus próprios preconceitos e seu pai não votou em mim não, foi nele mesmo, dizendo que a partir daquele dia ele iria olhar para a diversidade de outra forma.

Portanto, eu acho que essa é a minha vitória, saber que menor que seja a cidade, teve 2% de pessoas se sentindo representadas por uma trans, essa é uma vitória de consciência, porque nossos sonhos não cabem nas urnas, as transformações profundas são nas consciências e 351 mil pessoas começaram a pensar diferente. Essa vitória é difícil de mensurar na consciência, mas nós temos vitórias concretas já  de parlamentares ocupando cargos, como a Érica que é deputada estadual em São Paulo, ela é transexual e negra.

Qual é o sentimento de este ano ter um recorde de candidatos LGBTQI+ concorrendo nas eleições?

É uma notícia ótima! Já é um avanço. Agora, nós temos que ir para o segundo passo: entender qual estrutura os partidos vão dar para estas candidaturas. Porque você percebe o apoio que o partido dá para a candidatura, pela estrutura dada. Simplificando, nós percebemos o valor que o partido dá para uma causa, através do valor financeiro que ele disponibiliza para aquela candidatura. Então é um avanço haver pessoas trans se candidatando, mas nós temos que lutar agora para conseguir maior estrutura. Mas já é uma vitória!

Nós temos que entender que, no Brasil, a categoria de humanidade não é uma categoria dada, ela está em disputa. Até 120 anos atrás, negros e negras não eram reconhecidos como humanos pelo Estado brasileiro. Precisou-se de quatro séculos de lutas para negros e negras acessarem, mesmo que precariamente, a categoria de humanidade. E hoje, nós, pessoas travestis e transexuais, não somos reconhecidas como humanas ainda pelo Estado. Basta perguntar qual é a maior pauta do movimento trans no Brasil e na América Latina: nossa maior pauta ainda é nome, banheiro, identidade.

O STF (Supremo Tribunal Federal), está há 6 anos discutindo qual banheiro eu vou usar. Isso é aviltante, é humilhante. Se vamos no banheiro masculino, vocês não sabem a violência que somos expostas. Se vamos no feminino, nós somos arrancadas pelo cabelo, como o episódio que aconteceu no STF. (…) Não acessamos ainda a categoria de humanidade, e essa categoria se dá, de nós não termos acesso nem a banheiro ainda. Por isso, essas candidaturas são um avanço. Ainda não há estrutura, mas lutemos também para disputarmos nos partidos para termos estrutura nas próximas candidaturas.

Diante de sua vitória, quais as maiores dificuldades de agir no Legislativo sob um governo Federal, principalmente um presidente, com histórico de discursos homofóbicos?

Eu acredito que está ocorrendo na América Latina um grande levante progressista. O Chile, depois de um ano do povo na rua, conseguiu direito a uma nova constituição, sepultando uma constituição que foi criada na época da ditadura militar do Pinochet. A Bolívia conseguiu barrar o avanço do golpismo lá, a Argentina tem avançado também, e eu acredito que o Brasil vai ser o próximo país a ter um levante progressista. Então nós temos percebido isso em candidaturas, por exemplo, como em São Paulo, a candidatura do Guilherme Boulos crescendo, Manuela Dávila no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro a Marta Rocha, que é do partido do qual faço parte, uma delegada que foi a primeira delegada civil, primeira mulher delegada civil, na época dela não tinha banheiro na delegacia, ela conquistou banheiro na delegacia.

Você vê que a pauta do banheiro é uma pauta histórica, banheiro sempre foi feito só para homens, então assim ela conquistou um banheiro, e hoje ela é deputada estadual candidata a prefeita do Rio e está em segundo lugar, empatada com o Crivella, então está tendo um avanço. Aqui em Belo Horizonte, no pior dos cenários, o Kalil sendo eleito, pelo menos o Kalil é um rapaz de centro, mas nós temos a Áurea Carolina em segundo lugar, então assim, nós temos avançado. Acredito que esse avanço não tem como barrar não, por mais que nós tenhamos um presidente que se posiciona contrário às políticas públicas para a população LGBT, para indígenas, para negros e negras e para mulheres, eu acho que a soberania está em nossa Constituição, “Todo poder emana do povo”, então não importa o que o presidente fala, o que importa é o que o povo fala.

O povo está crescendo e vai ocupar as ruas, conseguiu barrar esse anseio do Bolsonaro de privatizar o SUS, fizemos um “tuitaço” lá e ele voltou atrás. Acredito que nós vamos conseguir. Eleita, vou fazer do meu mandato um mandato popular, e é isso. Não quer? Então vamos chamar o povo para a rua, chamar o povo para ocupar as câmaras, chamar o povo para fazer barulho e é isso, fazer do mandato um mandato popular. Pressionando os vereadores e o prefeito a aprovar pautas a partir dos anseios populares.

Viviane Freitas, cientista política e pesquisadora de pautas raciais e de gênero nas eleições. Arquivo pessoal / Tati Motta

“A democracia e a sociedade só têm a ganhar com a ampliação dos grupos ainda considerados sub representados”

A cientista política Viviane Freitas fala sobre como as desigualdades de gênero, sexualidade, raça, classe e tantos outros marcadores sociais têm se tornado mais perceptíveis entre a população

Jornalista e doutora em ciência política, Viviane Freitas estuda sobre pautas relacionadas a gênero, mídia, questões raciais e política. É autora de diversos livros e pesquisadora da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e do Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça da UFMG (Margem).

Viviane vem discutindo e estudando sobre questões raciais e de gênero nas eleições, além da inserção de mulheres na política e das candidaturas de mulheres negras em tempos de pandemia, ressaltando os vários aspectos e transformações que a diversidade, os movimentos sociais e a participação do público através das redes sociais causam no cenário político.

Nas eleições que aconteceram este ano, percebemos que houve um aumento significativo no número de eleitos que não condizem com o padrão encontrado na política (homens brancos). Em Belo Horizonte, inclusive, a candidata eleita com mais votos foi Duda Salabert – mulher transsexual e lésbica. Quais são os fatores, na sua percepção, que colaboraram para essa mudança?

Acredito que o sucesso de mais candidaturas de mulheres, pessoas negras e LGBTQI+, que rompem com a hegemonia de homens brancos, de classe média e alta, seja um reflexo de mobilizações que já vêm ocorrendo há alguns anos, tanto nas ruas quanto nas redes sociais. Estamos vivendo um momento em que as plataformas digitais possibilitam uma capilaridade muito grande de debates, uma ampliação de discussões que ainda estavam no âmbito da academia ou dos movimentos sociais formalmente constituídos sobre direitos, equidade e cidadania.

Assim, falar sobre desigualdades de gênero, sexualidade, raça, classe e tantos outros marcadores sociais tem se tornado mais acessível à população – mesmo que, em alguns casos, a partir de argumentos pouco aprofundados. Popularizar tais discussões ajuda a mudar a mentalidade, favorecendo a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, e de responsabilidade de todos nós. A conscientização de que vários direitos conquistados há anos estão fortemente ameaçados e de que é necessário haver uma pressão pública constantemente (seja por manifestações e/ou por representantes eleitos) é outro fator que ajuda a explicar os resultados das eleições municipais para a vereança em 2020.

Para você, quais as consequências que a atual polarização do país traz, no que diz respeito à representatividade eleitoral?

A polarização política vivenciada na eleição de 2018 teve como marcas a mobilização do #EleNão, a chegada de representantes de alas tanto progressistas quanto conservadoras às casas legislativas estaduais e federais, além da eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República. Percebo as eleições de 2020 ainda como um reflexo do pleito anterior, com várias disputas políticas em jogo. Por exemplo, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, o aumento de quatro para 11 vereadoras é expressivo em número e a respeito da agenda política. Para a legislatura que começa em 2021, teremos cinco vereadoras da ala progressita/esquerda e seis da linha conservadora/direita, em meio a um total de 41 cadeiras. Isso mostra que haverá disputas e que o trabalho de verdade começa daqui para frente.

Qual o impacto da construção e execução de políticas públicas na diversidade eleitoral?

A inserção de grupos sub-representados na arena político-institucional é de extrema importância para a construção e execução de políticas públicas. No entanto, não podemos desconsiderar que nem sempre o/a parlamentar está alinhada/o com as temáticas de interesse daquele grupo específico. Em outras palavras, não é porque há mais mulheres e negros na Câmara Municipal que teremos mais facilidade de aprovar projetos que tratem dos direitos das mulheres (como ampliação de creches e prevenção à violência doméstica) ou dos negros (políticas de ações afirmativas e de combate ao racismo, por exemplo). Significa, sim, que estes temas serão pautados com bem mais frequência do que anteriormente, uma vez que há mais pessoas que trazem esses assuntos como bandeiras, e que também haverá muitos embates e disputas.

Qual a sua perspectiva sobre a representatividade entre figuras eleitorais para um futuro próximo?

Espero que os caminhos que estão sendo abertos nos últimos anos possam incentivar mais pessoas a participar da política institucional e, principalmente, que a população rompa com o entendimento que deslegitima mulheres, pessoas negras e LGBTQI+ de estarem nesses espaços. A democracia e a sociedade só têm a ganhar com a ampliação dos grupos ainda considerados sub-representados. O assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, fez florescer diversas sementes por todo o país, com a eleição de várias mulheres negras para as Assembleias Legislativas já naquele ano. O resultado das eleições de 2020 segue a mesma perspectiva: em resposta a tentativas (por vezes, brutais) de silenciamento, várias outras vozes se levantam na luta por direitos.

Leia mais sobre mulheres na política.

Reportagem desenvolvida por Ana Beatriz Tavares, Arthur Bacelar, Bárbara Fidelis, Brisa Paolinelli, Flávia Assis, Gus D’Avila, Isadora Pimenta, Letícia Avelar e Pedro Onofri para a disciplina de Apuração, Redação e Entrevista, no semestre 2020/2.
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