Ana já perdeu a conta de quantas vezes ouviu frases como “mas isso todo mundo sente” ou “você está exagerando”. Da escola ao trabalho, das relações familiares às amorosas, parece que ela sempre precisa traduzir o próprio modo de sentir, pensar e reagir para ser compreendida. O mundo, constantemente, exige dela uma explicação clara, convincente e racional para tudo aquilo que, em seu corpo, já é evidente e incontestável. E assim, pela enésima vez, ela se pergunta: quantas provas são necessárias para que alguém seja levado a sério?
É importante dizer que Ana não existe. Ela é uma personagem fictícia criada a partir de muitos relatos reais, costurada com fragmentos de vivências ouvidas, lidas e sentidas ao longo do convívio da autora com pessoas neurodivergentes. Embora seja criação literária, sua história é comum demais para ter sido inventada do nada. Entre os inúmeros relatos que a inspiram, estão os de pessoas diagnosticadas com autismo nível 1, que frequentemente são desacreditadas por parecerem “funcionais demais” para serem autistas. No entanto, como explica a médica Raquel Del Monde, pesquisadora com foco em neurodivergência sob uma perspectiva crítica e anticapacitista, validar não significa necessariamente entender racionalmente. Validar, na verdade, é aceitar que a experiência do outro é legítima, mesmo quando ela não se parece em nada com a sua própria.
A ausência dessa validação, segundo Raquel, é uma constante na vida de quem se desvia da norma. Ela explica que temos uma dificuldade humana em aceitar o que é diferente da nossa referência pessoal. Por isso, a tendência costuma ser invalidar o outro, seja por não saber como agir, seja por considerar que a diferença percebida é apenas um exagero. No caso de pessoas neurodivergentes, esse padrão de julgamento se acentua de maneira ainda mais intensa. Mesmo quando há acesso à informação, ela geralmente é filtrada por estereótipos e imagens rasas. Isso se manifesta, por exemplo, na cobrança por um diagnóstico formal que comprove algo que já está sendo vivenciado, como se ele fosse o único caminho para reconhecer um sofrimento ou uma necessidade real. Mas, ainda que o diagnóstico esteja em mãos, não é raro que surjam comparações desconcertantes, do tipo: “Você tem certeza? Porque eu conheço um autista que é bem diferente de você”.
Essa questão de parecer funcional demais é o que mais me pega. Eu não sou uma pessoa que precisa de muito suporte, mas eu ainda preciso. E quando eu não ajo como uma pessoa neurotípica, as pessoas agem como se você tivesse fazendo algo errado, de propósito, e nem sempre é,” relata Júlia, 22 anos.
Essa incredulidade, como aponta Raquel, tem relação direta com o que ela chama de “padrão de leitura neurotípico da realidade”. Trata-se da expectativa social de que todos funcionem conforme um modelo dominante de comunicação, afeto, produtividade e comportamento. Quando esse padrão não é atendido, a reação mais comum é o estranhamento, que logo dá lugar à invalidação. Em vez de perguntar “o que você precisa?”, o mais recorrente é ouvir “mas por que você é assim?”, como se a diferença precisasse o tempo todo ser justificada, traduzida e explicada para ganhar algum valor. Essa exigência constante, segundo a psicóloga, acaba produzindo um ciclo de desgaste profundo, especialmente para autistas que recorrem ao masking, isto é, ao esforço contínuo de camuflar características autísticas para conseguir se adaptar a ambientes sociais.
O masking, embora muitas vezes passe despercebido, é extremamente exaustivo. Ele consiste em forçar comportamentos considerados mais aceitáveis, como manter contato visual, sorrir em situações desconfortáveis, suprimir reações sensoriais ou imitar maneiras de interagir socialmente. Essa prática pode fazer com que a pessoa passe despercebida como neurodivergente, mas o custo disso é um enorme desgaste mental e emocional. “É como viver interpretando um papel o tempo todo. E, quando finalmente se revela que há um diagnóstico por trás daquele esforço, a reação das pessoas geralmente é de espanto, como se a performance anterior invalidasse quem você é de fato”, explica Raquel.
Quando a ficção toca a realidade
Na série Heartbreak High, há uma cena emblemática que ilustra bem essa dinâmica. Nela, a personagem Quinni, que é autista, conta para Sasha, uma personagem neurotípica, sobre seu diagnóstico. A reação de Sasha é dizer que Quinni não parece autista, já que conhece outras pessoas diagnosticadas que não se comportam como ela. Em resposta, Quinni tenta explicar o conceito de masking. O momento, embora desconfortável, é profundamente realista. Ao não reconhecer o esforço envolvido em parecer “adequada”, Sasha acaba reforçando justamente aquilo que Raquel descreve: a ideia de que só é válida a neurodivergência que se encaixa em um imaginário coletivo muito limitado. Curiosamente, a atriz que interpreta Quinni, Chloe Hayden, também é autista, o que confere ainda mais peso e autenticidade à cena.
O problema, como aponta Raquel Monde, é que essa validação negada não desaparece, ela se acumula. Crianças que crescem ouvindo que estão “dificultando”, adolescentes que se sentem “errados” por não corresponderem às expectativas e adultos que, em muitos casos, não se permitem ser como são. “Isso impacta diretamente a autoestima, a confiança e a saúde mental. A pessoa começa a duvidar de si mesma, sente que precisa pedir desculpas por existir de um jeito que não agrada, e isso enfraquece sua autonomia”, afirma a psicóloga.
Portanto, mais do que um desejo de compreensão, a busca por validação representa uma tentativa urgente de sobreviver em ambientes que, com frequência, são hostis a tudo aquilo que foge da norma. Explicar o próprio funcionamento deixa de ser um gesto espontâneo e passa a ser uma estratégia de autopreservação, uma forma de evitar o afastamento, a exclusão e o julgamento. No entanto, explicar não é o mesmo que ser escutado. E escutar, nesse caso, não significa apenas ouvir as palavras, mas aceitar que existem formas múltiplas e legítimas de perceber, sentir e reagir ao mundo. Nenhuma delas é menos real simplesmente por não se parecer com a sua.
Sinto que tenho que explicar que não sou exatamente burra”, desabafa Rayssa, 19 anos, “quando eu lerdo com coisas ridículas que envolvem a memória de trabalho”.
Ainda que a autovalidação seja uma ferramenta fundamental de resistência, Raquel ressalta que ela não deve ser romantizada nem vista como uma solução isolada. “É essencial que a pessoa neurodivergente saiba que seu modo de ser é legítimo. Mas isso não substitui a importância de ambientes externos que acolham, reconheçam e se adaptem. A responsabilidade não pode continuar recaindo só sobre quem já precisa se explicar o tempo todo.”
Diante disso, a sociedade precisa se mover. A escuta que é exigida de quem é diferente também precisa ser oferecida de forma genuína. Validar alguém não exige ter vivido a mesma experiência, mas sim estar disposto a reconhecê-la como verdadeira. Talvez esse seja o maior desafio coletivo: admitir que o mundo não gira em torno da nossa própria referência, e que ele se torna muito mais justo quando deixa de exigir justificativas para o que simplesmente é.
Eu só fui entender que eu fazia isso depois do laudo. Depois de realmente parar para analisar”, conclui Gabriel, 28 anos, sobre a necessidade de se adaptar a diferentes ambientes. “A importância do laudo e depois do laudo estudar realmente a respeito foi de conseguir entender realmente como navegar”.
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