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O quadrinho independente como forma de resistência e inspiração

Em outubro de 1985, pouco tempo depois do fim da Ditadura Militar, chegou às bancas brasileiras a revista Chiclete com Banana, uma publicação colaborativa com obras de vários quadrinistas do país. Lembrada principalmente por conta do trio de autores e amigos Laerte, Glauco e Angeli, a revista foi um sucesso até seu fim em novembro de 1990, rendendo até uma edição especial em formato antologia nos anos 2000. Carregada de acidez, sarcasmo e críticas político-sociais, a Chiclete com Banana se tornou uma referência para o humor brasileiro e inspirou diversos artistas, principalmente na cena de quadrinhos underground do país.

Não vamos encher seu saco narrando as desventuras do desenhista nacional contra um bando de patos afeminados e não assumidos, pois você não comprou esta revista –ou seria um gibi?– para ouvir lamúrias, e nem vamos derrubar o governo da Cisjordânia, se é que lá tem governo. Queremos com esse gibi –ou seria revista?– apenas beliscar a bunda do ser humano pra ver se a besta acorda.

Angeli (Chiclete com Banana nº1)

Revistas como a Graffiti 76% lançada em 1995, a Prego, em 2007, Tarja Preta, em 2004, e Quase, em 2002, são algumas das publicações independentes que se destacaram nas últimas décadas. Elas alcançaram diferentes gerações de leitores a partir de diferentes lugares, explorando suas próprias características, mas com o mesmo tom contestador e provocativo que a Chiclete com Banana, que deixou um legado.

Imagens retiradas do site Submundo HQ

A Zica

Editada e publicada em Belo Horizonte desde 2010, A Zica é uma antologia criada a fim de destacar artistas da cena de arte urbana que trabalhavam com “stickers, pixo, tipografia e ilustração da cidade”, mas, depois de um tempo, expandiram os horizontes e começaram a incluir “quadrinhos, literatura, poesia e fotografia” também. Assim como a Chiclete com Banana, Quase e Prego, que serviram de referência para sua criação, A Zica tem um estilo provocador e opera como um retrato de seu tempo.

Luiz Navarro é um dos criadores d’A Zica e compõe o atual trio de editores, ao lado de Batista e João Perdigão. Ele conta, que antes da criação d’A Zica, fazia stickers e lambes de rua quando passou a conhecer outras pessoas que também produziam arte urbana em Belo Horizonte e começaram a se organizar coletivamente. “A gente fez uma exposição dos trabalhos dessa galera numa galeria que existia na época. Estava todo mundo lá, batendo papo, quando surgiu a ideia de fazer um catálogo da exposição. E já que todo mundo ali gostava muito de fanzine e curtia essa estética, pensamos em fazer nesse formato, mas a ideia original se transformou”, conta Luiz.

A Zica começou a tomar a forma de antologia quando a ideia original foi se desenvolvendo. Eles não queriam que a revista reunisse apenas o trabalho dessa turma, mas que tivesse uma temática para que artistas enviassem trabalhos especificamente para aquele fanzine. A primeira edição da revista, chamada de A Zica #0, teve como temas “Morte, Macumba e Classe Média” e contou com a participação de outros artistas de fora do circuito de arte urbana, em mais uma mudança da ideia original.

Imagens retiradas do site d’A Zica

Novas editoras e antologias

Esse formato de publicação em antologia, com chamadas para envio de trabalhos a partir de um tema específico, tornou-se fácil de encontrar nas lojas de quadrinhos e nas editoras independentes, virando um importante meio para divulgação de artistas com pouca visibilidade ou que não possuem estrutura e/ou recursos para suas próprias publicações.

Pé de Cabra, por exemplo, é uma editora independente de Curitiba que foi criada a partir de uma antologia de mesmo nome lançada pela primeira vez em 2018, encabeçada pelo artista Carlos Panhoca. Ele conta que, na época em que pensou a revista, algumas antologias não estavam mais sendo lançadas, como a própria A Zica, que estava em hiato, e a Prego, já que o editor Alex Vieira saiu do país. Não só ele, mas outros artistas e editoras do circuito independente também estavam lamentando a falta dessas revistas. Como já conhecia essas pessoas que trabalhavam com formatos de publicação semelhantes, Panhoca decidiu começar sua própria antologia. A repercussão da primeira edição fez com que artistas procurassem Panhoca com a intenção de publicar suas próprias histórias e, a partir disso, a editora surgiu.

Outro nome importante na cena é a Escória Comix de São Paulo, “uma editora de quadrinhos independentes feita para aniquilar a raça humana”, como descreve o ilustrador Lobo Ramirez, responsável pela criação da editora em 2016. Nessa época, Ramirez já fazia zines e, com olhar de autor, percebia que: “se dentro da cena de quadrinhos independentes tinham muitos trabalhos interessantes sem visibilidade, no nicho de gibis podres a situação era pior”. Pensando nisso, ele criou o selo Escória Comix na tentativa de juntar artistas e dar visibilidade a eles. Influenciado pela revista Pé de Cabra, Lobo Ramirez lançou sua própria antologia, chamada El Perro Feo, que anunciou sua última edição em 2023.

Nos relatos, é comum ver que a criação das editoras e revistas passa por um sentimento afetuoso de manter a cena independente viva e com cada vez mais produções. Tanto Lobo Ramirez quanto Carlos Panhoca já enviaram trabalhos para as antologias um do outro, além de participarem juntos de feiras de quadrinhos pelo Brasil e indicarem novos artistas para novas publicações. Apesar de, tecnicamente, serem concorrentes dentro de um mesmo mercado, ambos assumem que o foco não está em lucros exorbitantes, mas na valorização do quadrinho brasileiro e na resistência da cena independente.

O mercado underground, de fato, não garante a subsistência de quem atua nele. Carlos Panhoca tem outra ocupação e não vive da Pé de Cabra, e diz que seu objetivo sempre foi fazer da revista um produto barato. “A ideia é cobrir  o preço de custo. A quinta edição foi a primeira em que eu consegui remunerar todo mundo. Ao invés de pagar os artistas com revista, eu consegui dar pouquinho de dinheiro”, revelou.

Além disso, ele também comentou que o fator remuneração é algo que ainda incomoda. “Com as revistas que são de autor, os artistas sempre tiram 1/3 do valor da capa, que já é um valor que eu acho baixo, mas a maior parte dos editores trabalha com margens menores. A editora não me sustenta e ela não sustenta os artistas, mas ela paga uma conta de luz, de internet e está ajudando essa galera. Talvez, com uma diversidade maior de publicadores no Brasil, a gente consiga várias micro rendas para os artistas poderem se sustentar um pouco melhor”, disse Panhoca.

Como exemplo ele citou o caso do quadrinista Victor Bello, que publicou Sinuca Paranoide pela Pé de Cabra, O Alpinista e Úlcera Vortex pela Escória Comix e Basquetito All-Stars pela editora Mau Gosto Comics. A diversificação de publicações e editoras somam várias possibilidades de remuneração para o artista.

Diversidade na cena

Para além da variedade de editoras, outra pauta importante para Panhoca e Lobo é a diversidade de artistas e de público. Segundo eles, abrir espaço para novos artistas está alinhado com a possibilidade de se ter uma maior representatividade nos quadrinhos brasileiros.

Lobo Ramirez comenta que sua intenção era que o primeiro trabalho lançado pela Escória Comix fosse de uma mulher, já que percebia um “clube do Bolinha” no cenário de quadrinhos e como isso afastava o público feminino que gostava da cena underground. Apesar de não ter conseguido realizar sua intenção, ele ainda tenta diversificar os artistas que publicam pela editora. “Eu tenho tentado chamar mais e mais mulheres, e tentado sair um pouco do eixo sul e sudeste. Vejo que tem uma galera no nordeste e no centro que produz quadrinhos e eles não chegam aqui do mesmo jeito. Muita gente olha para o quadrinho brasileiro e fala só de quadrinho de São Paulo, por exemplo”.
Além disso, Lobo Ramirez nota uma discrepância entre o público consumidor. Mesmo vendendo para vários lugares do Brasil, o estado de São Paulo ainda é o maior consumidor. Ele também destaca a diferença entre os seguidores da página da editora no Instagram, que cerca de 30% são de mulheres. Mas, ainda que ache pouco, ressalta que entre os consumidores mais jovens o público feminino é bem relevante.

Outro ponto curioso diz respeito ao estilo de comportamento do consumidor. Quando começou a editora, ele conta que achava que as pessoas do movimento underground, principalmente do movimento punk e hardcore do qual fazia parte, iam ser os principais compradores. Mas ele se surpreendeu ao ver que pessoas de fora desse circuito consumiam até mais e  passou a entender que interessados na cultura underground ainda tinham certo preconceito com o quadrinho brasileiro, enquanto pessoas que não tinham contato com essa cena ficavam mais curiosas com os trabalhos independentes.

Lobo também revelou de maneira bem humorada que, por experiência própria, passou a não classificar os consumidores pelo seu estilo. “Em feiras eu via uns caras cheios de tatuagem e camiseta de banda olharem para a banca com quadrinhos como o Porta do Inferno e falar: “ó, mas não tem Batman?”. E depois vinha uma mina de cosplay, toda fofinha, e ela comprava os quadrinhos mais podres. Eu aprendi a não julgar pelo tipo da pessoa”, contou.

Lobo Ramirez e Carlos Panhoca respectivamente

Temas e discursos

O posicionamento político-social das editoras e dos artistas não precisa ser explícito e direto para percebermos que a produção e circulação dos quadrinhos independentes está relacionada a uma forma de resistência cultural. As revistas e editoras citadas neste texto possuem mão de obra reduzida ou dependem de uma única pessoa para fazer todo processo até o lançamento do produto.

Sobre sua experiência como editor d A Zica, Luiz Navarro comentou que a revista possuía um fator de resistência por circular fora dos espaços tradicionais de mídia, mas que não era uma característica dela se afirmar como uma revista de esquerda. Ele ainda disse que, embora não houvesse essa afirmação, as escolhas dos temas e dos trabalhos publicados revelavam o aspecto editorial da revista.

Durante a produção d’A Zica #6, lançada em 2021, Luiz conta que o produto final foi consequência do olhar dos artistas sobre as questões políticas que o país enfrentava. “Nem recebemos trabalhos com visão conservadora e reacionária por conta do circuito em que A Zica circula. A gente tem ali um recorte histórico daquele momento. Quem pegar para ler daqui vinte anos vai entender que aquilo ali é uma representação do que as pessoas do nosso lado estavam pensando”, disse.

Sob outra perspectiva, Lobo Ramirez revela que desistiu de continuar a antologia El Perro Feo pela Escória Comix por se tratar de um processo complicado que é realizado somente por ele. Desde a abertura das chamadas, a curadoria dos materiais e todo processo de edição e lançamento são feitos em paralelo com suas outras ocupações e, por mais que ele conte com opiniões e a ajuda de terceiros, é algo que por agora ele não pretende continuar.

Todavia, Lobo destaca o valor das analogias para o quadrinho brasileiro e para a cena independente como um espaço de captação de novos artistas com uma visão alinhada à de Luiz Navarro. “É uma parada que eu acho muito importante para incentivar uma galera a começar a produzir. Muita gente despretensiosamente publica o primeiro quadrinho ali e depois de pegar aquilo na mão, começa a pensar ‘acho que eu gostei de fazer isso’. E além de incentivar pessoas novas a entrarem nesse meio, também é um baita catálogo, um recorte do que está rolando”, disse.

Influências e inspirações

Manny Von Monstro – pseudônimo – é natural do Rio de Janeiro e usa seu perfil no Instagram como galeria para exteriorizar suas perspectivas, sentimentos e referências culturais através dos desenhos. Ele já chegou a publicar uma história curta na antologia El Perro Feo da Escória Comix e disse que pretende lançar uma obra longa por alguma editora independente.

Manny, que tem como referências Angeli, Laerte e outros artistas “fundamentais” como Pedro Vinicio, Robert Crumb e Basil Wolverton, lançou seu primeiro fanzine no final do ano de 2022, com histórias do “Gosmo”, personagem principal de grande parte das suas publicações: “Gosto de fazer uma mistura doida que converse com o máximo de gente possível, expressando através de desenho e texto algo que sentimos e na maioria das vezes não conseguimos expressar”.

Nos trabalhos de Manny é possível perceber referências que vão desde filmes trash dos anos 1980 e punk rock até literatura russa e cultura skateboard. Por meio dessas referências, ele expõe sua visão política e cultural em um conteúdo reflexivo, introspectivo, anti-fascista e bem-humorado.

Algumas produções que podem ser encontradas no Instagram de Manny Von Monstro

Dona Dora – pseudônimo de Isadora Alves – cresceu no Distrito Federal onde cursou licenciatura em Artes Visuais pela Universidade de Brasília (UNB) e trabalha na área pedagógica. A multiartista já fez exposições em galerias, participa de projetos audiovisuais e conta que, antes de se consolidar no desenho, pintura e ilustração, já produzia quadrinhos no Ensino Médio. Na adolescência teve contato com revistas mais alternativas como Tarja Preta, Chiclete com Banana, Tank Girl e MAD, além de artistas como Marcatti e Jamie Hewlett. Com essas influências começou a produzir suas próprias histórias durante a escola e, numa época em que a discussão sobre quadrinhos na academia era ainda mais branda, conseguiu entrar na universidade apresentando suas obras.

Apesar de estar há dez anos fazendo quadrinhos e já ter publicado materiais nas antologias Pé de Cabra, El Perro Feo e A Zica, ela conta que foi durante a pandemia que começou a bola de neve na sua carreira dentro da cena. “Eu fazia parte de um grupo online de modelo vivo e já tinha o projeto “A Casa do Diabo” no Instagram, então eu tive a ideia de pedir pra galera mandar nudes e eu fazer ilustrações como forma de estudo, que era o que eu fazia no grupo de modelo vivo. Daí eu imprimia os desenhos, e se a pessoa quisesse ela comprava o zine com as ilustrações. Isso acabou ganhando uma projeção dentro do meu nicho”, contou Dona Dora.

A partir desse projeto e da participação de feiras, o trabalho de Dora foi tendo cada vez mais visibilidade, recebendo a atenção – e afeto, nas palavras dela – do já conhecido Rafa Campos Rocha, que começou a orientar e ajudá-la na organização das histórias da Casa do Diabo, resultando na publicação da HQ pela editora Pé de Cabra em 2023.

Dora ainda conta que, apesar do seu trabalho abordar erotismo, ele não é pornográfico. “O meu trabalho não é do erótico explícito. “Ele está mais relacionado a uma parada meio psicológica, de envolver a pessoa naquela narrativa que está rolando ali para que elas sintam o tesão de alguma maneira por causa de coisas que ela vai lembrar da vida dela, que não tenham necessariamente a ver com o sexo”, afirmou.

Ela completa falando que suas inspirações para A Casa do Diabo têm uma relação pessoal: “A menina da roupa de borracha das histórias tem a ver comigo também porque eu tenho uma roupa de borracha, tenho uma máscara. E eu curto essa ideia de que qualquer pessoa pode ser a menina da roupa de borracha. A ideia está na roupa e não na mina. Também tem uma brincadeira do profano e do sagrado, essa questão do corpo, que é o que me chama atenção para caramba. Não é à toa que a revista é a “A Casa do Diabo”, já que ele tem várias formas de você entender o personagem, então é um jeito de eu explorar o meu diabo”, disse a artista.

HQ ‘A Casa do Diabo’ de Dona Dora

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