Colab

Pré e pós-VAR: desafios da arbitragem no Brasil

Comissão de Arbitragem em preparação para árbitros assistentes de vídeo. (Foto: Fabio Souza/CBF)

Por ser um esporte que move milhões de pessoas no mundo todo e mexe com a paixão dos torcedores, o futebol sempre esteve rodeado de polêmicas e discussões. Erros históricos de arbitragem já foram diretamente responsáveis por decidir campeonatos importantes na era “pré-VAR”. Possivelmente no erro de arbitragem mais memorável da história do futebol, o camisa 10 da Seleção Argentina, Diego Armando Maradona, marcou, com a mão esquerda, o primeiro de seus dois gols na vitória por 2 a 1 contra a Inglaterra em 1986. Em entrevista após o jogo, o craque entrou pra história ao falar sobre o lance: “Um pouco com a cabeça de Maradona e um pouco com a mão de Deus.” 

A bola que claramente ultrapassou a linha, mas o juiz não viu e o jogo continuou normalmente. (Foto: André Durão)

Outros lances polêmicos entraram para a história e motivaram o início da discussão sobre implementar uma tecnologia que tomaria decisões rápidas e acabaria com os frequentes erros de arbitragem que dominavam o futebol nos últimos anos. A solada de Nigel de Jong em Xabi Alonso na Copa de 2010 e a “mão invisível” de Thierry Henry que levou a França para a Copa foram alguns desses lances. No futebol brasileiro, um exemplo ocorreu em um clássico entre Flamengo e Vasco pela Taça Guanabara de 2014, quando a arbitragem não validou o gol de falta marcado pelo vascaíno Douglas. Na ocasião, a bola bateu no travessão, quicou 33 centímetros dentro do gol e saiu, mas nem o juiz, nem os seus auxiliares viram que a bola havia entrado, portanto, o jogo seguiu e terminou em 2 a 1 para o Flamengo.

O Árbitro de Vídeo como conhecemos hoje só seria implementado anos depois. Em 2016, sob a tutela de Gianni Infantini, a FIFA iniciaria os testes em uma partida nos Estados Unidos. No Brasil o VAR foi usado pela primeira vez em 2017, mas só seria implementado em competições oficiais no ano seguinte. A Conmebol seguiu a mesma agenda, e implementou a tecnologia a partir das quartas de final da Libertadores e da Sul-Americana, em 2018. 

A chegada do VAR

Motivada por erros claros na Copa do Mundo de 2010 e na Eurocopa em 2012, a FIFA aprovou em julho de 2012 a implementação da Goal Line Technology. Ela marcaria sempre que a bola ultrapassasse a linha do gol, acabando de vez com o tipo de erro da Taça Guanabara 2014. A primeira utilização oficial da tecnologia do VAR no futebol ocorreu no dia 12 de agosto de 2016, nos Estados Unidos. Na ocasião, o jogo entre Orlando City II e New York Red Bulls II teve dois lances revisados em uma televisão improvisada, segurada na linha de fundo do campo por um auxiliar da arbitragem. O teste foi feito em uma partida da terceira divisão, com pouca divulgação e até mesmo repercussão.

No Brasil, o VAR foi usado pela primeira vez no jogo entre Salgueiro e Sport, válido pela  final do Campeonato Pernambucano de 2017. Na ida, o VAR teve um papel importante ao ajudar na marcação correta de um pênalti a favor do Salgueiro, mas gerou polêmica anulando um gol do Salgueiro no jogo de volta. Apesar do incidente, o VAR utilizado na final do Campeonato Pernambucano foi considerado positivo pela Federação Pernambucana de Futebol (FPF) e pela CBF.

Em competições nacionais, a CBF implementou o VAR a partir das quartas de final da Copa do Brasil de 2018. Na final, um gol de Pedrinho, do Corinthians, acabou anulado após interferência da ferramenta. O Timão acabou com o vice-campeonato e o título foi para o Cruzeiro. No Brasileirão, o primeiro jogo com VAR aconteceu apenas na primeira rodada da edição seguinte (2019), na partida São Paulo 2 x 0 Botafogo. Desde então, todas as partidas do torneio ocorreram com a ferramenta. 

Em seu site oficial, a CBF publicou em 2019 um manual para os árbitros assistentes de vídeo, com as principais orientações da entidade para padronizar o critério utilizado nas análises. Lá, foi colocado um fluxograma que mostra como devem ser feitas as checagens: após qualquer incidente a ser revisado, inicia-se uma checagem automática do VAR. Em caso de erro claro, o árbitro de vídeo interfere e recomenda uma revisão. Caso contrário, ocorrerá apenas uma checagem silenciosa, sem interferência ou recomendação. Uma outra possibilidade é de que o árbitro suspeite que possa ter cometido um erro importante ou que algo grave tenha acontecido sem que ele tivesse percebido. Nesse caso, o próprio árbitro de campo solicita uma revisão e aguarda a conclusão do árbitro de vídeo. Na maioria dos casos, ele deve ser chamado para o monitor para interpretar o lance.

Fluxograma disponibilizado no manual da CBF para árbitros assistentes de vídeo. (Foto: Reprodução)

O objetivo do árbitro de vídeo, como descrito pela própria CBF na primeira página do capítulo 1 do manual,  não é obter 100% de acerto nas decisões, mas sim interferir o mínimo possível e deixar que o árbitro de campo comande a partida com liberdade e autonomia para interpretar os lances. O artigo 1 do manual diz que o VAR somente deve se envolver quando um erro do árbitro for grave e óbvio, e ressalta que o árbitro de vídeo não deve se envolver em pequenas infrações técnicas. O artigo 5 destaca que a tarefa dos assistentes não é informar ao árbitro qual decisão ele deve tomar, mas sim fornecer informações claras e objetivas, para auxiliá-lo na decisão sobre se um incidente deve ou não ser revisado e, possivelmente, mudado.

As polêmicas continuam

O site Meu Vasco publicou um levantamento que mostra que, entre os primeiros anos de VAR no Brasil (2018-2021) e os últimos (2023-2025), no entanto, o número de paralisações reduziu muito. Das 963 que ocorreram no Brasileirão 2019, o número caiu para 642 em 2024, seguindo a orientação de fazer menos checagens desnecessárias e maior foco em lances realmente “erro claro”. O tempo médio de paralisação se manteve na mesma linha, na média de 1 minuto e 30 segundos por paralisação, com uma redução maior apenas em 2021, quando cada parada durou em média 1 minuto e 16 segundos. A porcentagem de revisões que resultam em mudanças efetivas também aumentou pouco, de 22% para 24%, o que mostra uma evolução pequena no aproveitamento do VAR.

Cabine de árbitro de vídeo em jogo do Brasileirão. (Foto: João Moretzsohn/CBF)

Ainda sobre as orientações da CBF para a utilização da tecnologia, fica claro que inicialmente a proposta era de que fosse recomendada a revisão apenas para lances de erros claros, mas que se o lance fosse interpretativo, a decisão do árbitro de campo seria soberana. Ex-árbitro FIFA e responsável pela implementação do VAR no Brasil, Manoel Serapião Filho falou sobre a ideia inicial: “A adoção do monitor criou um ‘elefante branco’ ao meu ver porque diverge do conceito de erro claro da arbitragem. O VAR passou a chamar o árbitro para rever lances em que é necessário uma interpretação, sendo que esse não é o conceito original”, afirmou, em entrevista para o Estadão.

Na mesma entrevista, o chefe da comissão de arbitragem da CBF entre 2022 e 2025, Wilson Luiz Seneme, opinou sobre a evolução da operação das cabines de vídeo. “Os avanços do VAR são muito claros e os números representam isso. Não houve uma mudança de perfil ou de regra do jogo e, sim, pelo bom entendimento do critério de correta linha de intervenção que o VAR deve exercer sobre o jogo”. Seneme foi demitido do cargo em fevereiro de 2025 e deu lugar a uma comissão comandada por ex-árbitros.

Outra melhoria que foi aplicada em 2023 buscando diminuir as polêmicas e mostrar transparência foi a de que os lances polêmicos de cada rodada passassem a ser revisados no programa “Papo de Arbitragem” por Seneme e postados, com a análise do ex-chefe da comissão, nos canais oficiais da CBF. Também são reveladas conversas entre a cabine do VAR e o árbitro de campo, para entender como se deu o diálogo na revisão desses lances. “A transparência é a chave. Quanto mais nós demonstrarmos transparência para o público em geral, maior vai ser a credibilidade que iremos obter”, foram as palavras usadas pelo ex-comandante na entrevista ao Estadão.

Problemas são comuns no Brasileirão

Mesmo que o VAR interfira alegando um erro claro ou algo que não foi visto, a decisão final será sempre do árbitro de campo. No entanto, mesmo seguindo todos esses protocolos e tentando ser transparente, a arbitragem no Brasil ainda passa por problemas e comete erros em quase todas as rodadas do Brasileirão, que são repercutidos nas mídias sociais e geram teorias sobre times que são mais beneficiados ou prejudicados.

Em sua coluna no GE, o ex-árbitro Sandro Meira Ricci criticou a arbitragem após o fim do Brasileirão de 2021, mas também responsabilizou clubes e jogadores. Ele destacou três erros gravíssimos cometidos pelos juízes na competição, e disse que a arbitragem perdeu a credibilidade. Segundo ele, “a crença de que com VAR não haveria mais gols impedidos ou gols mal anulados por impedimento caiu por terra”.

Na coluna, Sandro culpou principalmente a Comissão de Árbitros e seus departamentos. Segundo ele, a falta de critério e treinamento dos juízes prejudicou o entendimento de regras básicas e gerou polêmicas, como a diferença nos critérios de mão na bola e bola na mão. “Até mesmo as linhas de impedimento, que deveriam representar uma certeza, ficaram sob suspeita”, disse o ex-árbitro. Ainda de acordo com ele, os clubes também têm sua parcela de culpa: “Muitas reclamações sem sentido, só para fazer fumaça e dar satisfação aos seus torcedores, ajudaram muito a tumultuar um ambiente já instável e confuso. Procuram a CBF sempre para reclamar, atuando na consequência do problema que é o erro do árbitro, mas nunca para resolver a causa, que é a falta de profissionalização”. 

Os problemas notados em 2021 ainda podem ser observados no cenário nacional em 2025. Na Série A do Brasileirão, o Grêmio tem protagonizado lances polêmicos, tanto a favor quanto contra. Após um pênalti mal marcado para o time gaúcho no jogo contra o Bahia, em junho, torcedores gremistas admitiram que seu time foi beneficiado, e alguns alegaram que a pressão externa fez com que o pênalti fosse dado para o Grêmio. Alberto Guerra, presidente do clube gaúcho, vinha dando declarações fortes contra a arbitragem que, segundo ele, vinha prejudicando seu time de forma sistemática, rodada após rodada, pressionando a comissão. É a segunda vez que um dirigente do Grêmio assume essa postura de bater de frente com a arbitragem.

Na primeira, em 2021, Denis Abrahão foi à coletiva para “dar satisfação à torcida”, pressionou jornalistas, discordou das linhas de impedimento, pediu isonomia e cobrou o chefe de arbitragem. Em sua entrevista, exaltado, ainda disse que “o VAR só chama contra o Grêmio”. Denis ameaçou a comissão de arbitragem e acusou gravemente: “se eu falar o que eu sei, muita gente vai cair”.

Dênis Abrahão em coletiva na Arena do Grêmio. (Foto: Lucas Uebel/Grêmio)

Essa postura conspiracionista é o que, como foi dito por Sandro, tumultua o ambiente e atrapalha a evolução da arbitragem no Brasil. Mestre em comunicação pela UFMG e estudioso da tecnologia no futebol, Eduardo Lopes falou à nossa reportagem sobre essa pressão dos dirigentes: “Atrapalha o futebol brasileiro. É consenso no meio do futebol que a arbitragem é um problema, que os árbitros devem ser melhor treinados e que deve haver mudanças estruturais na arbitragem como um todo mas, ano passado, o Ednaldo foi eleito de forma unânime. Se todas as pessoas do meio do futebol concordam que é preciso que haja uma reestruturação, por que o presidente da CBF foi reeleito por unanimidade?”, questionou.

Ainda nessa conversa ele disse que, antes da tecnologia, a qualificação da mão de obra é a principal melhoria que o futebol brasileiro pode ter. Se a cada hora um clube se diz prejudicado enquanto outro é supostamente beneficiado, para Eduardo, o problema vai além disso. O “roubo” na verdade reflete a falta de profissionalização da arbitragem, o que não apenas passa por uma mudança de postura dos dirigentes, mas depende exclusivamente dela: “As tecnologias vão ajudar muito na melhora da arbitragem, mas antes ela precisa ser profissionalizada e essas são as pessoas responsáveis por isso. É necessário que as torcidas, clubes, dirigentes e federações pressionem a CBF em prol dessa profissionalização. A mudança não passa pela mudança de comportamento, mas, sim, depende exclusivamente dela”.

Em matéria publicada no Jornal da USP, o jornalista Bruno Bedo sai em defesa da arbitragem no Brasil, e diz que o VAR cumpre bem o papel para o qual foi criado. Em estudo recente, o jornalista analisou as quatro temporadas antes e as quatro temporadas depois da implementação do Árbitro de Vídeo. Nele, concluiu que o número de cartões, pênaltis, faltas ou até mesmo gols não mudou muito, o que desmonta um certo imaginário de que o jogo teria ficado mais rigoroso, com mais punições ou mais pênaltis. O estudo mostra que houve, no entanto, mudanças claras e bem consistentes, principalmente no que diz respeito à redução do número de impedimentos marcados em um jogo. Isso porque o VAR permite revisar lances muito ajustados, que antes dependiam exclusivamente do olhar do bandeirinha.

O estudo ainda revela que houve um aumento de 2 minutos e meio no tempo de jogo, mas não especifica se esse aumento ocorre apenas devido ao tempo usado nas revisões, ou se há um acréscimo no tempo de bola rolando. No encerramento do artigo, Bruno concorda que o debate continua, mas diz que é necessário trazer esses dados para qualificar a discussão. Na opinião do autor, o VAR vem seguindo orientações e cumprindo bem o papel para o qual foi criado, que é corrigir erros claros sem alterar muito as outras dinâmicas do jogo, como podemos observar nos materiais publicados pela CBF que foram apresentados anteriormente. 

Ainda sobre as mudanças que a tecnologia trouxe para o futebol. Eduardo Quintella, coordenador de análise de desempenho do Vasco da Gama, explica que a forma de se preparar os jogadores para uma partida mudou muito, principalmente nas questões de simulação e em lances violentos. Nos anos pré-VAR, a arbitragem sofria para identificar e punir lances em que os jogadores se jogavam para pedir faltas, pênaltis e expulsões para o adversário. Dependendo da distância que estivesse ou se houvesse alguém bloqueando a visão, poderia ser difícil para o árbitro diferenciar uma falta de uma simulação, e decisões erradas já mudaram o desfecho da partida e o destino dos times no campeonato.

No Brasileirão 2005, o jogo entre Corinthians e Internacional poderia decidir o Campeonato, e aos 28 minutos do 2º tempo, enquanto o jogo estava empatado, o lateral Tinga, do Inter, sofreu um pênalti claro, mas o árbitro achou que ele tinha se jogado e deu cartão amarelo. O lance foi decisivo para que o Corinthians se consagrasse campeão naquele ano. O contrário também já aconteceu, como na Copa do Mundo de 2014, quando o camisa 9 da Seleção Brasileira Fred se jogou dentro da área e conseguiu um pênalti para o Brasil contra a Croácia.

Quanto aos lances violentos falados por Eduardo Quintella, é possível citar como exemplo a história que Ronaldo Fenômeno contou ao Charla Podcast: enquanto atuava pelo Cruzeiro, o atacante foi jogar uma partida contra a Caldense, e antes do jogo havia dado uma entrevista dizendo que faria três gols. Acostumado com ameaças, o camisa 9 contou no podcast que o zagueiro da Caldense foi gentil e até sorriu ao cumprimentá-lo, mas que logo no começo do jogo, tomou um soco na boca totalmente fora da jogada. Ronaldo disse que saiu chorando após tomar mais dois socos ainda no primeiro tempo. O juiz da partida não havia visto nada, coisa que aconteceria de forma totalmente diferente com as tecnologias disponíveis hoje.

Leia mais:
Aposta em Ancelotti esquenta discussão sobre estrangeiros no futebol brasileiro
Fenômeno SAF de gestão de clubes chega ao Brasil

Sair da versão mobile