Depois que big techs como o Google se posicionaram contra a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, ou Projeto de Lei (PL) 2630/2020 e iniciaram campanha contra a medida, teve início um alvoroço no cenário político brasileiro. Em artigo, o diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google Brasil, Marcelo Lacerda, escreveu: “o PL acaba protegendo quem produz desinformação, resultando na criação de mais desinformação”. Além das big techs, grupos contrários e favoráveis entraram em conflito no Congresso Nacional e nas redes sociais na disputa de narrativas. O embate tornou-se tão enérgico que nem mesmo o nome do projeto foi consenso entre as partes. Defensores costumam chamá-lo de “PL das Fake News”, argumentando a favor do combate à desinformação e ao conteúdo sensível, enquanto opositores o batizam como “PL da Censura”, encampando a bandeira da liberdade de expressão. Anteriormente, em 2020, o texto, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), foi avalizado no Senado Federal, faltando apenas o endosso da Câmara dos Deputados.
A demora na retomada da matéria pela outra casa legislativa indica a controvérsia do projeto. O PL prevê normas, mecanismos de transparência e diretrizes de uso para provedores de serviços na internet com pelo menos dez milhões de usuários mensais no Brasil. O dispositivo atraiu bastante atenção das big techs — grandes empresas de tecnologia com poderio financeiro e com posse de dados dos usuários.
Em demonstração de força, as poderosas empresas de tecnologia causaram grande polêmica ao manifestarem preocupação de que o projeto, em caso de aprovação, tenha efeitos contrários em relação ao que é prometido. A reação foi mais forte, principalmente, após o dia 25 de abril, quando a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência permitindo maior celeridade da tramitação do texto. O estopim ocorreu quando o Google fixou conteúdo contrário ao PL na página inicial — a mais acessada da plataforma, a qual rendeu um inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por suposta campanha de desinformação.
Marcada a votação para a semana seguinte, não houve garantia de aprovação, e o PL foi retirado de pauta, sendo a discussão adiada para data ainda indefinida.
Política reage
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em entrevista ao canal de televisão GloboNews, classificou a pressão exercida pelas big techs como “horrível, desumana e mentirosa”. Integrantes do governo federal e da base governista no Congresso Nacional, favoráveis à medida, também se pronunciaram com indignação sobre o fato, entre eles o ministro da Justiça, Flávio Dino, que anunciou, via Twitter, o encaminhamento do Google à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) “à vista da possibilidade de configuração de práticas abusivas das empresas”.
Em entrevista exclusiva ao Colab, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto de lei das fake news, acusa as empresas de não aceitarem nenhum tipo de regulação visando a manutenção da lucratividade. “Querem continuar lucrando com a propagação de extremismos e discurso de ódio na internet. (…) Esse modelo de negócio funciona atualmente”, argumenta.
“Que [as big techs] leiam o texto. Se o fizerem, garanto, não encontrarão nenhum ponto que sustente essa narrativa falaciosa” –
Deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP)
Silva afirma que as empresas poderiam participar do debate democrático, opinar, criticar e até veicular anúncios com suas posições, mas jamais poderiam ter manejado algoritmos e até ferido os próprios termos de uso para divulgar mentiras sobre a proposta.
A lei
Em manifestação de contrariedade ao texto tramitado na Câmara dos Deputados, além do Google, outras empresas afetadas pela lei publicaram notas destacando pontos do projeto que consideram sensíveis. Enquanto organizações como a Meta, publicamente, optaram por tom ameno, o Telegram, por exemplo, escolheu abordagem mais agressiva com envio de mensagens aos usuários afirmando que a “democracia está sob ataque no Brasil”, sendo obrigada a retirar o conteúdo do ar e a publicar retratação após ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
No atendimento ao pedido da Procuradoria Geral da República (PGR), acionada por Arthur Lira, além dos diretores do Google, o STF abriu inquérito para apurar a conduta dos dirigentes do Telegram.
Entre os opositores do projeto, destaca-se a crítica à remuneração aos conteúdos jornalísticos. O Google destaca que a lei não é clara sobre o que são “conteúdos jornalísticos”, podendo acarretar em eventual financiamento a sites produtores de notícias falsas, e que a medida favorece grandes grupos de mídia que conseguiriam melhores acordos com as plataformas em detrimento dos veículos menores.
A presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), Alessandra Mello, discorda e reforça que o projeto de lei cita quais conteúdos não podem ser patrocinados. Sobre a possibilidade das big techs limitarem o conteúdo jornalístico nas plataformas digitais, minimiza e relembra que isso ocorreu na Austrália, mas houve recuo e se adequaram . “Isso é via de mão dupla, ela [a big tech] se beneficia e os meios de comunicação também.”
Outra polêmica se refere à criação de uma entidade autônoma fiscalizadora. A ideia, bastante refratária na Câmara dos Deputados, foi retirada do texto, mas ainda é previsto que haja alguma agência fiscalizadora.
“A Anatel tem capacidade para se tornar a autoridade regulatória da futura lei”, defende o advogado na área do direito da comunicação e do direito regulatório Ericson Scorsim, que não vê riscos à liberdade de expressão com a criação de um instrumento de fiscalização e monitoramento.
Ainda segundo ele, o texto manifesta demais aspectos relevantes, entre eles a obrigatoriedade dos provedores terem representação legal por pessoa jurídica no Brasil, a responsabilidade dos provedores pelos conteúdos de terceiros na hipótese da distribuição ter sido impulsionada por pagamento, a previsão da autorregulamentação pelas plataformas digitais, a extensão de imunidade parlamentar às redes sociais, a equiparação das plataformas digitais com os meios de comunicação social para fins de apuração de infrações em casos de inelegibilidade por abuso de poder político e de poder de comunicação, e atribuição ao Comitê Gestor da Internet (CG1.br) de funções para pesquisas e diretrizes para elaboração de Códigos de Conduta para os provedores, estudos para fundo de financiamento de educação digital, promoção de debates sobre formas de combate à desinformação, diretrizes para a autorregulação e relatório anual de atividades.
No Brasil, já existem duas leis em vigor quanto ao funcionamento da internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet, e estas não são suficientes para penalizar a questão da desinformação. Segundo o Gerente de Projetos do Conselho Diretor e Assessor da Presidência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Jeferson Barbosa, a agência visa dar parâmetros para o tratamento de dados pessoais, sendo ela que coleta e armazena o uso desses dados. Jeferson explica que a diferença para o PL 2630 é que este trata sobre a regulação responsiva das plataformas, objetivando trazer mais responsabilidade e mais transparência. O gerente de projetos também ressalta preocupação quanto à coleta dos dados: “o que nos preocupa é a forma com que isso vai ser conduzido, os conflitos de competência que podem acontecer e a coleta excessiva de informações.”
O ambiente perfeito
Casos de crimes de ódio na internet, sendo eles de violência psicológica ou física, tornaram-se cada vez mais comuns nos últimos anos. As redes sociais são o ambiente propício para proliferação de agressores, tanto para planejar e executar ataques. A pesquisadora em comunicação Magali Cunha, que faz parte de um grupo criado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para estudar e propor políticas para o enfrentamento do ódio e do extremismo, cita como exemplo desse comportamento a maneira como os grupos religiosos da extrema-direita agem nas redes sociais.
“Esses grupos usam a imagem da família tradicional e impõem medo e pânico em relação às mulheres, as feministas, aos grupos LGBT que buscam seus direitos, dizendo que esses grupos estão atuando para destruir as famílias e impor uma ditadura feminista ou ‘gayzista’”
Magali Cunha
Membros da oposição ao PL 2630 deram início a campanhas acusando a proposta de ter um viés de censura religiosa. O deputado federal cassado, Deltan Dallagnol, fez uma publicação no twitter, em abril, afirmando que o projeto de lei iria promover o banimento de versículos bíblicos nas redes sociais. Questionada sobre a possibilidade de restrições desse tipo com a aprovação da lei, Magali Cunha afirma que essa ideia é falsa e se enquadra dentro dos métodos de proliferação de medo da extrema-direita. Além disso, a pesquisadora ressalta o verdadeiro compromisso da lei, o da transparência e responsabilidade na maneira com que os conteúdos são filtrados e divulgados nas plataformas.
A banalização do absurdo
Alessandra Mello acredita que uma das principais missões do jornalismo atualmente é o combate às notícias falsas. A presidente associa a precarização do trabalho do jornalista ao aumento da circulação de desinformações. Casos como o da “mamadeira de piroca”, fake news veiculada durante as eleições de 2018, e os diversos episódios de violência contra jornalistas durante o governo Bolsonaro são exemplos desses fenômenos, de acordo com a jornalista.
“As fakes news para que se propaguem precisam que o jornalismo profissional seja desacreditado”
Alessandra Mello
A presidente do SJPMG vê a liberdade de expressão como um bem valioso, mas não absoluto, afirmando que ela não pode ser utilizada como “escudo para propagar violências”. Alessandra afirma que o PL 2630 é um projeto que vai além de restringir a circulação de notícias falsas. Ela acredita que, caso a medida seja aprovada, a justiça brasileira terá maior controle das grandes empresas de tecnologia.
Na visão dela, a necessidade de um controle sobre as big techs é essencial e que o projeto reafirma as regras que devem ser seguidas pelos que trabalham com informação e conteúdo jornalístico. “Informação, além de ser um negócio que gera dinheiro, emprego e dividendo, é poder, então a gente precisa fomentar essa indústria, que é muito importante para a saúde da democracia”, afirma a representante sindical.
Em carta, a coalizão Liberdade com Responsabilidade, entidade que congrega 42 entidades nacionais e estaduais de comunicação do país, manifesta apoio ao PL 2630 e afirma: “Assim, diferentemente do propagado por gigantes digitais, o projeto não acabará com a publicidade digital. Pelo contrário, aumentará a transparência sobre anúncios e impulsionamentos, que muitas vezes financiam a desinformação e discursos de ódio”.
Dinheiro e poder
Durante a pandemia de Covid-19, os brasileiros ficaram mais conectados. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2021, divulgada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), entre o final de 2020 e o início de 2021, 81% da população brasileira foi usuária de internet, representando um aumento de sete pontos percentuais em relação ao período pré-pandemia, com 74% em 2019.
Com o aumento de cidadãos que acessam essa ferramenta, depreende-se que as big techs têm oferecido serviços para um número maior de pessoas. As principais empresas do setor de tecnologia, não à toa, de acordo com dados da Bloomberg, empresa global de informações financeiras e notícias, obtiveram crescimento de receita superior a um trilhão de reais durante o auge do período de calamidade pública.
Passada a crise, o recente levantamento da consultoria britânica Brand Finance, divulgado no Fórum Econômico Mundial, ocorrido durante o último mês de janeiro em Davos, na Suíça, revelou as marcas mais valiosas do mundo em 2023. Mesmo em um recente cenário de crise pós-pandemia do setor da tecnologia o qual tem produzido demissões em massa e, consequentemente, perda de valor das empresas, observa-se a permanência do predomínio de marcas desse setor, como Amazon, Google, TikTok, Microsoft e Apple, nas dez primeiras colocações do ranking.
O advogado Ericson Scorsim distingue os modelos de negócio das diferentes big techs, mas percebe semelhanças no mecanismo de custeio das atividades. “[O processo] da coleta, [do] processamento e [da] comercialização de dados é o principal meio de financiamento”. O especialista alerta ainda sobre a insuficiência do debate atual sobre privacidade e segurança dos dados e a transparência na gestão dos algoritmos.
A vida privada de milhões de pessoas é monitorada via plataformas digitais.
Ericson Scorsin, advogado
Conteúdo produzido por Gabriela de Araújo Sousa, João Antônio Cunha, João Pedro Costa Silva, João Victor Gambogi, Lucas Luckeroth e Maria Cecília Almeida Rosa na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard e do estagiário docente Marcus Túlio.
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