Desde 9 de janeiro de 1864, quando foi realizada a primeira partida profissional de futebol da história com regras, o esporte lida com o racismo. Os últimos dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram 10.291 casos de injúria racial registrados no país no ano de 2020. Ou seja, média maior a uma ocorrência a cada uma hora.
No meio esportivo, assim como para os demais, não há rosto para o agressor ou para o agredido. Torcedores, jogadores, dirigentes e árbitros, em diferentes pretextos, são alvos e cometem racismo. Em entrevista exclusiva ao Colab, o mestre em História Social e pesquisador sênior do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, Marcel Tonini, julgou que a barreira para uma possível evolução gradativa desse processo é a falta de impunidade após cometer o ato.
Apesar das grandes conquistas por justiça em relação ao preconceito racial na história do futebol, ainda há injúrias semanais ocorrendo no esporte. Na entrevista concedida ao Colab por videoconferência, Marcel Tonini defende que é preciso pensar em várias frentes de ação para que se tenha mais vitórias nesse campo:
Tem essa frente de ação da punição severa, da tolerância zero com relação ao racismo. Aconteceu racismo, tem que identificar o torcedor. A questão não é banir. Se a gente banir o torcedor, nem sempre isso vai resolver. É muito mais educativo, do meu ponto de vista: “Ele está obrigado socialmente a participar de um programa de educação, a atuar em coletivos em ONGs que lidam com essa questão. Se ele não se apresentar uma vez por semana nesse lugar, ele vai preso”. Alguma coisa que realmente faça com que a pessoa seja reeducada, e não simplesmente exclua ela do futebol, exclua ela da sociedade.
Marcel Tonini
Confira o vídeo da entrevista com o pesquisador Marcelo Tonini na íntegra:
Abaixo, você confere a entrevista editada para otimizar a compreensão e leitura:
Para começar, vamos falar sobre os casos de racismo na Copa Libertadores nas últimas semanas. O quanto isso é uma demonstração de que ainda é necessário atravessar muitas barreiras para existir uma conscientização geral sobre o quão errado e criminoso é cometer o ato de racismo no esporte?
Ainda resta muito para gente conseguir estar em um lugar mais civilizado, digamos assim. Muito em parte por conta das próprias organizações do futebol e, no caso especial da Conmebol, que trata esta questão como algo menor. Não existe punição. Os próprios clubes também demoram a agir e, muitas vezes, agem para evitar algum tipo de punição, e não porque consideram esse tipo de atitude completamente errada, imoral.
A gente ainda está muito longe do ambiente que seria considerado ideal, justamente em que isso é entendido por todas as pessoas que fazem parte deste universo como algo inapropriado, que ofende outras pessoas. Isso também nos leva a pensar que não adianta a gente cobrar uma atitude sem procurar entender que sociedade é essa. A gente, às vezes, tem um olhar para a questão, mas os países vizinhos tem um outro olhar, então, essa compreensão cultural, social, é muito importante.
Em entrevista, Roger Machado (técnico do Grêmio) afirmou que discursos do Presidente Jair Bolsonaro dão certa autorização para o racismo. Como esses discursos de ódio, no geral, podem inflamar e colaborar para que existam ainda mais atos preconceituosos no futebol?
Quando a maior autoridade do país banaliza ou não leva a sério algum tipo de questão, seja racismo, xenofobia, seja relacionado a povos indígenas, pessoas com deficiência, ela acaba realmente autorizando outras pessoas a entenderem da mesma forma. A gente sabe que a pessoa que está num cargo desse acaba sendo exemplo para outras pessoas, mesmo quando se trata desse Presidente, infelizmente, e isso acaba realmente autorizando.
As redes sociais acabam aproximando as pessoas nesse sentido, estar a todo momento falando. A pessoa vai lá e coloca “sobre o assunto tal, eu penso isso”, ou está dando entrevista, fala sobre isso. Tem organizações que lutam desde de que se fundaram, nas mais variadas questões, e o Presidente acaba interferindo não só no modo de operar dessas entidades, mas, também, ele joga contra a causa que essas entidades tanto lutam. Então, é um trabalho muito mais que dobrado nesse sentido para que a gente tenha uma sociedade mais humana, que considere o outro um ser igual.
Na última temporada, o treinador Roger Machado, junto do Marcão, eram os únicos técnicos negros na Série A. É notável que existe uma carência de técnicos e capitães negros, símbolos de liderança nos times no Brasil e no exterior. Por que isso acontece e como pode ser solucionado?
Isso é um debate longo também. É difícil ser resolvido assim, em poucas palavras. Basicamente, a gente vem de uma sociedade que passou pela escravidão por 388 anos. Mudar esse imaginário social, cultural, não é fácil. A gente é de um país que “não aceita” que pessoas negras ocupem cargos de comando, isso desde a época lá atrás, que se trabalhava com trabalho manual.
Esses espaços de atuação, essa história, essa dinâmica cultural, isso acaba influenciando para que negros não tenham oportunidade de mostrar o seu trabalho em qualquer área que seja de gestão, de coordenação de equipes. No futebol, isso ficou muito nítido porque, até pouco tempo, até hoje, ainda, eles não têm espaço para além do jogador de futebol. Você vê negros no futebol como roupeiros, massagistas, jogadores, auxiliares, mas, infelizmente, eles não quebram essa barreira de atuação, não por falta de qualidade, de competência, mas por falta de oportunidade.
As oportunidades que surgem são muito pontuais, em momentos ruins, quando o clube está passando por uma crise, demitiu um treinador, “aí a gente chama o Marcão (treinador) de novo”. Que nem agora, recentemente, ele quebrou um galho pro time dele. Fica ali, atuando por alguns jogos, até melhora a equipe. Em muitos casos foi assim, com Andrade, Jayme de Almeida, Cristóvão Borges, Lula Pereira e tantos outros, mas na hora da oportunidade chamam um treinador branco para ocupar aquele lugar.
Pensando no racismo estrutural, não só a imprensa, mas também os próprios jogadores que sofriam preconceito acabam não denunciando os casos e normalizam o ato. Talvez, um evento que marcou uma quebra dessa normalização foi o caso do Desábato com o Grafite em 2005, em uma partida pela Libertadores. O quanto você acha que foi um processo gradativo ter essas denúncias? Ou se teve um evento chave que fez com que tivessem mais denúncias, como se fosse um incentivo para que outros jogadores, técnicos, torcedores, denunciassem?
Eu entendo que não existe nenhum evento que seja tão importante assim a ponto de as pessoas tomarem consciência por ele, infelizmente. Essa consciência é coletiva, uma consciência que demora tempo. Por isso que, antes, os casos aconteciam e as pessoas envolvidas pouco falavam e, hoje, a gente tem uma reação diferente.
Quando você fala do caso do Grafite e Desábato, é um caso de 2005, faz 17 anos, é um tempo grande. A sociedade mudou muito nesse período em termos de conscientização ou, melhor dizendo, a questão não é nem de conscientização, a questão é represália, esse é o ponto. O Grafite tinha consciência de que o que ele sofreu foi racismo. Talvez, individualmente, a vontade dele era de denunciar, mesmo sem precisar de um suporte do clube, de alguma entidade, de pessoas que são autoridades, delegados, mas a questão é o medo de que aquele caso possa transformar a própria carreira no sentido negativo, no sentido que não o oportunize em outros clubes, em negócios. Isso acaba dificultando.
Se a gente olhar e lembrar, o Colin Kaepernick (jogador de futebol americano) sofreu todas as consequências. Acabou a carreira dele, caiu no ostracismo. Em uma sociedade que, digamos, lidava melhor com essa questão do que o Brasil, por uma série de questões de tradição e tudo mais, como o movimento Black Lives Matter, que é um movimento que, salvo engano, surgiu em 2013, e que, em 2020, devido ao contexto da pandemia, acabou mobilizando grupos enormes de pessoas em todo o mundo a lutar pelo antirracismo, no combate ao racismo em qualquer lugar, em qualquer esporte. Talvez tenha ajudado a fazer com que as pessoas negras falem: “Eu acho que eu posso falar. Eu acho que eu não vou sofrer tantas represálias assim.
Como os casos de racismo podem ser tratados com punições mais severas? Quando você acha que isso vai acontecer e se você acha que isso vai acontecer?
É difícil a gente pensar no combate ao racismo e quais seriam as melhores medidas para que a gente evitasse isso. Evidente que, geralmente, quando a gente fala disso, as pessoas lembravam que na Europa tem mais punição. Não que aqui não tenha, a questão não é essa. Lá, um clube é punido, ele toma tantos milhares de euros de punição. Aqui, no Brasil, muitas vezes nem chega a isso, não chega a uma punição pecuniária nesse sentido.
A própria FIFA pune de uma maneira muito branda. Para dar um exemplo, em 2014, aqui no Brasil, uma instituição que começou fora da FIFA e acabou entrando sob sua guarda, e atua lá dentro contra o racismo no futebol, identificou 14 casos no Brasil. O que a FIFA fez foi colocar isso em relatório. Não tiveram punições para os torcedores.
As ligas europeias lidam de uma maneira muito mais séria com a questão do que propriamente a UEFA. No caso da Premier League, ela tem uma reação muito mais forte do que a liga da Romênia, da Bulgária, da Polônia, enfim, outras ligas. Na Premier League acho que foram oito rodadas com todos os jogadores jogando com o “Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)”, “Say no to racism (Diga não ao racismo)”, fazendo um minuto de silêncio. Nossa liga aqui não fez menção a isso. Isso já é bastante, não só revelador, mas intimidador para os próprios negros que aqui atuam. Por que isso falam: “Você vê bem se vai denunciar um caso de racismo, porque você está num país em que isso é visto como normal, viu, não vai acontecer nada”.
Então, os casos acontecem e, muitas vezes, a pressão contra aquilo vem de fora para dentro, e não de dentro para fora. Mais uma vez porque quem organiza/estrutura esses campeonatos são pessoas brancas, não são pessoas negras. Não tem negros ali. Entre os presidentes brasileiros dos clubes, entre os gestores da CBF, a gente encontra um ou outro, Mauro Silva, Aline Pellegrino, que foram atletas, né. E quem não é atleta? Cadê os negros nesses lugares? Esse é o ponto né. Muito difícil.
Como você acha que os clubes podem ter ações que ajudem a reverberar a pauta do combate ao racismo por todo o ano, não ficando restritos aos dias 21 de março (Consciência Negra) e 20 de novembro (Dia Internacional Contra a Discriminação Racial)?
É um pouco disso, a pessoa, para que ela acabe movimentando uma pauta dessa ao longo de um ano, ela tem que ser realmente engajada no assunto e não acabar fazendo aquilo como uma reação a uma situação. Por exemplo, no jogo do meu clube teve uma situação: o meu jogador foi ofendido. Já na hora mobiliza o setor de comunicação do clube lança uma hashtag aí: “não ao racismo”, “somos contra”, uma nota de pesar… Isso é muito diante de uma reação a alguma coisa. A própria finalidade da ação não é realmente motivada pelo antirracismo, pelo valor que é intrínseco à instituição.
Essa consciência dos dias, de mobilizar uma série de ações ao longo de um ano, isso evidentemente que é super interessante, super válida, mas essa consciência não existe nem nas próprias escolas do Brasil. Como que a gente vai num certo sentido cobrar das instituições esportivas, no caso, para que elas tenham esse tipo de consciência? O problema não está, às vezes, lá no professor de história, geografia, que quer trabalhar a questão e não consegue mobilizar essa pauta ao longo de um ano. É porque a instituição, quem está organizando, o diretor ali fala: “Olha, isso é um assunto menor. A gente já trabalha no dia 20 de novembro e já está bom”. Entendeu?
É esse tipo de consciência, é entender que o racismo ocorre todo dia e a importância de a gente ter um dia de combate ao racismo, de combate à discriminação racial, é em virtude disso. A gente só tem o dia porque depois de muito tempo foi entendido que aquele evento foi muito importante.
As instituições, muitas vezes, acabam agindo para uma reação a algumas atitudes, seja com jogadores seus, com outros, ou porque está todo mundo falando, eu tenho que falar. O grande exemplo disso foi o Bahia, que tinha um núcleo de ações afirmativas no futebol e que acabou mobilizando uma série de causas para levar o seu torcedor. Então, num mês eles estavam falando sobre machismo, no outro sobre racismo, sobre xenofobia… Todas as instituições que lidam com tantas pessoas, como são os clubes, têm essa responsabilidade de reeducar as pessoas.
O racismo no futebol pode ser diminuído, para não falar extinto, e você acha que, nos últimos anos, temos progredido ou regredido no combate ao preconceito racial no futebol brasileiro?
Eu acho que o racismo está sendo mais enunciado do que era antigamente, por uma série de fatores. As pessoas encorajadas, de alguma maneira, têm algum apoio, seja da família, seja de pessoas próximas para denunciar o caso. Os clubes, hoje, têm uma aceitação melhor do que tinham antigamente. Então, os casos estão sendo mais denunciados do que eram antes. Isso não significa que hoje tenha mais racismo do que tinha antigamente. As pessoas não denunciavam antes porque não tinham qualquer tipo de apoio, muitas vezes não tinham nem a consciência.
Que está melhorando o combate, está melhorando, do que a gente via antigamente para o que a gente vê hoje, está melhorando. Hoje em dia é isso, com muito custo, identifica o torcedor. Existe uma pena aplicada ao torcedor, ao clube, mas quando se trata de uma pessoa um pouco mais importante, um clube maior, a situação fica mais difícil. Por exemplo, quando é um grande treinador envolvido em um caso desses, passam panos quentes em cima e ninguém fala mais no assunto.
As entidades têm que encarar com maior responsabilidade, maior seriedade. Os jogadores negros têm que ter completamente uma voz perante isso. Acho que uma ação fundamental para que essas pessoas não sofressem tantas represálias seria uma entidade falar por elas. A gente tem, aqui no Brasil, o Observatório da Discriminação Racial. Poderia ser essa entidade que fale pelos atletas, treinadores, gestores negros, seja o que for.
Quem daria as caras para defender essas pessoas negras seriam essas entidades coletivas, não as próprias pessoas. Isso tranquiliza muito essas pessoas por saberem que não vão ser eles que vão estar sendo procurados o tempo inteiro por jornalistas para falar sobre o assunto, porque isso, além de ser humilhante, traz uma carga emocional muito grande que impossibilita muitas vezes sair daquela situação.
Reportagem desenvolvida por Lucas Jannotti, Maria Clara Soares, Otávio Loureiro, Pedro Leite e Sofia Gontijo no semestre 2022/1 para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, sob a supervisão da professora Verônica Soares da Costa.