Em setembro de 2021, um caso chamou a atenção da comunidade científica brasileira: paleontólogos descobriram que o primeiro fóssil encontrado de uma importante espécie de dinossauro, o Ubirajara jubatus, foi levado ilegalmente para a Alemanha em 1995, onde está até hoje, a partir de divulgações de um museu alemão. A campanha trouxe à tona questões importantes sobre patrimônios, colonialismo, bens culturais e salvaguarda patrimonial, levantando questionamentos, inclusive, sobre o porquê de outras importantes obras brasileiras – como Abaporu, de Tarsila do Amaral, ou um dos raros mantos tupinambás do século XVII – estarem expostos no exterior.
Importância do Ubirajara jubatus
Em 1995, o Museu de História Natural de Karlsruhe, no sudoeste da Alemanha, adquiriu o fóssil do Ubirajara jubatus, originado da Bacia do Araripe, no Sul do Ceará. Agora, 26 anos depois, há uma disputa internacional a respeito de quem é legalmente dono do material: Brasil ou Alemanha. Quão importante é termos o fóssil do Ubirajara de volta no país?
Aline Ghilardi, cientista e professora de paleontologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), afirma que o Ubirajara jubatus é um fóssil de dinossauro, que apresenta a existência de penas e características muito particulares do drive sexual, que é o instinto de reprodução animal. Descobertas anteriores, com características parecidas, já haviam sido feitas pela Alemanha, mas o Bira, como é chamado, é um holótipo, ou seja, um material especial que define uma espécie nova, o que representa uma grande bandeira para o Brasil.
Histórico
Bira foi retirado do território brasileiro de forma irregular. De acordo com documentos brasileiros, o fóssil saiu do Brasil em caixas sem sinalização no ano de 1995, pelo Aeroporto Internacional de Recife, possivelmente pelas mãos do tráfico. Essa movimentação não era permitida no Brasil, mas era assegurada na Alemanha em razão de um acordo internacional não assinado.
Na década de 1970, a Unesco propôs uma convenção que previa que todo material holótipo deveria ficar em seu país de origem. O Brasil e grande parte dos países do Hemisfério Sul assinaram de prontidão. Países do Hemisfério Norte, como Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, assinaram apenas na primeira década dos anos 2000. Ou seja, enquanto o Brasil já havia assinado a convenção à época do envio do Ubirajara para a Alemanha, o país europeu ainda não estava de acordo – e, mesmo quando o fez, em 2007, não assinou todos os termos e condições.
Agora, enquanto o Brasil tem a segurança desse acordo com Unesco, a Alemanha se prende em uma lei local (2016, Kulturgutschutzgesetz) relacionada à proteção cultural, que determina que qualquer material adquirido pela Alemanha previamente a 26 de abril de 2007 não esteja sob a égide das convenções da Unesco.
Aline Ghilardi explica que o Ubirajara tem um grau de importância enorme. A Alemanha, tendo posse do holótipo e divulgando as características desse tipo de fóssil em seu acervo, tem a possibilidade de ganhar notoriedade, investimento e interesse público na visitação da peça, o que resulta em lucro para o país. Além disso, tem nas mãos um objeto de estudo valiosíssimo, que pode ajudar na formação de centenas de cientistas, o que, caso o Ubirajara nunca tivesse saído do Brasil, poderia ser uma vantagem para a nação brasileira.
Assim como comenta Aline, para um cientista brasileiro conseguir no estudo no exterior do restauro de peças como o Ubirajara jubatus, é preciso investimento em grau titânico, considerando-se a baixa remuneração de um pesquisador no Brasil atual. “Para uma cientista como eu, sair do Brasil em busca de estudos no exterior com o salário de pesquisadora, ter que arcar com custos de passagem, hospedagem e ingresso no museu, é complicado e inviável”, hipotetiza.
Aline Ghilardi sente que, como paleontóloga, o que ela pesquisa e divulga é como a representação das trombetas do Apocalipse: “É muito importante sabermos a história do mundo para sabermos os próximos passos da humanidade. É como se sentar com seu avô ou seu tio para saber os conselhos sobre o que fazer ou não, mas com centenas de milhares de ancestrais, que não são bichos tão bonitos assim, mas têm a chave do futuro”
Patrimônio, salvaguarda e proteção
Raul Lanari, historiador e professor da PUC Minas, explica que o que define patrimônio são as demandas da sociedade ou de um grupo social específico, como quilombolas e indígenas, somadas às escolhas técnicas dos profissionais que trabalham diretamente com a área. Estes devem levar em consideração valores como o valor histórico (a ligação do possível patrimônio com acontecimentos que contribuíram para formar a cultura da região) e o valor artístico (se, no caso de obras de arte, estão ligadas à ocorrência de estilos artísticos ou arquitetônicos).
O professor explica que, além do patrimônio material, há também o patrimônio imaterial, que é “composto pelas manifestações culturais não na sua materialidade, mas no imaginário e no sistema de ideias que sustenta as crenças e os modos de vida das pessoas”. No Brasil, anteriormente, só era visto como patrimônio aquilo que era chamado de “memória de pedra e cal”, isto é, os bens materiais vindos do período colonial, marcados pela influência portuguesa, como no caso das igrejas e construções barrocas.
Raul ressalta também que, muitas vezes, os termos salvaguarda e proteção são confundidos, mas que eles não são a mesma coisa: enquanto a proteção envolve a conservação e a segurança de um bem, a salvaguarda é um conceito mais amplo: “A salvaguarda é voltada para a consolidação do interesse da comunidade pelos bens culturais. Ela é voltada também para a divulgação, para que esses bens sejam conhecidos e, por isso mesmo, buscados pelas pessoas, nas políticas de turismo e nas viagens que fazem. Então a salvaguarda é mais ampla, ela envolve a proteção, mas também o desenvolvimento de formas de continuidade do bem cultural”. Em concordância com o que explica Raul, Angelina Camelo, graduada em educação artística pela Escola Guignard, afirma que, para além de as políticas públicas contribuírem para o acesso aos museus, elas contribuem para uma “construção de uma identidade cultural dos sujeitos”.
“A salvaguarda são formas de manter o patrimônio sempre vivo”
Raul Lanari – historiador
Histórico de descaso
O professor Raul Lanari explica que, entre o final dos anos 1990 e 2018, houve no Brasil um aumento de políticas em defesa dos bens culturais e de salvaguarda patrimonial. Nesse período, houve a criação da Fundação Palmares e da Lei 10.639/03, que instituiu o ensino de sobre a cultura indígena e afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Foi nesse momento que o reconhecimento de diversos patrimônios imateriais da cultura brasileira se intensificaram. “Nós tivemos uma expansão muito grande da nossa política de patrimônio, seja em recursos destinados a ela, seja no que diz respeito aos grupos sociais contemplados por essas políticas de memória”, ele explica.
O professor afirmou também que, ainda que tenha havido progresso no investimento no setor de cultura entre esses anos, com o início do Governo Bolsonaro (PL) foi retomada uma política de esquecimento que é histórica no Brasil. Raul também relaciona essa política, marcada pela negligência à cultura brasileira, aos incêndios das últimas décadas, como o do Museu Nacional, do Museu da Língua Portuguesa e da Cinemateca, ocorrido em julho de 2021. “As nossas políticas culturais e educacionais, historicamente, são voltadas para a domesticação das populações, para formá-las para uma ideia de ordem, de cumprimento dos deveres, não para a ideia de que nós somos cidadãos que temos direitos. Inclusive o direito à memória”.
Salvaguarda patrimonial em alta nas redes digitais
Nas mídias sociais, a salvaguarda patrimonial está em alta. No Twitter, um usuário chamou atenção ao comentar uma foto, fazendo menção ao British Museum. O museu é um dos maiores do mundo e que conta, inclusive, com a maior coleção de peças egípcias do mundo, ultrapassando museus do próprio Egito. No post, escrito originalmente em espanhol, o usuário diz: “Ó não, são os agentes do British Museum”, em uma foto em que dois turistas fingem esconder a Torre de Pisa em uma mochila. Em relação às coleções do British Museum, o internacionalista Ademir Resende diz que “a gente não pode simplesmente aceitar que essas culturas roubadas permaneçam em cárcere fora de casa”.
Já outro usuário expressou sua indignação a respeito de uma escavação no Peru em que foi encontrada uma múmia de pelo menos 800 anos. O tweet gerou polêmica e, nos comentários, outros usuários argumentam que aquela seria uma descoberta científica, de grande importância histórica.
Viralatismo brasileiro
Muito se discute em relação à necessidade da permanência ou não das peças importantes, principalmente quando se trata do Ubirajara jubatus, nos museus brasileiros em relação aos museus estrangeiros. Aline Ghilardi explica que o que se pode observar sobre a Alemanha em relação ao Brasil é a vinda de expedições e profissionais do meio paleontológico, retirada e transporte para o exterior de itens e dados sem se preocupar com legislação ou retorno social.
“O necessário é a quebra de um ciclo em que o ‘viralatismo’ exista. Muitas pessoas acreditam que, por dois grandes museus do país terem se perdido recentemente, todos os museus do país são precários e tudo do exterior é melhor, mas a realidade não é bem assim”, afirma a professora da UFRN. No entanto, com a tendência de manutenção de itens brasileiros no exterior, os museus brasileiros, sem grandes atrações, têm um investimento menor na infraestrutura e, por consequência, há um grande risco de acidentes.
Há cerca de três anos, um incêndio de grandes proporções destruiu o Museu Nacional, em São Cristóvão (RJ). “Eu, particularmente, sou uma das pessoas que se machucou muito com a perda do Museu Nacional”, lamenta Ghilardi. Essa tragédia, ocorrida em 2018, repercutiu no Brasil e no exterior devido à importância da instituição com um dos mais ricos acervos de antropologia e história natural da América Latina. “O fogo começou em uma sala recém reformada, por causa de um curto circuito de um ar condicionado. Um azar sem tamanho”.
A ‘síndrome de vira-lata’, que é a crença de que tudo no exterior é melhor, pode ser entendida a partir da colonialidade, estudada pela academia, como afirma Raul Lanari. A manutenção da dinâmica colonial mesmo após a colonização, nesse sentido, é refletida no Brasil de duas formas: na ideia de que deve-se reproduzir comportamentos e heranças europeias e no fato de que o brasileiro não pode desfrutar dos próprios bens, uma vez que estão no exterior - muitas vezes de forma ilícita.
“Existe esse mercado ilícito que se beneficia do valor da moeda, então esses bens culturais ganham valor de troca na medida em que eles se tornam patrimônio, eles ficam mais caros e passam a ser procurados por essas elites internacionais, como forma de mostrar um capital intelectual, para a galera mostrar que sabe das coisas. Nesse mercado paralelo, ele alimenta o saque de bens culturais nas chamadas ‘periferias do mundo’”, afirma Lanari.
Tráfico de peças paleontológicas é o terceiro maior do mundo
Em novembro de 2021, o serviço de streaming Netflix lançou o filme Alerta Vermelho, com grandes estrelas como The Rock, Gal Gadot e Ryan Reynolds. Na trama, as personagens estão envolvidas no tráfico de bens culturais egípcios: em especial, os três ovos de Cleópatra, o que possibilita a movimentação de grandes quantias de dólares. Essa situação apresentada na ficção não está muito afastada da realidade, uma vez que o tráfico de bens patrimoniais é o terceiro maior mercado ilícito internacional, atrás apenas do tráfico de drogas e do de armas, de acordo com estimativas da Unesco.
Para uma movimentação maior que a do tráfico de pessoas e de órgãos, essa prática necessita de uma fiscalização meticulosa, uma vez que, se é tão relevante, é porque há arqueólogos e famílias abastadas que bancam essa atividade. “Nos anos 50, 60, muitas imagens sumiram e não foram encontradas até hoje. Então, é preciso fiscalizar os antiquários e as famílias ricas, que são quem compra esse tipo de bem”, afirma o historiador Raul Lanari. De acordo com o professor, as compras de peças históricas são encomendadas a partir de redes subterrâneas secretas que existem desde o surgimento da política de patrimônio no Brasil. O fóssil do Ubirajara jubatus, por exemplo, é provavelmente uma dessas encomendas que atualmente está sob a posse da Alemanha.
Repatriação de patrimônios brasileiros no exterior
“Todo o início da paleontologia brasileira é marcado pelo estudo de fósseis brasileiros que estão fora do Brasil.”
Aline Ghilardi – paleontóloga
De acordo com um levantamento de Aline Ghilardi, Tito Aureliano e Marcelo Fernandes no artigo ‘Colecionadores de ossos’: a case study of geoscience communication on social media (‘’Colecionadores de ossos’: um estudo de caso de comunicação de geociência nas redes sociais’, em tradução livre) há cerca de 70 holótipos de vertebrados e plantas fora do Brasil, além de incontáveis invertebrados. Além disso, há várias coleções brasileiras no exterior: o maior acervo de publicações brasileiras, por exemplo, se encontra na Universidade de Tulane, em New Orleans, nos Estados Unidos e a biblioteca de um dos nossos maiores intelectuais do início da República, Oliveira Lima, foi doada para a Universidade Católica de Washington e ainda se encontra em território estadunidense.
A repatriação não é um cenário impossível, considerando-se hoje relações internacionais que prezam tanto pelas políticas da boa vizinhança. Recentemente, a França concordou em retornar alguns artefatos do Povo Benin, país da África Ocidental, que foram saqueados à época da invasão francesa em 1942. No entanto, o que impede o retorno de itens como o Ubirajara jubatus ao Brasil são os interesses do museu alemão.
Assim como afirma Raul, “Há um certo descrédito com a prática científica nas periferias [do mundo], o que mostra a continuidade dessa visão da Europa de que nós não somos capazes, ou seja: ainda existe uma colonialidade do saber”. O professor afirma que é por esse motivo que a diplomacia brasileira deveria se envolver mais na busca pela repatriação de bens brasileiros que estão no exterior, mas que não se pode esperar muito da diplomacia atual.
Quando questionado sobre a importância da permanência de bens patrimoniais nacionais em território brasileiro, em especial o Bira e documentos históricos, Raul Lanari foi veemente na defesa da educação científica e cultural brasileira. “É importante que os nossos profissionais tenham a sua formação integrada a um trato com esses bens de importância mundial”, afirma.
Em relação à repatriação dos bens, que é entendida como o regresso destes para o país de origem, o pesquisador defende que é muito importante para a comunidade intelectual, uma vez que permite contato direto com os objetos de estudo. “Faz com que nós, profissionais da história, biologia, antropologia, sociologia, arquitetura, possamos trabalhar nos nossos [próprios] materiais”, afirma.
Além disso, o pesquisador alega que a presença dos itens no Brasil ajuda na formação crítica da nação. “A presença dessas obras no acervo nacional torna mais possível que a gente as aborde, que a gente promova uma visitação a essas obras, e isso certamente promove o senso crítico e estético, o conhecimento da nossa cultura, a identificação dos processos que formam a nossa história”, acrescenta.
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Reportagem produzida pelas repórteres Giovanna de Souza e Helena Tomaz