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Quase mil bebês nascem sem o nome do pai por mês em MG

Foto meramente ilustrativa. Seif Eddin Khayat via Unsplash

Apenas nos sete primeiros meses de 2024, Minas Gerais soma 7.249 bebês que nasceram sem o nome do pai registrado na certidão de nascimento. Se o número for dividido pelos sete meses, indica que, a cada mês, pelo menos mil crianças nascem nessa condição. Isso significa que 5% dos recém-nascidos mineiros não tiveram direito ao reconhecimento paterno. O número já ultrapassa o do mesmo período de 2023, quando 7.230 certidões foram registradas sem o nome do genitor. No período entre 2020 e 2024, o ano de 2024, que ainda nem terminou, foi o que mais somou casos do tipo, com 5,22% pais ausentes entre janeiro e julho. Essa ausência paterna, que se repete em todo o país, levanta questões importantes sobre a masculinidade, a paternidade e as desigualdades de gênero. Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).

Para Zeca Lemos, jornalista e mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da PUC Minas, a figura do pai é vista por muitos homens como um “fetiche”, um símbolo de status e poder dentro de determinados grupos sociais. O mestrando pesquisa o conceito de masculinidade em sua dissertação. “Cumprimentar amigos chamando-os de ‘pai’ constitui um marcador de quem é ‘aliado’, com afinidades”, explica. No entanto, essa percepção idealizada da paternidade contribui para que muitos homens não levem a sério suas responsabilidades como pais.

A figura de pai pode ser vista como positiva como vocativo no campo masculino mas, quando traz encargos, os homens a veem como maçante e inoportuna” Zeca Lemos, pesquisador.

A letra de um hit do carnaval, com versos como “O pai te ama” e “Vai, rebola pro pai”, de MC Kevin o Cris, pinta um retrato do termo “pai” como sinônimo de poder e virilidade. Mas essa imagem idealizada contrasta com a realidade de muitos homens que, embora usem o termo com frequência, não assumem os deveres do paternar. Zeca Lemos reforça  que as mulheres são quem mais sofre numa sociedade patriarcal, seja do ponto de vista prático ou simbólico, ou seja, no que concerne a valores e crenças em uma relação, por exemplo.

Essa diferença entre a imagem idealizada do pai e a realidade da paternidade é resultado de um conjunto de fatores culturais e sociais. A expectativa de que os homens sejam provedores e fortes, combinada com a ideia de que a criação dos filhos é uma tarefa feminina, contribui para que muitos homens se vejam como dispensáveis no processo. “A sociedade condiciona nossas percepções de gênero, a vermos o masculino como superior ao feminino”, explica Zeca Lemos. “Devido a isso, homens pensam que não têm responsabilidade de assumir filhos que geram, pensando que esse papel deveria ser exclusivo da mulher”, completa.

Direitos negados

O registro do nome do pai e da mãe na certidão de nascimento é um direito garantido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Essas leis asseguram igualdade de direitos e deveres entre filhos biológicos e adotivos, além de protegerem direitos como a dignidade e a convivência familiar. No entanto, dados de janeiro a julho de 2024 da Arpen-Brasil revelam que, mesmo com a queda no número de nascimentos, a porcentagem de crianças sem o nome do pai registrado aumentou, sugerindo questões importantes sobre o impacto dessa realidade. No Brasil, a região Norte concentra proporcionalmente o maior número de pais ausentes, com 9% totais. Já o Nordeste tem 8%, o Centro-Oeste, 6%, o Sudeste, 6% e o Sul 5%. 

Embora seja alto o número de registros de nascimento sem a identificação do pai, esse dado tende a diminuir com o passar dos anos, já que há casos em que o genitor reconhece a paternidade posteriormente. Segundo a coordenadora do departamento Jurídico do Sindicato dos Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado de Minas Gerais (Recivil), Leticia Franco Maculan Assumpção, os pais costumam fazer o reconhecimento de diversas formas, tanto espontaneamente, quanto por meio de averbação em cartório, por indicação da mãe, por meio de uma ação de reconhecimento de paternidade e até mesmo em testamento.

Há casos em que as mulheres escolhem não incluir o nome do pai na certidão de nascimento dos filhos, e isso pode ocorrer por diversas razões, como por abandono do pai, dúvidas sobre a paternidade da criança,  empoderamento feminino, que permite às mulheres realizarem o sonho de ser mãe sem a necessidade de um parceiro, entre outros” , explica Leticia Assumpção.

Reconhecimento de paternidade 

O registro de nascimento, quando o pai for ausente ou se recusar a realizá-lo, pode ser feito somente em nome da mãe, que pode indicar o nome do suposto pai ao Cartório, que dará início ao processo de reconhecimento judicial de paternidade. Se a paternidade não for reconhecida no momento do registro, a mãe pode, a qualquer tempo, adicionar o nome do pai por meio de averbação no cartório ou iniciar uma ação de reconhecimento de paternidade se o filho for menor de 18 anos. “Para filhos maiores de 18 anos, não é necessária a autorização da mãe para buscar esse reconhecimento, esse direito”, explica Letícia Assumpção.

Em casos de  maternidade em reprodução assistida, quando há doação de material genético, não há reconhecimento de paternidade, conforme estabelecido pelo Provimento 63 da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça. Esse provimento foi incorporado ao novo Provimento 149, que faz parte do Código Nacional de Normas.

Para registrar filhos de reprodução assistida, quando o sonho da maternidade é realizado por meio da reprodução independente, a coordenadora do Recivil reforça que é obrigatório levar um documento da clínica de reprodução com firma reconhecida pelo diretor, se físico o documento, no ato de registro no cartório. Se eletrônico, pode ser assinado digitalmente, desde que seja assinatura digital avançada. Esse documento ajuda a garantir que ninguém possa reivindicar a paternidade da criança no futuro.

Pai socioafetivo

Aos 29 anos, Bianca dos Santos Araújo, moradora do Bairro Milionários, na região Oeste de Belo Horizonte, viveu a emoção de ver o reconhecimento da paternidade socioafetiva de seu padrasto, José Geraldo Araújo, em seus documentos. Ela convive com ele desde os 5 anos de idade e sua certidão de nascimento originalmente não incluía o nome do pai biológico. Bianca afirma que o procedimento foi relativamente simples, mas destaca que o custo pode ser um impeditivo e que a informação sobre o processo deveria ser mais acessível. 

Bianca dos Santos Araújo ao lado seu pai, José Geraldo Araújo Credito: Arquivo pessoal

A filiação socioafetiva é o reconhecimento jurídico da maternidade e/ou paternidade com base no afeto, sem que haja vínculo de sangue entre as pessoas, ou seja, quando um homem e/ou uma mulher cria um filho como seu, mesmo não sendo o pai ou mãe biológica da criança ou adolescente. Essa escolha não deve ser confundida com processo de adoção.

Flavia Mendes, coordenadora do departamento Jurídico do Recivil, destaca que não há diferença entre pai biológico e pai socioafetivo em termos de direitos e deveres; a única diferença é o procedimento. “O reconhecimento socioafetivo segue um processo distinto e, de acordo com a legislação, irmãos e ascendentes não podem reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva. Por exemplo, uma avó não pode reconhecer a maternidade socioafetiva de um neto. O pai ou a mãe socioafetivo precisa ser pelo menos 16 anos mais velho que o filho a ser reconhecido”, explica. 

Ela também ressalta que o pai socioafetivo deve demonstrar uma relação de afetividade com a pessoa que deseja reconhecer como filho. Essa demonstração pode ser feita através de vários meios, incluindo documentos que comprovem a relação, como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno, vínculo conjugal — casamento ou união estável — com o ascendente biológico, fotografias em eventos importantes, entre outros.

“Eu me desenvolvo e evoluo com meu filho”

Uma pesquisa em desenvolvimento pelo Instituto Papo de Homem e Natura este ano, com o apoio do Pacto Global da ONU – Rede Brasil, já revela uma realidade preocupante: metade dos meninos de 15 a 17 anos têm dúvidas sobre o amor de seus pais. O estudo “Meninos: Sonhando os Homens do Futuro”, também aponta que essa percepção é ainda mais acentuada quando se considera a questão racial. Entre adolescentes brancos, 35% questionam o amor paterno, enquanto entre meninos negros, essa taxa sobe para 49%.

Outro dado alarmante do estudo é a falta de referências masculinas positivas na vida desses jovens. Cerca de 60% dos entrevistados afirmaram que convivem com poucos ou nenhum homem que consideram um exemplo positivo de masculinidade. Isso levanta um alerta sobre a importância de promover modelos saudáveis e presentes de paternidade para a formação das próximas gerações.

Apesar deste cenário, há homens que estão reescrevendo o conceito de paternidade, colocando o afeto e a presença no centro de suas relações com  seus  filhos. Ivan Souza, de 30 anos, doutorando em Adminitração na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEAUSP) e pai de Helena, de 4 anos, é um desses homens. Ele compartilha que, em seu círculo social, a paternidade sempre foi uma pauta, e muitos de seus amigos que se tornaram pais na fase adulta enfrentaram a ausência de uma figura paterna em suas próprias vidas. “Felizmente, todos se tornaram pais excepcionais, apesar de, na maioria dos casos, não terem tido um pai presente como exemplo”, comenta.

Ivan Souza segurando sua filha Helena no colo / Crédito: Arquivo pessoal

Criado apenas por sua mãe, Ivan Souza, de 30 anos, se esforça para ser a melhor versão de si mesmo para sua filha. “Eu me tornei mais responsável e paciente. Depois que ela nasceu, comecei a entender melhor que cada pessoa tem seu próprio tempo de aprendizado e que não posso impor meus pontos de vista a qualquer custo”. No entanto, ele acredita que o patriarcado muitas vezes supervaloriza a figura do pai presente, enquanto a presença da mãe é considerada normal. “O pai presente é visto como algo extraordinário, quando, na prática, se ambos estão envolvidos na vida da criança, eles têm a mesma função e compartilham a responsabilidade”, afirma.

Marcelo La Carreta, professor universitário e pai de dois adolescentes, também vive essa realidade. Ele percebeu, ao levar seus filhos a espaços infantis, como shoppings e escolas, que muitas vezes era o único homem presente. “No Brasil, é mais fácil perceber o pai ausente. Seja porque ele acha que deve apenas trabalhar e prover, ou porque acredita que a educação dos filhos não é sua responsabilidade. Mas isso não é ajuda, é obrigação de ambos os pais, e deveria ser em igualdade de condições. Infelizmente, sabemos que, no Brasil, não é assim”. Para o professor, a paternidade é uma via de mão dupla, uma troca constante de aprendizado e afeto, além de um ato de amor. “É gratificante”, conclui.

Marcelo La Carreta acompanhado da esposa e os dois filhos. Foto: Isabela Jacoe

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