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Ocupação do solo é principal causa de mudanças climáticas em BH

Foto diúrna da avenida Tereza Cristina. Em primeiro plano há uma placa amarela onde está escrito: "Evite transitar neste local em caso de chuva forte".

Placa colocada pela prefeitura de BH, na Avenida Tereza Cristina, de alerta em casos de chuvas fortes. Foto: Wagner Lamounier/2022

O clima mudou demais. No inverno era um frio ‘de rachar’, o de hoje, nem se compara. Lembro de olhar a cidade e vê-la branquinha, a Serra quase sumia na neblina e a grama ficava coberta do que nós chamávamos de ‘geada’. Aqui tinha muita tempestade na época das festas de fim de ano. Eu era criança e minha mãe falava para eu e meus irmãos entrarmos embaixo da cama, com medo do telhado da nossa casa voar. Naquele tempo, eram pouquíssimos edifícios. Tinha muitas casas e, principalmente, árvores, que cobriam até as avenidas principais. Na minha infância já existiam enchentes. O rio Arrudas transbordava e inundava as ruas. Quando eu era jovem, a água chegou a entrar na loja em que eu trabalhava. Belo Horizonte era cheia de córregos. Lembro do Córrego do Leitão, no bairro Santo Antônio, e o do Acaba-Mundo, que vinha da Avenida Uruguai, descia a Afonso Pena e entrava no Parque Municipal. Meu pai falava: ‘Reny, vamos pescar?’ e nós íamos a pé do Bairro da Graça, onde morávamos, até o Córrego do Onça. O Onça não era o esgoto que virou hoje, a água era limpa. Depois, acompanhei as obras que sumiram com os rios. Os tratores, a propaganda do governo sobre a canalização… Foi aí que as coisas ficaram diferentes, e, depois, quando começaram a construir muitos prédios… Para mim, antes, nós tínhamos as quatro estações bem definidas durante o ano. Agora, parece que às vezes vivemos todas em um dia só.

Reny Penna, em depoimento à reportagem

O relato é do aposentado Reny Penna, 91, que vive em Belo Horizonte desde 1930, e mostra como o contexto urbano mudou ao longo dos últimos anos na cidade. No século 20, a capital mineira chegou a ser referência nacional no tratamento de doenças respiratórias, em função das condições favoráveis do clima. Porém, evidências como o aumento da temperatura e a queda da umidade relativa do ar mostram que, nas últimas décadas, a cidade foi afetada por um problema de escala global: as mudanças climáticas

Falhas no planejamento urbano

Embora o aquecimento seja um fenômeno que atinge todo o Planeta, medidas tomadas em âmbito local também contribuíram para as profundas alterações testemunhadas pelos moradores de Belo Horizonte. Wellington Lopes, doutor em Climatologia e professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisou as modificações da atmosfera belo-horizontina em sua tese de doutorado. “Fiz a reconstituição histórica e climática do município, desde os primeiros dados oficiais, que são do ano de 1910. As principais características eram as temperaturas amenas no verão e um pouco mais baixas no inverno, além de uma sazonalidade muito bem marcada entre o período seco e o período chuvoso”, conta.

As conclusões do estudo mostram que a situação atual é bem diferente: “A temperatura média anual aumentou em 1.9 graus célsius em Belo Horizonte. Pode parecer pouco, mas, para as características atmosféricas, isso é bem significativo. A umidade relativa perdeu quase 9% em termos de percentual de água vaporosa circulando na atmosfera”, afirma. Caso permaneça em queda, tal índice pode se tornar um alerta ao longo dos anos, visto que a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomenda que o nível permaneça entre 60% e 80%, para não gerar prejuízos para a saúde da população.

Para o professor, o “grande vilão” das mudanças climáticas locais não está associado ao dióxido de carbono, nem aos gases do efeito estufa. A principal causa é a mudança do uso de ocupação do solo. “Belo Horizonte foi planejada para funcionar nas proximidades da Avenida do Contorno e ter, no máximo 200 mil habitantes, limite ultrapassado já na década de 1930. Com o aumento populacional, a urbanização é inevitável. Então, houve impermeabilização do solo, canalização e retificação dos cursos d’água e supressão da vegetação. Além disso, a cobertura natural foi substituída por concreto e asfalto, que absorvem muito calor”.

De acordo com ele, o aquecimento da atmosfera local foi diretamente influenciado por isso: “Quando você retira a vegetação e canaliza os cursos d’água, você modifica a topografia e diminui a circulação de água em forma de vapor na atmosfera. E é importante ter a água circulando, porque água transporta energia. Se a temperatura está aumentando demais, ela vaporiza a água, e, nesse processo de vaporização, há consumo de calor sensível e transformação de calor latente”. Ou seja, o fato de os córregos da cidade estarem “escondidos” pelas obras de canalização também contribui para o aumento da temperatura.

Lopes ressalta que, no século 19, quando a cidade foi construída, o planejamento foi estritamente sanitarista, visto que a grande preocupação dos centros urbanos da época era impedir que vetores de doenças associadas à contaminação da água prejudicassem a população. “Isso foi um ponto positivo, mas o lado negativo é que não existia uma visão de sustentabilidade, de conforto térmico. Não havia essa preocupação”.

Relação homem x natureza

Segundo o arquiteto Rogério Palhares, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, as questões ambientais passaram a ser fatores condicionantes nas intervenções urbanísticas apenas na década de 1970. “Temos que colocar o projeto de Belo Horizonte no seu devido tempo histórico. Estamos falando de uma comissão de engenheiros, no caso do Aarão Reis, urbanista, formados em uma escola politécnica que tinha pressupostos positivistas, do domínio do homem sobre a natureza”.

O professor, que é mestre em planejamento urbano e doutor em Geografia, explica que a bacia hidrográfica da região não foi respeitada desde a concepção do plano original da cidade. “Houve uma polêmica na época, quando um dos integrantes da comissão construtora, o Saturnino de Brito, propôs um respeito maior aos cursos d’água. O próprio traçado original do Arraial do Curral Del Rey não tinha sido planejado. Ele tinha sido ocupado, mas foi desenhado geometricamente por cima disso, com inspirações que não incorporaram as características ambientais, pelo contrário”. 

Assim como Reny Penna, Palhares também compartilha suas memórias de infância em BH. “Eu era criança e o Arrudas já enchia. Eu precisava atravessar o vale do Arrudas e, às vezes, ele estava interditado porque, mesmo em trechos não canalizados, ele transbordava, já que é o principal canal dessa bacia”.

Não é de hoje que alagamentos e inundações acontecem nesse trecho do córrego. O que chamou a atenção, mais recentemente, foi quando o fenômeno ocorreu na região centro-sul de Belo Horizonte, no bairro de Lourdes, e levantou questões importantes, inclusive do ponto de vista socioeconômico: “No caso do evento do Lourdes, em 2020, é o córrego do Leitão, que é uma afluente do Arrudas e [o transbordamento] ocorreu no seu trecho intermediário, que é muito urbanizado e impermeabilizado. São canalizações antigas, de 1960, e estão subterrâneas, fora da nossa vista e controle. Podem ocorrer entupimentos, desmoronamentos… uma série de coisas pode acontecer ali embaixo e ninguém está vendo”. 

Outro fator importante apontado por Palhares, que por mais de vinte anos atuou profissionalmente com os temas de regulação urbana e ambiental, é que os canais são projetados para um tempo de retorno, para uma chuva intensa que, no passado, acontecia a cada 50 ou 100 anos. Só que essa chuva de 100 anos pode acontecer amanhã e, em tempo de agravamento das mudanças climáticas, a tendência é que ela aconteça mais vezes e de forma mais concentrada e extrema.

Em relação às ações que podem ser tomadas, no que diz respeito ao planejamento urbano, ele acredita que o primeiro passo é não separar o que é o meio ambiente natural do que é a sociedade: “Devemos falar em relações, conflitos e impactos ‘socioambientais’, ainda mais na nossa cidade, onde isso é muito claro. A qualidade ambiental passa por uma série de estruturas e serviços que podem dar a oportunidade das pessoas viverem com qualidade: saneamento, drenagem, mobilidade… Precisamos rever a nossa relação com os recursos naturais”. Segundo ele, inundações, aquecimento e outros eventos climáticos vão atingir mais intensamente aqueles que têm menos recursos para fazer frente a esses problemas: “É preciso rever esse modelo predatório de urbanização e incorporar soluções de infraestrutura inspiradas na natureza, que reproduzam ou, pelo menos, diminuam a ruptura do que seriam as relações naturais, como, por exemplo, o ciclo hidrológico”.

Chove, penetra, evapora e realimenta a atmosfera para poder chover de novo e abastecer o lençol freático. Estamos matando a galinha dos ovos de ouro. Temos que incorporar essas soluções baseadas na natureza“.

Rogério Palhares

Os rios “invisíveis” de BH

Quem caminha pela região centro-sul de Belo Horizonte pode observar intervenções artísticas que resgatam o espírito dos cursos d’água que se tornaram invisíveis para a população. Por meio de placas, que identificam onde estão os rios e córregos que foram canalizados, o projeto “Entre Rios e Ruas”, da artista visual Isabela Prado, traz um resgate histórico do território belo-horizontino.

Placa da Artista Visual Isabela Prado, identificando a localização do Córrego do Barro Preto, no bairro Santo Agostinho, em BH. Foto: Wagner Lamounier – 2022

A ideia da pesquisa que, posteriormente, gerou o projeto de intervenção artística, surgiu em 2006, quando Isabela voltou para o Brasil após passar cinco anos estudando no exterior. Natural de Belo Horizonte, ela ficou surpresa ao se deparar com as obras de canalização do Ribeirão Arrudas: “Foi um impacto muito grande naquele momento, algo que gerou em mim o sentimento muito curioso de pensar: como alguém pode optar por apagar um elemento natural da paisagem da cidade?” Isabela conta que começou a resgatar na memória afetiva várias situações em que conviveu com o córrego canalizado aberto: “Eu, como cidadã, tinha essas lembranças. Então, o ‘Entre Rios e Ruas’ faz a relação do indivíduo com o meio ambiente e o espaço urbano construído”.

Para a artista, o intuito das placas é reestabelecer uma relação da cidade com os cursos d’água. “A intenção com a identificação dos córregos é exatamente fazer com que eles sejam notados. Trazer de volta à paisagem, fazer eles serem uma percepção no cotidiano das pessoas. Tanto daquelas que já tinham consciência da existência desses rios, quanto de inúmeras outras que habitam a cidade e nem têm conhecimento da presença daqueles córregos ali embaixo”

Isabela, que também integra o Departamento de Artes Plásticas da UFMG, segue ampliando o projeto e demonstra interesse em finalizar a ação em todos os córregos. As instalações iniciais, que começaram em 2020, ficaram restritas ao perímetro da Avenida do Contorno, mas a ideia é contemplar toda a extensão de córregos da cidade. 

Os rios retomam seu curso

É uma sensação de desespero muito grande, porque lutar contra a natureza é uma coisa muito difícil, foge do seu alcance.

Camyla Tadéia, moradora de Belo Horizonte

A frase da empresária Camyla Tadéia, 35, resume o sentimento de muitas famílias que vivem em áreas vulneráveis a enchentes. Moradora da Vila Suzana, região Nordeste da capital, desde que nasceu, ela conta que já presenciou diversas enchentes do Ribeirão do Onça. “Eu moro na parte mais baixa do bairro, em frente à Avenida Cristiano Machado, que é onde meu pai trabalha. Então, o prejuízo que nós temos nas enchentes é tanto na nossa casa, quanto no serviço dele”. Segundo ela, os vizinhos que moram em outros trechos da rua, onde a água chega primeiro, são ainda mais atingidos. 

Para a moradora, é difícil descrever o turbilhão de emoções que já passou diante das enchentes. Ela guarda na memória as datas exatas do que viveu: 23 de novembro de 2010, 14 de dezembro de 2011, 3 de dezembro de 2017, 25 de janeiro de 2020 e 7 de fevereiro de 2021. “Quando aconteceu pela primeira vez, em 2010, eu não tive nem tempo para entrar em desespero, porque sou a irmã mais velha e minhas irmãs mais novas ficaram em pânico. Na época, ainda morávamos com nossos pais. Minha irmã do meio tem pavor de chuva desde criança, elas tiveram que sair da nossa casa no bote do Corpo de Bombeiros. Foi horrível”. 

Além dos bens materiais, como roupas e eletrodomésticos, ela ressalta que já perdeu vários objetos de valor sentimental: “Meus pais perderam muitas coisas nas vezes em que a água inundou nossa casa. Álbuns de fotografia, documentos… Eu perdi o brinco de ouro que minha avó me deu quando eu nasci. Às vezes, as pessoas podem achar que não faz diferença. Pode parecer simples mas, sentimentalmente, aquilo faz toda diferença, sim. Na hora, você só pensa em tentar salvar [os bens], mas a água sobe muito rápido. É muito triste ver tudo que foi construído em tantos anos ser destruído tão rápido”, lamenta.

Em relação às ações do Poder Público, Camyla afirma que pouco foi feito para ajudá-los: “Em 2010, a Defesa Civil, veio, fez um levantamento e nos passou uma indenização em dinheiro. Depois disso, nunca mais. Já aconteceu de esperarmos três dias para conseguirmos um colchão ou cobertores. Eles mandaram cesta básica, mas não era nossa necessidade naquele momento, em que muitas vezes perdemos o fogão, perdemos tudo, não tem nem como cozinhar. Não tem muito apoio, não tem nada. Nos outros anos, além de não virem ajudar a gente, não deram nenhuma satisfação”. 

De acordo com ela, não há um líder comunitário, mas os moradores da região tentam se mobilizar em grupos de Whatsapp. Há dificuldades, entretanto, para conseguir informações sobre as medidas tomadas pelo governo: “Há poucos meses eles começaram a fazer a obra de uma bacia embaixo da Estação São Gabriel, que promete reduzir as enchentes. Mas quando tentamos nos informar sobre essas obras da prefeitura, nunca conseguimos informações claras, cada órgão joga a responsabilidade para o outro”, desabafa. A reportagem tentou contato com a Defesa Civil e a Prefeitura de Belo Horizonte, mas até a publicação não obteve retorno.

A empresária reitera o desgaste emocional causado pela situação. “No geral, as pessoas que passam pelas enchentes perdem até a perspectiva de conquistar as coisas, porque ano vai, ano vem, e elas [as enchentes] sempre se repetem. A verdade é que a população está cansada de tudo isso. Cansada de perder tudo”.

Reportagem de Amanda Pena, Letícia Oliveira, Lorrane Reis e Wagner Lamounier desenvolvida na disciplina Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2022/1 sob orientação da professora Verônica Soares.

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