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O tempo descansa na cadeira de um engraxate

Otávio, engraxate há 45 anos – Raquel Faleiro

No coração de Belo Horizonte, avenida Afonso Pena, próximo à Praça Sete de Setembro, tudo e todos parecem se movimentar de maneira rápida e imperceptível. É nessa imensidão – de prédios, de lojas, de gente – que existem histórias paradas no tempo, que perduram há 45 anos. É o caso de Otávio Luiz Silvano Neto, de 63 anos, que há mais de quatro décadas atua em uma profissão aos poucos esquecida: o engraxate. 

Reza a lenda que o ofício milenar é fruto de uma demonstração de respeito, quando em 1806 um operário poliu os sapatos de Napoleão Bonaparte, que o recompensou com uma moeda. No Brasil, a profissão tem raízes na imigração italiana, que trouxe consigo a tradição de engraxar sapatos, praticada principalmente por jovens que andavam por aí com caixas de madeira contendo graxa e escovas. 

Em 2025, pouco se fala sobre os engraxates. Com a evolução nos modelos de calçados e a popularização dos tênis e sandálias, gerações mais novas, muito provavelmente nunca sentaram em uma cadeira de engraxate e tiraram 20 minutos do seu dia para deixar os sapatos mais lustrosos. É por isso que contar histórias como a de Otávio é importante, porque simbolizam a resistência e a permanência de uma profissão. 

De Napoleão a “seu” Otávio 

Natural de João Monlevade, “seu” Otávio, como é conhecido, conta que em 1971 veio com os pais e seus dez irmãos para Belo Horizonte, todos em busca de melhores oportunidades de vida. O pai era metalúrgico, a mãe, doméstica, e ele, primeiro filho do casal, conta que nunca gostou de estudar: “meu pai e minha mãe brigavam com a gente para ir para a escola mas, infelizmente, eu era muito levado e parei de estudar com 12 anos”.

Quando chegaram na capital mineira, moravam de aluguel na região do centro. “Papai alugou um barraquinho pequeno, morávamos todos juntos e misturados”, conta Otávio, com um tom de alegria e nostalgia. Anos depois, a família comprou um lote na região do Barreiro e construiu uma casa, onde ele vive até hoje com outros cinco irmãos. De acordo com ele, todos os irmãos também atuam em profissões de habilidade manual, como pedreiro e pintor, saberes que vão se tornando mais escassos no século XXI.

Sem os estudos, foi em busca de trabalho. “Comecei como camelô, vendendo carteiras, porta documento e cigarro aqui no centro”, conta Otávio. A função de engraxate veio um pouco depois, não se sabe ao certo quando, mas a convite de um amigo que tinha uma cadeira e o chamou para trabalhar com ele. Daí pra frente, Otávio aprendeu tudo sozinho e deu início a um ofício que se tornaria sua profissão e seu sustento. 

Desde então, de segunda a sexta, faça chuva ou faça sol, seu Otávio pontualmente se encontra às 8h da manhã no seu posto de trabalho, ficando até às 18h à disposição de qualquer um que precisar de polir um sapato, consertar um salto, colar uma sola ou pintar um calçado. “Essas coisas menores eu faço de tudo. Para não perder o serviço a gente tem que se virar”. Aos sábados, também não falta, e das 9h às 13h30 está presente no seu ponto, próximo ao Café Nice. 

“Tudo mudou em 79”

A profissão de engraxate nem sempre foi legalizada. Otávio relembra, com pesar, diversas vezes em que teve seus materiais apreendidos por fiscais que rondavam o centro em busca desses “trabalhadores ilegais”. Segundo o engraxate, quase todos os dias ele precisava improvisar cadeiras novas para continuar trabalhando e garantindo o seu sustento. Otávio conta que era comum os trabalhadores utilizarem caixotes de maçã de madeira para fazer as cadeiras e atender os clientes. 

 Antigamente não podia mesmo trabalhar, eles tomavam as cadeiras. Há mais de 30 anos eles faziam isso. Às vezes o policial ficava com medo da gente agredir e tinha briga. Nós tivemos confronto com fiscais da prefeitura. Quando não era apreendido, a gente saia correndo com cadeira nas costas, para fugir deles. Eles falavam que a gente sujava muito a cidade”.

A situação começou a melhorar na gestão do ex-prefeito de Belo Horizonte Maurício Campos, do extinto ARENA. “Todos nós engraxates tempos muito a agradecer ao Maurício Campos e a sua esposa, dona Selma, para nós, tudo mudou em 79”, conta Otávio. De fato, foi entre 1979 e 1982, na gestão de Maurício Campos, que se encontram os primeiros registros sobre a valorização de engraxates e a regulação de ambulantes na capital mineira. A partir da Lei Ordinária n.º 3.146/1979, foi instituído o Dia do Engraxate, celebrado em 26 de abril. No mesmo ano, a Lei n.º 3.134 trata especificamente do licenciamento de cadeiras de engraxates em logradouros públicos e da regularização das posições dos trabalhadores.

Foi em 1994, durante a gestão de Patrus Ananias (PT) que a regularização da profissão veio de maneira categórica, com a promulgação da Lei nº 6733. Ela foi responsável por regulamentar oficialmente o exercício da atividade de engraxate em logradouros públicos, definindo regras para licenciamento e uso do espaço urbano. A lei formalizou e atualizou a legalização iniciada em 1979, garantindo reconhecimento profissional e direitos básicos a uma categoria tradicional de trabalhadores informais.

Quando questionado sobre a existência de um sindicato ou grupo de representação legal, Otávio diz que os engraxates não têm. “Até tentamos criar um sindicato uma vez, mas uma pessoa esperta tentou usar disso para se promover e desistimos”. Apesar de reconhecido, o grupo não possui uma voz ativa ou articulação que lute pelos seus direitos na Câmara dos Vereadores ou na Prefeitura de Belo Horizonte. “Aqui é cada um para si e Deus para todos”.

Clientela fiel e rede de apoio

A conversa com Otávio foi interrompida por diversas pausas para cumprimentar todos que passavam por perto da cadeira de engraxate. Brincalhão, ele puxa assunto com velhos conhecidos e clientes. Também é quase um posto de informação, quando questionam a ele se “tal ônibus passa aqui?” ou “como eu chego em tal lugar?”. 

Otávio engraxando sapato de sua amiga, Katy Cris

É nítido o carinho que Otávio tem pelos clientes. A todo momento, durante a entrevista, frases como “o cliente é tudo para a gente” apareceram na conversa. Reconhece que o movimento diminuiu ao longo dos anos, mas afirma que os clientes fieis não o deixam na mão. “O pessoal tradicional não deixa de engraxar o sapato”. Esses tradicionais, trazem os filhos, os netos, os bisnetos. “Eu atendo gerações de famílias que conheço há anos”.

Na pandemia, ficou impedido de trabalhar. Além do risco de contrair o vírus, não tinha movimento e nem clientela. Mas “seu” Otávio não ficou esquecido, pelo contrário. Quem o ajudou a se manter, dando gorjetas e cestas básicas foram esses clientes fieis. “Graças aos meus clientes e meus irmãos eu não passei necessidade na pandemia, mas foram tempos difíceis”. 

Otávio também não deixa de destacar a relação com outros comerciantes da região. “Tenho muita amizade com o pessoal do Café Nice, às vezes a gente precisa das coisas e eles ajudam a gente. Quando eu era menino engraxate conheci o avô deles”. Também conta sobre a relação com o pessoal do Restaurante do Elio que, de acordo com ele, existe há 70 anos. “Todos os dias eu almoço lá, há mais de 20 anos. A gente acaba criando uma amizade”.  

Sujeito de sorte 

É evidente que, em 45 anos de profissão, Otávio coleciona histórias o suficiente para escrever um livro, mas algumas ganham destaque na memória do engraxate. “Tem clientes que eu tive o privilégio e a sorte de atender. Nunca vou esquecer o Belchior, Agnaldo Timóteo e Jair Rodrigues”. 

Otávio divide histórias que viveu com essas personalidades. “Jair Rodrigues tomava gole com a gente nesse restaurante na rua Espírito Santo. O Belchior vinha fazer show no Palácio das Artes e eu engraxava as botas dele. Ele só usava bota. O Agnaldo Timóteo tinha uma sandália azul marinho e um sapato azul marinho da cor da Mercedes dele, azul marinho”.

Para além do trabalho, Otávio faz aula de dança, assiste futebol – é torcedor do Galo –  gosta de jogar truco, sinuca, dominó e beber cachaça, que inclusive leva todo dia para o trabalho em uma garrafinha para tomar um pouquinho durante o almoço, afinal, o pai é de Ponte Nova, cidade conhecida pela produção do destilado. “Não bebo para cair, mas é para ficar mais leve”. 

A previsão de parar não existe. “Meu trabalho é tudo para mim. Enquanto eu tiver saúde eu vou continuar aqui”. Sua presença é um lembrete de que Belo Horizonte também se faz dos que resistem às mudanças do tempo e às novas tecnologias. Personalidades como o “seu” Otávio são quem tornam a cidade interessante, viva e pulsando.

“Meu trabalho é tudo para mim.”

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