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Você sabe o que é cri du chat?

Créditos: Wellington Freitas/ 35elementos

Quando Lulli nasceu, o choro foi um pouco diferente. Parecia um gatinho miando. Embora o parto tenha sido domiciliar e inesperado, a família logo percebeu que havia algo fora do convencional. Mas foi apenas aos 8 meses, quando os pais já notavam uma série de diferenças no desenvolvimento da menina em relação à irmã mais velha e lutavam para descobrir as razões, que Lulli recebeu o diagnóstico. Ela tinha uma condição genética rara: a síndrome cri du chat, também conhecida como “síndrome do miado de gato”. 

“O processo para obter um diagnóstico formal foi desafiador e uma verdadeira luta”, recorda o pai da menina, Freddy Leitão, que foi quem auxiliou a esposa no trabalho de parto. Ele notou que o choro da filha mais nova havia sido distinto do grito da mais velha ao nascer, mas daí até a certeza do quadro foi uma jornada de dúvidas e angústia.

“Ela nasceu em casa, porque não deu tempo de ir para o hospital, não deu tempo de chegar nem a doula. E aí eles não detectaram, porque o choro é muito característico, é o miado. Então, ela ia ao médico, o médico não ouvia o choro. Um belo dia, ela chorou forte, inclusive chorou antes de ser atendida”, conta a jornalista e escritora Míriam Leitão, autora de “Lulli, a gata aventureira”. Ela lembra que somente após esse dia houve o encaminhamento para a realização de exames mais específicos. 

A história de Lulli ganhou mais visibilidade pública recentemente, quando Míriam Leitão, jornalista do Grupo Globo, madrinha e tia-avó da menina, resolveu relatar num livro infantojuvenil a trajetória da sobrinha, hoje com 7 anos.

O livro nasceu do amor

O título da obra é um trocadilho perfeito com a condição da afilhada. O choro e a fala fininhos, que remetem ao de uma gatinha, e as aventuras que qualquer criança deseja vivenciar, mas que Lulli enfrenta com coragem, apesar das dificuldades. Segundo a autora, a afilhada se aventurou a ser “radical e livre”, e isso fez também dela uma menina que desafiou o próprio diagnóstico.

Jornalista Míriam Leitão e a afilhada Lulli, que inspirou personagem de novo livro infantil.
A jornalista Míriam Leitão e a afilhada Lulli, que inspirou personagem de novo livro infantil. Foto: Freddy Leitão/ PCD HUB

Segundo Míriam, o livro nasceu do amor por Lulli. Mas ele, como a literatura, de repente ficou maior do que foi projetado. “O projeto era acolher a Lulli e a história. Só que ele foi se transformando, na verdade, em uma forma de divulgar mais ainda, aproveitando a minha visibilidade”, conta a autora.

Recém-empossada na Academia Brasileira de Letras (ABL), quando no último dia 8 de agosto passou a ocupar a cadeira 7 como a primeira mulher mineira na ABL, a imortal escolheu Minas para receber o lançamento, não apenas por conta da própria trajetória, mas por ser a terra-natal de Lulli, que vive em Belo Horizonte.

Lançamento do livro “Lulli: a gata aventureira”, em Belo Horizonte. Foto: Joarle Magalhães

Outra novidade foi realizar as primeiras sessões de autógrafos nas escolas de Lulli e da irmã, Mel, na capital mineira. De acordo com Míriam, como “o livro infantil se desdobra em várias coisas”, ele faz parte do processo de empoderamento e integração da menina. “Na sala da Lulli, foi uma emoção, porque as crianças vinham dizer: ‘eu sou amiga da Lulli, eu sou amigo da Lulli’, aí um escreveu Lulli na camisa, o outro levantou um cartaz “viva Lulli”. Então, ela está sendo recebida pela sala dela, ela virou uma pessoa de referência. E ela podia ser a pessoa discriminada”, celebra a escritora.

Diagnóstico

Segundo Marina Leitão, mãe de Lulli, após a realização do exame de cariótipo, foi identificado que a menina não tinha parte do sequenciamento genético do cromossomo 5. Sem esse pedacinho, ela entrava para a lista de um em cada 50 mil bebês diagnosticados com cri du chat ao nascer. 

Marina explica que nem sempre o cariótipo detecta a perda genética, sendo necessário nesses casos a realização de um exame mais detalhado, o “Array”, que não tem a cobertura da maior parte dos planos de saúde.

“A síndrome de down é o excesso de material genético. No caso da cri du chat, perde uma perna do sequenciamento cinco. Por isso que tem aquele símbolo que ela usa até na camiseta, com o (cromossomo) cinco sem uma perna. É o símbolo do cri du chat,” esclarece Míriam.

Sintomas e consequências

Em uma das passagens do livro, Míriam conta sobre o diagnóstico e a possibilidade de que a menina pudesse não apresentar alguns sinais de desenvolvimento intelectual, cognitivo e motor.   

Conforme Sandra Dória, médica otorrinolaringologista e coautora do livro Síndrome de Cri du chat: mais amor, realidade e esperança, além do choro em miado de gato e de atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor, os principais sintomas da síndrome incluem a diminuição do tônus muscular (hipotonia), alterações na laringe que podem dificultar a amamentação, e características físicas como dedos alongados, queixo retraído e distância interocular aumentada.

A síndrome não tem cura, até porque não existiria a possibilidade genética de colocar o cromossomo que foi perdido. Mas há estratégias de tratamento, em termos de intervenções de fisioterapia, fono e terapia ocupacional, para melhorar a qualidade de vida dessas crianças. Principalmente nas duas áreas mais afetadas: sono e comportamento

Sandra Dória, otorrinolaringologista

Sandra, que também é especialista em Medicina do Sono e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, instituição onde faz pós-doutorado, conta que o interesse pela área do sono veio quando o filho mais velho, Luiz Fernando, 20 anos, conhecido nas redes como “Fefe do cri du chat”, foi diagnosticado com a síndrome, ainda bebê. O principal objetivo de suas publicações é contribuir com informações atualizadas sobre a síndrome. “Em geral, a literatura médica a respeito de cri du chat ainda é escassa e antiga. Se você for ler vai ver só tragédia, criança que nunca andou, nunca falou. Coisas muito ruins”, afirma. 

“Não dá para dizer quem vai ser aquela criança que vai conseguir ou não vai conseguir falar, vai conseguir ou não vai conseguir andar. Na maioria das vezes, as crianças conseguem andar, com um atraso importante, mas não é a maioria que consegue falar”. Mas como bem lembra a história de Miriam Leitão, “talvez pode ser não, mas talvez pode ser sim”, explica Sandra Dória.

Não tem nada engessado”

A mãe de Lulli conta que, depois do primeiro choque do diagnóstico e de imaginar todos os nãos que viriam pela frente, a família fez a opção de procurar mais informações, ajuda especializada e de jamais limitar a condição da menina. 

“Não tem nada delimitado ou engessado por causa do diagnóstico. E isso foi trazendo um pouco mais de alívio para a gente. E depois a gente foi entendendo que tem que enxergar a Lulli como ela é. Vamos aprender a conviver com isso, amenizar de alguma forma, independente do diagnóstico. E tratar o que dá para ser tratado, estimular o que dá para ser estimulado. E desde então, é esse exercício diário. Porque a parentalidade é um exercício diário”, reflete Marina.

Lulli com os pais e a madrinha Míriam (Foto: PCD HUB)

Segundo Marina, um dos desafios é agir com paciência e evitar os engessamentos dos marcos, das referências da filha mais velha, ou dos amigos e parentes. “Enfim, das comparações. Para a gente conseguir entender a Lulli, o potencial da Lulli, no que a gente pode desafiá-la e como a gente pode ajudar e confortar também.”

A mãe não nega que o diagnóstico de qualquer doença ou síndrome, especialmente rara, seja difícil, mas enxerga na diversidade uma forma de lidar melhor com tais situações. “A gente compara sim, sem querer, porque a gente foi ensinado a comparar e a gente escuta sempre: ‘ah, mas seu coleguinha…’ A gente foi criado dessa forma, a sociedade tem essa estrutura. Mas que a gente consiga entender que cada pessoa é diferente, tem uma demanda diferente. Tem todos os seus potenciais, suas habilidades, suas facilidades, mas também tem as suas dificuldades, isso é pra todo mundo.”

Desafiando o diagnóstico

Para Gabriele Rennhack, presidente da Associação Brasileira da Síndrome de Cri Du Chat (ABCDC), iniciativas como o livro “Lulli – a gata aventureira” são um respiro para as famílias de crianças com cri du chat, já “calejadas” pelo preconceito com o qual muitas vezes são tratadas.

“Eu achei o livro incrível. Falando como mãe, não como associação, o que me emociona é a forma sutil e respeitosa de explicar para as pessoas. É um jeito muito respeitoso, nada é diminuído. Porque nós ficamos calejados de sermos tratados o tempo inteiro no colégio, em outros espaços, como pais das crianças ‘café com leite’. E não, eles não são, eles têm tanta capacidade quanto todos que estão lá.” 

Mãe de Otto, um menino de 8 anos com a síndrome, Gabriele fundou a associação em 2018, após se deparar com a escassez de informações ao descobrir o diagnóstico do filho. Ela conta que, em um primeiro momento, encontrou apenas publicações defasadas.

“A gente pesquisava ‘cri du chat’ no Google e apareciam coisas que eu, pessoalmente, acho muito cruéis. O único artigo que eu achei era de 1970, com fotos de crianças sem roupa, com tarja preta nos olhos, algo muito duro. Ninguém quer imaginar o filho assim.” Além do impacto pelas imagens, os dados, hoje comprovados inverídicos, também eram desanimadores: diziam que 80% das crianças não passariam de 1 ano de idade. 

Rede de apoio

Por se tratar de uma síndrome rara, Gabriele e o marido não encontraram o apoio que esperavam no Brasil. “Os médicos com quem nós conversamos deram poucas orientações e (indicações de) artigos científicos, que era o que eu mais queria ler na época. Então entramos em contato com a associação americana. Foi o primeiro lugar em que a gente conseguiu resposta de outra família, e vimos que eles tinham muito mais conteúdo.” Para facilitar o acesso de famílias que não falam inglês, eles resolveram criar uma extensão da associação no país, “uma rede de acolhimento, apoio e informação”. 

Formada por voluntários, em sua maioria mães de crianças com a síndrome, a associação produz materiais educativos para famílias e profissionais da saúde. Outra iniciativa é uma caminhada anual em São Paulo, no dia cinco de maio (05/05), em referência ao cromossomo 5. Este ano, o evento contou com um momento especial: 

Caminhada anual da Associação Brasileira da Síndrome Cri Du Chat, maio de 2025. Foto: Wellington Freitas/ 35 elementos

Condição rara e escassez de profissionais

De acordo com a pesquisa Demografia Médica no Brasil, realizada pelo Conselho Federal de Medicina em parceria com a USP, o país possui apenas 376 geneticistas de fato atuando na área. Gabriele ressalta que, neste contexto, o trabalho de conscientização é fundamental. “São pouquíssimos médicos, como a gente vai esperar que toda essa população seja atendida? Claro que um bom pediatra ou neurologista pode olhar e pedir um teste, mas não é fácil alguém de cara dar o diagnóstico. E a principal questão é: não é acessível”. 

Além de acolher as famílias, a associação as orienta em relação aos sintomas, facilitando o diagnóstico precoce e alertando sobre procedimentos desnecessários aos quais as crianças podem ser submetidas por falta de informação. “A importância da conscientização da síndrome é essa. Com o conhecimento, qualquer um que ouça o choro de um cri du chat sabe identificar”, afirma Gabriele. Na última campanha, participaram 124 famílias de todo o país. 

Tem muitas pessoas, familiares de alguém com cri du chat, que nunca conheceram outra pessoa com a síndrome.

Gabriele Rennhack, presidente da ABCDC
Conteúdo produzido no âmbito do Grupo Bertha de Pesquisa pelas jornalistas Amanda Pena e Fernanda Sanglard, que também é coeditora do Colab. 

Esta produção está alinhada com os ODS da ONU e integra iniciativas dos projetos Fapemig APQ-5058-23 e FIP PUC Minas 2025/32550-1S.
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