Ao escolher qual roupa usar, cada um pensa na imagem que quer transmitir ao mundo com aquele look. Respeito, maturidade, sofisticação, inovação, todos querem mostrar seu verdadeiro eu através de uma peça. No trabalho, isso não é menos importante. Porém, para as mulheres, essa escolha vai muito além do simples gosto. Vou ser respeitada se usar decote? Vão comentar das minhas pernas se eu usar essa saia? Se usar gola alta, serei vista como puritana? Perguntas como estas são comuns no dia-a-dia da mulher trabalhadora e influenciam fortemente na sua vida profissional e pessoal. Para garantir o espaço da mulher no ambiente de trabalho, os estigmas sobre a vestimenta das mulheres devem ser combatidos.
Mercado de trabalho é lugar de mulher
O fim do feudalismo e a migração para o sistema capitalista significou uma mudança da posição social da mulher, que saiu do trabalho em terras comunais para o trabalho reprodutivo e doméstico, restringida apenas ao lar. A nova dinâmica trabalhista levou o homem burguês a ficar o dia todo fora de casa e separou definitivamente o ambiente público do privado. A divisão familiar que pressupõe a presença do homem no trabalho e, da mulher, em casa, além de moldar os espaços públicos, também moldou a evolução das roupas, que ficaram cada vez mais divididas entre roupa de homem e roupa de mulher.
No livro “Mulher, roupa, trabalho, como se veste a desigualdade de gênero”, as autoras Mayra Cotta e Thais Farage apontam essa distinção: “As roupas dos homens e das mulheres começaram a ficar marcadamente diferentes. Essa diferenciação acompanhava no mesmo passo a diferenciação sexual de gênero dos espaços públicos e privados”, afirmam, na obra.
Junto ao aspecto excludente característico do mercado de trabalho, a visão da mulher como objeto sexual tem um papel significativo na construção do que é visto socialmente como apropriado. Segundo a pesquisadora e coordenadora da organização Modefica, Marina Colerato, historicamente, o ativo que a mulher tem para se manter na sociedade capitalista é o sexo. Na lógica da chamada economia sexual, o único recurso que a mulher tem para vender é seu corpo e sua sexualidade, portanto, parte-se do pressuposto que ela sempre o está oferecendo. Nesse contexto, o corpo da mulher se torna território e, consequentemente, algo a ser conquistado: “Hoje, temos dificuldade, em certos ambientes, de as mulheres se vestirem de forma múltipla, porque têm medo, porque não vão ser levadas a sério, porque são hipersexualizadas”, diz a pesquisadora.
Mulheres pretas sempre trabalharam
A mulher branca foi excluída dos espaços públicos e, consequentemente, do mercado de trabalho. Já as mulheres negras sempre tiveram que trabalhar, porém, mantidas em posição de subalternidade, sujeitas à exploração profissional e às vagas com piores remunerações e condições, sem nunca se equipararem aos homens brancos. O assédio moral e sexual, a sensação de impotência e a falta de incentivo à capacitação existem porque são parte de um processo estrutural de exclusão que reafirma constantemente que ela, mulher negra, não pertence aos espaços de maior visibilidade e com boas condições de trabalho.
A resposta não é “se vestir de homem”
No imaginário da classe empresarial, a roupa de trabalho do homem sempre foi a mesma: o terno. Mudaram o tamanho, as cores, o corte, mas o dresscode se manteve o mesmo. Já para as mulheres, “o que vestir para trabalhar?” foi uma pergunta que teve várias respostas diferentes ao longo das décadas. De saias rodadas às saias longas, de aventais a blazers, a roupa feminina se reinventou diversas vezes em uma tentativa de ocupar o mesmo lugar do homem. Em seu livro, Farage e Cotta apontam como “a permanência do terno masculino no mundo do trabalho acompanha e espelha o pertencimento inquestionável do homem àquele espaço”, ou seja, não há necessidade de mudança, porque não existem novos espaços a serem conquistados pelos homens no mercado de trabalho. Para as mulheres, a situação é oposta.
Visando ocupar o mesmo lugar que os homens, é comum as mulheres escolherem roupas que imitam o terno ou vestimentas masculinas. Normalmente, opta-se por cores neutras e estampas lisas, presentes em roupas masculinas por transmitirem sobriedade e estabilidade, características atribuídas ao homem. Assim surge o terninho, peça muito difundida entre as mulheres de negócios. O terno para mulheres remete ao masculino, porém sempre incorporando detalhes ligados ao mundo feminino, como a cintura marcada e o colo aparecendo. Ao incorporar detalhes femininos em roupas masculinas, o poder do homem sobre a mulher é reforçado, apontando o limite existente entre a mulher e o homem na sociedade. “É uma negociação, de se aproximar de alguns símbolos masculinos, mas sem deixar a gente esquecer que a gente é mulher, nos colocando no nosso lugar”, diz a advogada Mayra Cotta em entrevista ao Colab.
Na luta para conseguir se impor e ser respeitada no lugar de trabalho, mulheres se sentem pressionadas a se vestirem como homens e agirem como homens, na esperança de que, assim, seu trabalho seja levado a sério e tratado com respeito e igualdade. Esse comportamento está diretamente ligado à falta de estruturas para acolher e incluir mulheres no mercado. Segundo Farage e Cotta, no livro já citado, “se não há modelos diferentes de sucesso, se não há liderança sem abuso, se não conhecemos um mercado de trabalho que se preocupa também com a economia do cuidado, acabamos concluindo que não podemos ser mulheres naquele espaço”. Essa imitação do homem como forma de combate à opressão da mulher acaba por impulsionar mulheres a adotarem comportamentos do opressor. Como explica Marina Colerato, “para se inserir nesse universo, ela (mulher) precisou, de fato, adotar a postura do dominante”. Ainda segundo a jornalista, esse comportamento constrói a expressão estética da opressão.
Assédio não é consequência de decote
Outra dificuldade enfrentada diariamente pelas mulheres no trabalho é o assédio sexual. Comentários inadequados, toques inapropriados, pedidos por favores sexuais e até abuso físico, infelizmente, fazem parte da realidade das mulheres no mercado de trabalho. Em estudo realizado em 2020 pela organização Think Eva, 47,12% das mulheres respondentes foram vítimas de assédio no trabalho, sendo elas, na sua maioria (52%), mulheres negras.
Ao escolher o que vestir, a mulher se vê vítima de processos de hipersexualização, e precisa lutar para não ser responsabilizada pela invasão em seu próprio corpo. A busca pela roupa ideal para trabalhar em um ambiente que é construído para excluir torna-se algo cansativo, e mobiliza a energia das mulheres para outras preocupações que não o próprio desempenho, metas e sonhos profissionais.
“A hierarquia no trabalho é correntemente instrumentalizada para a manutenção de práticas violentas que controlam as mulheres nesses espaços”.
Mulher, roupa, trabalho, como se veste a desigualdade de gênero
No contexto da economia sexual, a expressão da sexualidade pela mulher é responsável pelo domínio sobre ela, consequentemente levando mulheres a se sentirem culpadas pela violência que sofrem ou não denunciarem por medo de retaliação. Segundo a pesquisa da organização Think Eva, 78,4% das mulheres entrevistadas dizem não acreditar que algo será feito caso denunciem o crime e 63,8% afirmam que há um ciclo de descaso face aos assédios. Na falta de políticas institucionais efetivas, não há segurança de que a funcionária será protegida. “A gente vê muito essa romantização da coragem, da mulher que enfrenta o seu assediador, que enfrenta seu abusador, mas, na verdade, ninguém quer ser corajosa, a gente só quer viver em paz, tranquilamente” afirma Mayra Cotta.
A culpa pela violência sofrida também é frequente entre as mulheres, especialmente entre mulheres negras de baixa renda. Entre as que afirmaram sentir vergonha de terem sido vítimas de assédio, 54% são negras. A sensação de insegurança no trabalho é maior entre mulheres que recebem até dois salários mínimos. Além do sentimento de vergonha, a recorrência da violência contra a mulher leva a uma naturalização do assédio e a vítima nem sempre percebe o abuso sofrido. Entre as entrevistadas desse mesmo estudo, 10% não sabem se passaram por situações de assédio. Tal fato é explicado na fala da jornalista Marina Colerato: “Como é tão naturalizado, faz parte da realidade da mulher, você começa a considerar aquilo [o assédio] normal, dizer que é um instinto natural da mulher estar sempre disponível sexualmente e, do homem, sempre investir sexualmente”.
Quando voltamos a olhar o dress code feminino nas empresas, a visão da mulher como apenas um ser sexual é explicitada. Apesar de decotes serem vistos como inadequados, uniformes femininos costumam mostrar mais pele que os masculinos. Saias curtas são inapropriadas, mas a saia lápis, muito comum nos escritórios, é apertada, para marcar as curvas. Cria-se, então, um limbo entre o que é visto como apropriado ou não, mantendo brechas para a escolha da roupa ser usada como elemento de opressão e desvalorização do trabalho feminino. Mulheres que carregam grandes cargos na política, como Marina Silva e Dilma Rousseff, por exemplo, já foram alvo de diversas reportagens e publicações sobre suas escolhas de peça ou estampa, desviando o foco de seu trabalho. Em entrevista, Marina Colerato compartilha um relato próprio de sua dificuldade para se vestir como mulher de negócios. “No começo da organização [Modefica], quando eu ia dar palestra ou fazer qualquer coisa, eu ia completamente coberta. Eu não expressava nenhum tipo de sexualidade, eu guardava tudo, tentava me tornar um ser assexuado para ser levada a sério e ser respeitada”, conta Colerato.
Mas, e aí? O que fazer para mudar?
A compreensão de onde vêm as normas impostas sobre a vestimenta feminina pode dar o sentimento de impotência ou desânimo. Se o problema é estrutural, como faço para me sentir confortável com o que uso e ser respeitada? A fórmula perfeita para a liberdade feminina não existe, mas a estratégia mais eficaz para resolver esse problema é a união. Ao se organizar, conscientizar e se unir com outras mulheres, é possível fazer pressão sobre as empresas e instituições e lutar por mudanças efetivas para a proteção da mulher no mercado de trabalho. O ciclo de impotência e de culpa diante dos abusos só pode ser quebrado com o incentivo daqueles ao redor. Segundo Mayra Cotta, “a gente precisa se organizar, agir coletivamente, se apoiar umas nas outras, criar nossas redes, e nos mobilizarmos juntas, esse é o único caminho”.
Além disso, se sabemos que mulheres não são todas oprimidas da mesma forma, cabe àquelas que têm mais privilégios utilizá-los em prol da luta coletiva. Mulheres em posições de poder podem optar por escolher roupas que quebram a regra da neutralidade masculina, portando peças coloridas ou estampadas e, assim, liderar pelo exemplo, mostrando àquelas em posições inferiores que não há problema em sair do bege e do azul marinho. A repressão de brincadeiras ou comentários sobre a roupa de outras funcionárias também é essencial para definir um ambiente de trabalho seguro para todas.