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Nós tamo aí, nós é ralé

Cólera, uma das primeiras e mais importantes bandas punks do Brasil. Cólera ao vivo em São Paulo, Brasil, 1985. (Fonte: Zeni89)

Por influência do meu pai, quando criança escutei bastante artistas considerados ímpares da música nacional. Alceu Valença, Belchior, Zé Ramalho e Raul Seixas faziam parte do nosso pequeno repertório. Fato é que cresci e, como todo pré-adolescente curioso, fui descobrindo meu próprio gosto musical e me encantando pelas histórias épicas das bandas gringas de rock dos anos 1970 e 1980. Axl Rose com sua bandana vermelha (que faz parte do meu guarda roupa até hoje), Slash com seus cabelos grandes e sua irreverente cartola, Angus Young vestido de colegial com os chifrinhos de demônio, Gene Simmons e as roupas mirabolantes que combinavam com a maquiagem chamativa, tudo isso me fascinava.

Hoje, essas bandas internacionais já não me representam, apesar de eu ainda sentir arrepios quando coloco Paradise City para tocar. Os clássicos brasileiros que aprendi a gostar por influência do meu pai conversam muito mais com minha realidade e minhas ideias. Além disso, também por influência da minha família, aprendi a me abrir para outros estilos, como o samba e o sertanejo. Às vezes me divirto muito mais em uma roda de samba ou dançando forró do que em um mosh ou batendo cabeça nos shows de rock.

(Melhor do que assistir o clipe, foi assistir ao vivo. Esse riff inicial mexe muito comigo)

Convenhamos que não é em todo ambiente que uns riffs de guitarra são bem vindos. Entre ouvir Capital Inicial ou Raça Negra em um churrasquinho de domingo, eu prefiro a segunda opção. E se um dia a banda de Dinho Ouro Preto foi sucesso nas festas da minha família, hoje deve fazer parte, no máximo, da sessão de “músicas nostalgia” que os mais velhos adoram. Apesar de ser um dos gêneros mais populares da história da música, comercialmente o rock no Brasil parece enfrentar dias difíceis.

Se eu for pensar nos motivos para essa decadência comercial do gênero se comparado com outros, como o RAP e o funk, vejo que esses estilos não se deixaram distanciar da realidade do país. São estilos que não carregam uma complexidade técnica com solos de guitarra intermináveis ou letras eruditas e indecifráveis, mas que possuem instrumentais envolventes e letras acessíveis para o ouvinte casual. A genialidade por trás de artistas como Racionais MC’s, Emicida, Negra Li e Liniker, por exemplo, foi transformar a dureza da desigualdade e do preconceito no país em músicas que dialogam com seu público muito além das letras, mas também nas referências sonoras e visuais. E se esses artistas lotam shows, ocupam festivais e vão ganhando cada vez mais seu espaço na TV, rádio e internet, mídias em que a diversidade vem sendo cada vez mais exigida, é porque existe, em algum grau, uma relação de identificação com o público. O rock não conversou muito com a favela. Eu ouvia Diário de Um Detento dos Racionais e Oitavo Anjo do grupo 509-E tocar todos os dias na comunidade em que moro. Por outro lado, nunca ouvi Que País é Esse da Legião Urbana ou Polícia dos Titãs soar nas jukebox dos botecos. Mesmo que falassem da miséria, violência policial e dos problemas sociais do país, a identificação com o artista é algo poderoso.

(Era certeza de que iria acordar no sábado de manhã e ouvir essa daqui tocando pela vizinhança)

No Brasil, o rock não representou tanto a diversidade da cultura nacional ao longo de sua história no país. Até mesmo nos movimentos underground, é difícil ver uma banda formada só por pessoas negras ou só por mulheres. No mainstream, então, nem se fala. Meu grande problema com o rock no país é justamente isso, mais especificamente, com um incômodo sobre o período entre a década de 1980 e meados dos anos 1990.

Os Paralamas do Sucesso, lá em 1984, cantavam “se as meninas do Leblon não olham mais pra mim /  e volta e meia eu entro com meu carro pela contramão”. Se formos julgar esse trecho da música Óculos na linguagem dos memes da internet, nada mais é do que um white people problem – o clássico problema de pessoas brancas, em tradução livre. Agora, imagine que você é um jovem suburbano ouvindo isso nas rádios da época: eu duvido que você diria: “nossa, ele resume tão bem o que eu penso sobre minha vida amorosa e minhas aventuras automobilísticas”.

A banda Camisa de Vênus, liderada por Marcelo Nova, um jovem revoltado que virou um velho reaça, fez uma versão adaptada da música My Way do Frank Sinatra em 1986, que pode ser considerada um hino para os jovens rebeldes com problemas de autoestima. Para ser justo, eu entendo que o fim da censura foi uma virada de chave para as mídias no país e que abriu muitas possibilidades para os artistas brasileiros, mas preste atenção nesse trecho da variante brasileira de My Way: “Naqueles tempos eu era um menino que já sabia do meu destino. E caminhando de norte a sul eu vi muita gente, tomar no c*”. É subversivo? Com certeza! Palavrões em um dos grandes clássicos de Frank Sinatra vibrando nos toca-discos é de deixar qualquer família tradicional maluca. Mas, convenhamos, qual o conteúdo desse fragmento senão uma rebeldia gratuita?

Durante a década de 1990, uma das bandas mais populares da época, os Raimundos, era formada por homens brancos e héteros que faziam música com um subtexto de apologia ao assédio, machismo e até pedofilia. Quando mais novo, eu assistia ao clipe da música Me Lambe e achava incrível. O som era divertido e o clipe era cheio de fantasias e encenações, mas a letra eu não entendia muito bem. E que bom que eu não entendia, porque a música fala basicamente de uma história de pedofilia sem nenhum julgamento sério sobre o assunto. Na minha inocência, eu adorava assistir os clipes dos Raimundos na TV, cantava as músicas de cór e me dizia roqueiro mas, quando cresci, percebi o quão problemático isso era. Além disso, o atual líder da banda, Digão, é mais um daqueles jovens subversivos de 30 anos atrás que de subversivo só tinha os palavrões no vocabulário e a carinha de mau, e que virou um velho reaça. Não vou ser hipócrita: ainda escuto Raimundos e já fui em shows e me diverti bastante, mas admito que sinto vergonha em assumir isso pois condeno toda podridão dos assuntos expressos nas músicas.

(Assistir esse clipe hoje em dia é bem perturbador)

Rubinho Giaquinto, músico, escritor, ativista cultural e apreciador do rock nacional, é o responsável pela criação do projeto Contando a História do Rock no Brasil, que tem como objetivo discutir a evolução do gênero no país com alunos de escolas públicas da região metropolitana de Belo Horizonte. Em uma conversa, ele me disse coisas muito interessantes sobre essa cena no país e sobre a forma como ela se conecta com a quebrada e conta que, sob uma perspectiva de consumo, o gênero se diversificou em lugares mais industrializados, onde existia uma classe trabalhadora que tinha condições de comprar equipamentos.

Para ele, existem três polos importantes para se discutir o rock no país: Brasília, por concentrar os filhos da elite política, São Paulo, por ser a capital industrial, e Rio de Janeiro, pelo aglomerado de mídia, como a rede Globo, e cultura, como o Cidade das Artes . Em outros lugares, como o Sul do país, o Nordeste e até mesmo Belo Horizonte, por exemplo, sempre houve movimentos fortes, mas com pouca relevância no cenário nacional. “Essa relação do consumo dessas capitais é uma representação de um setor. Isso tudo propicia você lançar um movimento. Eu costumo dizer o seguinte: a periferia de São Paulo era mais forte culturalmente do que a elite de Belo Horizonte porque, na época, as coisas chegavam primeiro por lá”, disse Rubinho.

No projeto encabeçado por ele, havia constantemente, por parte dos docentes das escolas, uma descrença de que os alunos não iriam gostar da palestra por terem uma preferência pelo funk ou RAP. Mas Rubinho relata que, na realidade, os estudantes ficavam fascinados com os instrumentos e participavam das atividades com o maior prazer e curiosidade. Além disso, ele complementa a tese valorizando a importância de se trabalhar música e educação no Brasil dizendo que, apesar dos privilégios da formação do gênero, o rock foi um produto de massa pois, mesmo que em espaços distintos, pessoas de diferentes camadas sociais cantavam e discutiam os sucessos da época.

É curioso pensar que ao longo da sua história o rock brasileiro refletia a desigualdade social do país enquanto tecia críticas ao cenário político e econômico. Até mesmo quando alcançou a periferia de uma maneira significativa, foi a periferia do maior centro do país, São Paulo. O documentário Botinada, que conta a história do punk no país, discute a origem dessa vertente e deixa subentendido que, mesmo que periféricos, os punks tinham um acesso muito maior aos discos, revistas e instrumentos, por estarem em São Paulo.

(Assistir esse documentário foi uma virada de chave na minha percepção sobre o rock nacional)

Se formos analisar por décadas, o rock só alcançou uma diversidade social nas bandas e uma variedade sonora maior, lá nos anos 1990. Mesma década em que os Raimundos, que eu critiquei anteriormente, fazia um baita sucesso. Apesar de tudo, eles criaram um estilo diferente que misturava o baião nordestino, hardcore e reggae com melodias que se baseavam no repente e letras semelhantes a estrutura dos cordéis. Planet Hemp era uma banda que se inspirou nos Beastie Boys, uma banda gringa que fazia uma espécie de hip hop com rock, e misturou isso tudo com referências sonoras da MPB e do samba. Chico Science, um dos grandes gênios da música brasileira, é o principal nome do manguebeat, um movimento cultural recifense que não existe outro igual no mundo.

E sabe o que é mais engraçado nisso tudo? É que essas bandas são formadas pelo baixo clero, que só teve relevância nacional porque o jovem suburbano começou a ter oportunidade de comprar discos, cds, revistas e passou a assistir uma tal de MTV. Os Mutantes, Raul Seixas e Secos e Molhados, por exemplo, ainda que a sonoridade não fosse pesada, valorizavam a cultura nacional e tinham uma riqueza e complexidade muito mais interessantes do que o rock classe média pós punk dos anos 1980. A última grande banda de rock brasileira que estourou a bolha da cena no país foi Charlie Brown Jr. Uns moleques da ralé de Santos e região que criaram uma identidade musical própria combinando ska, reggae, hardcore, MPB, rap com um estilo visual que conversava com a juventude suburbana e que transmitia a vibe dos caras.

Ainda que a elite roqueira e intelectual faça um som rebelde, eles dificilmente vão alcançar a identificação da plebe. Os caras da banda Garotos Podres já deram a letra há muito tempo: “Os que moram do outro lado do muro nunca vão saber o que se passa no subúrbio”. E crescer no subúrbio da região metropolitana de Belo Horizonte, em uma família de origem humilde e interiorana, poderia ter feito de mim apenas mais um membro do estereótipo da família suburbana, “muito unida e ouriçada”. Mas a verdade é que essa família, e essa ambiência na periferia da cidade fizeram eu ser mais punk do que Sex Pistols e Ramones poderiam me ensinar.

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