Vídeos cômicos, análises de arte e música, debates calorosos, vida social e vida privada, ou algo totalmente aleatório sobre o qual ninguém parecia ter pensado antes; você provavelmente já acompanhou coisas do tipo no perfil de um produtor de conteúdo na internet. No entanto, quantos destes conteúdos que você consome são produzidos por influenciadores com deficiência? E quantos trazem informações esclarecedoras sobre a sexualidade dessas pessoas?
Desde que produzir conteúdos para perfis em redes sociais e acompanhá-los se tornou uma prática rotineira na vida de muitas pessoas, assuntos distintos com as mais diferentes abordagens dominaram as telas, ora conscientizando, informando, ou apenas arrancando boas gargalhadas. Assim, nesta seara de identidades cada um almeja criar e apresentar aquilo que poderá destacá-lo dos demais, em uma busca constante por visibilidade e aceitação.
Atualmente, mais de 500 mil pessoas atuam como influencers no Brasil, com no mínimo 10 mil seguidores cada, segundo um estudo divulgado neste ano pela multinacional Nielsen Media Research. Em escala global, o mercado de influenciadores movimentou cerca de US$ 16,4 bilhões (R$ 87,36 bilhões) em 2022, em um crescimento de 19% em relação ao ano anterior, segundo o Influencer Marketing Hub (IMH). Enquanto isso, o número de empresas de marketing que oferecem serviços especializados com influenciadores, por sua vez, chegou a 18.900 em todo o mundo, segundo o mesmo estudo.
Entretanto, quando analisamos o contexto dos produtores de conteúdo com deficiência, a realidade é tímida e ainda passa por alguns percalços como o preconceito, o capacitismo e a falta de colaboração. Segundo a pesquisa “Criadores com deficiência: quem são, onde criam e como monetizam”, realizada pela empresa de agenciamento Tambor.biz, com apoio do YouPix, de 2022, a luta pela visibilidade é constante para este grupo, considerando os poucos criadores com deficiência que têm grandes números de seguidores nas redes sociais.
O estudo mostra que 61% das influenciadoras entrevistas têm até 10 mil seguidores na sua principal rede social, enquanto 30% contam com 10.001 a 50 mil seguidores. Quanto às plataformas onde atuam, o Instagram é o meio principal de 85% das entrevistadas. O TikTok, por sua vez, é a principal rede de produção entre 5% das criadoras, seguido pelo YouTube e Twitter, ambos correspondendo a 2%.
Além disso, o estudo constatou que a falta de representatividade é o grande motivador para essas pessoas virarem criadores de conteúdo na internet, com 29% das entrevistadas concordando com esta perspectiva. Além disso, com o intuito de driblar as amarras sociais do preconceito e dar visibilidade a um potencial ora antes questionado, muitos influenciadores PcD têm adentrado as redes sociais com perfis que falam sobre deficiência, mas também sobre moda, política, autoestima e, muitas vezes, com boas doses de humor.
Porém, se falar sobre deficiência já é tratado, por muitas pessoas, como um tabu, quando assuntos envolvendo sexualidade de pessoas com deficiência entram neste escopo, o muro do preconceito cresce, fazendo sombra e dificultando a visibilidade e o debate. No entanto, para eles, esse muro nunca será intransponível.
Humor contra o capacitismo
Maria Paula Vieira é jornalista, modelo e atriz, e encontrou na produção de conteúdo para as redes sociais uma forma de lutar contra o preconceito e levar informação às pessoas a partir de suas experiências de vida. “Eu comecei a sentir a necessidade de denunciar as situações capacitistas que eu vivia pela falta de acessibilidade, inclusão e discriminação da sociedade. Paralelo a isso, comecei a trabalhar como modelo e queria mostrar às marcas a importância da representatividade”, explica ela.
Além dos trabalhos com a moda e com a fotografia, que ela expõe em uma página na internet, a influenciadora também fala em seu perfil no Instagram sobre assuntos como sexualidade, relacionamentos amorosos e autoestima. Muitas vezes com humor, ela promove debates com seus seguidores mostrando como pessoas com deficiência também têm desejos, intimidade e podem construir relacionamentos saudáveis como qualquer outra pessoa.
Para Maria Paula, falar sobre sexualidade é importante para todo mundo, mas, em um grupo de pessoas que muitas vezes são negligenciadas pela família e recebem pouco suporte da área da saúde, o assunto se torna ainda mais importante. “Falar sobre sexualidade é também falar sobre direitos reprodutivos. É um debate importante para informar e desmistificar vários pontos que englobam o tema”, afirma a jornalista.
Outro problema, segundo ela, é a fetichização dos corpos de pessoas com deficiência. Muitas vezes, as pessoas só se aproximam deles com o intuito de satisfazer fantasias sexuais distorcidas e preconceituosas. Quanto a isso, ela reforça a necessidade de informar, debater e conscientizar sobre esses assuntos também nos espaços digitais. A influenciadora costuma utilizar a caixinha de perguntas dos stories do Instagram para conversar com seus seguidores sobre temas como a falta de clínicas acessíveis e ginecologistas preparados para os cuidados com pessoas com deficiência.
Outro ponto defendido pelos produtores de conteúdo é a importância de pessoas com deficiência estarem em campanhas publicitárias, também, no ambiente digital. Maria Paula, por exemplo, já estreou uma campanha de uma marca de lingerie divulgada em suas redes sociais, que buscava a valorização do corpo feminino.
No entanto, segundo a pesquisa da Tambor.biz, poucos influenciadores PcD são chamados para campanhas publicitárias. Além disso, quando são convidados para este tipo de trabalho, ficam restritos às datas alusivas às deficiências.
Assim como o preconceito já existia antes do advento da internet, com a expansão desse espaço de interatividade, atrelando o físico e o virtual, não seria diferente. Com isso, é fácil encontrar comentários preconceituosos e abordagens capacitistas no contato feito na web, principalmente quando envolve publicações e campanhas de pessoas com deficiência.
Quanto a isso, Maria Paula acredita que uma das alternativas é tentar “furar a bolha”, e para isso é preciso “informar, conscientizar, acabar com tabus, fazer as pessoas questionarem quando vão a lugares sem acessibilidade, repensar atitudes e falas capacitistas, para que a gente consiga pensar em um futuro consolidado na educação anti capacitista”.
SEXO, GÊNERO E OUTRAS ORIENTAÇÕES
O amor que chega
Para Sophia Mendonça, jornalista, escritora e fundadora do site e canal do Youtube “O Mundo Autista”, em parceria com sua mãe Selma Sueli, debater sobre sexualidade, principalmente nos espaços digitais, é necessário e urgente, além de ser uma forma para que todos entendam a pluralidade de corpos e relações.
“Eu penso que falar sobre sexualidade de pessoas com deficiência primeiro humaniza a pessoa de modo que a gente perceba que ela não é diferente na sua essência humana do que qualquer outra pessoa”.
Sophia Mendonça
Sophia foi diagnosticada com autismo aos onze anos. Em 2015, ela lançou o canal no Youtube, O Mundo Autista, onde pôde compartilhar um pouco de suas experiências de vida e praticar uma de suas paixões: informar. Ao mesmo tempo, a influenciadora aproveitou do espaço para falar sobre o que sofreu ao receber o diagnóstico de autismo em uma época com pouco conhecimento sobre o assunto, principalmente quando se tratava de mulheres autistas e LGBTQIA+. “Quando eu e minha mãe criamos esse canal, nós queríamos que nenhuma família se sentisse sozinha como a gente se sentiu um dia.”
Em seu canal, Sophia fala também sobre gênero e a importância do diálogo para a construção de relações sociais saudáveis. “A sexualidade tem papel muito decisivo na vida das pessoas e a maneira como ela lida com isso pode gerar impactos mais sérios, principalmente no caso de uma pessoa com deficiência que já tem outras questões, outros desafios que vão complexificar essa situação”, diz a jornalista.
Outro problema apontado por Sophia é a forma diferente que crianças e mulheres autistas são tratadas em relação aos homens autistas, seguindo uma lógica de performance de gênero. “No caso da menina, por exemplo, eu ainda vejo que tem pouca coisa falando sobre os relacionamentos abusivos aos quais elas estão sujeitas. E no caso da mulher autista é também bastante desafiador, muito em função dessa educação que recebemos como mulheres, além da autoestima da mulher ser prejudicada”, explica.
Ainda sobre a questão da performance de gênero perpetuada pela sociedade, a função da família na construção da imagem das pessoas com deficiência regularmente entra no debate. “Quando a pessoa se casa e tem filhos, por exemplo, a gente enxerga isso como uma trajetória bem sucedida, do ponto de vista da sexualidade e da sociedade, e muitas vezes, nesses casos, o diagnóstico do autismo é até invalidado. É como se essa pessoa não pudesse ser autista porque ela conseguiu sucesso em uma determinada área”.
Além de enfrentar o preconceito da sociedade em relação ao autismo, Sophia também lidou com os desafios de uma pessoa que se assume como mulher trans. Alguns médicos chegaram a dizer que ela estava confusa, e que ou ela era autisma ou uma mulher trans, que não podia ser as duas coisas. Por um tempo, ela tentou se enquadrar dentro dos rótulos e pré-definições que tentavam impor a ela, como o papel de um homem gay que, segundo os médicos, precisava esperar “se apaixonar” para saber do que realmente gostava. Mas, segundo ela, isso causou angústia e desconforto em relação àquilo que estava sentindo.
Mesmo com a abordagem pouco receptiva dos profissionais de saúde, desde a infância a influenciadora já havia contado para a mãe que se sentia uma mulher presa em um corpo de homem. Para Sophia, a questão não era sobre sexualidade ou afetividade, mas sim sobre identidade de gênero. Nesse ponto, o apoio da mãe em buscar entender e ajudar no processo pelo qual a filha estava passando foi essencial, principalmente no que diz respeito a buscar construir uma relação saudável com o próprio corpo.
Um olhar atento
Uma abordagem importante dentro da discussão sobre sexualidade, gênero e pessoas com deficiência, é a necessidade de trabalhar a forma como cada pessoa lida com essas questões ao longo da vida, principalmente quando submetidas a diferentes contextos como, por exemplo, situações de preconceito, deslegitimação ou repressão de seus desejos sexuais e afetivos.
Para entender melhor essa necessidade de cuidado e acolhimento, nós convidamos o psicólogo Rafael Domingos Moreira. Ele foi diagnosticado com paralisia cerebral logo após o nascimento, e encontrou na profissão uma forma de democratizar a informação sobre saúde mental e corporal. Assim, Rafael é a análise, e aquele que analisa, a partir de suas vivências pessoais e formação profissional em psicologia. Confira:
Aqueles que podem tudo
Quando se trata de sexualidade e redes sociais, há também muitas mães e pais que se preocupam com o tipo de conteúdo que os filhos estão consumindo. E quanto se trata de assuntos relacionados à sexualidade, a atenção é redobrada e, por vezes, pode ser limitadora.
No entanto, segundo Maria Paula, se este conteúdo é apresentado de forma educativa, pode trazer muitos benefícios, principalmente para famílias com pessoas com deficiência: “Eles se sentem acolhidos quando eu debato sobre sexualidade, porque pouco se fala sobre, especialmente quando falamos de mulheres com deficiência. Fico feliz quando mães de crianças, jovens com deficiência, também me mandam mensagem falando que aprendem para, no futuro, auxiliar suas filhas”, conta a influenciadora.
Outro ponto debatido entre os produtores de conteúdo com deficiência é a necessidade de atualização dos mecanismos e algoritmos das plataformas para garantir a inclusão e engajamento das pautas levantadas por eles. Segundo Maria Paula, a sexualidade, por exemplo, não é um assunto bem recebido na plataforma, especialmente no feed, o que acaba gerando pouco alcance. Por isso, ela acaba focando a discussão sobre o tema na ferramenta dos stories, que chega com mais facilidade aos seguidores.
Rafael cita a página do Instagram ValePcd, que produz conteúdo LGBTQIA+ para pessoas com deficiência, como exemplo de um conteúdo que vem sendo produzido e tem atraído diferentes públicos, com pautas que antes eram invisibilizadas e pouco debatidas.
Rafael analisa, também, que as redes sociais estão cada vez mais dando espaço para temas como sexualidade e gênero, contribuindo com a desmistificação de antigos tabus. “É claro que vai ter pessoas capacitistas que estão ali só por conta do meme, prontas para debochar e fazer piada com tudo. Mas também tem outro viés, que são pessoas que estão preocupadas em trazer esses assuntos esquecidos, como a sexualidade, sejam elas heterossexuais ou não”, explica o psicólogo.
Neste ponto, Sophia Mendonça concorda: “o próprio debate sobre sexualidade engloba muito mais conceitos e reflexões do que só aquela ideia de homem macho, gay, hétero ou bissexual. Temos uma série de maneiras de interpretar essa atração que sentimos por outra pessoa. Com certeza precisamos caminhar nesses debates sobre sexualidade de maneira geral, assim como gênero”.
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Conteúdo produzido por Ana Carolina Dias e Arnon Gonçalves, na disciplina Laboratório de Jornalismo Digital e Jornalismo de Dados, sob a supervisão da professora e jornalista Maiara Orlandini.