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Mianmar e a frágil democracia

Exército Brimanês Banco de imagens Unsplash

Em 2021, o Brasil relembra 57 anos do Golpe de Estado de 1964 que destituiu João Goulart e levou o General Castelo Branco ao poder, episódio que é motivo de referência e exaltação constante por parte do Governo Bolsonaro. Contudo, a realidade de quem vive um governo autoritário não é festiva. Isso é o que ocorre na Ásia, mais especificamente em Mianmar, onde a população não tem o que comemorar e se vê impedida de participar de qualquer forma de denúncia e manifestação. Centralização do poder político, forte repressão à oposição, cerceamento de liberdades individuais e alteração de legislações, entre outras características observadas em autoritarismos ao redor do mundo, fazem novamente parte da vida de Mianmar. No dia 1º de fevereiro de 2021, após a Liga Nacional da Democracia vencer as eleições realizadas em novembro do ano anterior, a junta militar liderada pelo comandante-chefe das forças armadas, Min Aung Hlaing, assumiu o governo alegando estado de emergência nacional, deslegitimando a escolha popular e valendo-se de brechas na constituição. 

Mapa da região de Mianmar / Banco de imagens Pixabay #ParaTodosVerem: Na imagem, é representado o mapa de Mianmar, antiga Burma. Sua capital, Naypyidawm, está destacada entre as demais cidades.

Localizada no sudeste asiático, Mianmar foi uma colônia britânica a partir do século XIX e, durante a Segunda Guerra Mundial, foi ocupada pelo Japão. Membro do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Uehara explica que “uma das grandes dificuldades desse país é a diversidade étnica, pois, pouco antes da ocupação do Japão, estudos apontavam que havia cerca de 135 grupos com identidades e línguas próprias.”

Com a saída das forças japonesas e o crescimento do movimento nacionalista liderado por Aung San, pai de Aung San Suu Kii, a principal líder do partido reeleito em 2020, o país se tornou independente em 1947. Após a independência, em 1968, foi implantado um governo militar e autoritário.

O professor Uehara lembra que o Estado Mianmarense foi monopolizado pela maioria do grupo étnico Bamar, que colocou como língua oficial o birmanês. Apesar de o estado totalitário ter buscado construir a nação com um discurso de que os diferentes grupos eram um só, vários conflitos tomaram conta do país neste período, e a população passou a se colocar contra os regimes autoritários. A divergência entre sociedade e governo se faz presente até mesmo no nome do país, que foi mudado em 1989 pela junta militar e não é reconhecido pelos manifestantes pró-democracia que preferem “Birmânia” como nome oficial do país.

Processo de Democratização 

Em 1988, Suu Kyi regressa ao seu país, por ser descendente de um líder da independência, e sua presença inflama o movimento pró-democracia e o crescimento de uma revolta popular contra os 26 anos de governo do general Ne Win. Em 1989, Suu Kyi é presa pela primeira vez e impedida de apresentar sua candidatura às eleições gerais do ano seguinte, as primeiras no país desde 1962. Ainda assim, seu partido, Liga Nacional da Democracia (NLD, na sigla em inglês), obteve vitória esmagadora nas eleições de 1990, conquistando 81% das cadeiras em disputa. Mas a junta militar se recusou a reconhecer o resultado das eleições.

Em 2007 eclodiu no país uma onda de protestos pacíficos contra o corte de subsídio aos preços dos combustíveis e a intensificação da crise econômica. Como resposta, o regime conduzido pela junta militar birmanesa reagiu de forma violenta contra a população, causando mortes e prisões de manifestantes. Uehara destaca que “as pressões da comunidade internacional sobre Mianmar pelas repercussões negativas das violências promovidas no país e também da prisão de Aung Sang Suu Kii, foram importantes para que os militares seguissem pelo caminho da transição e do processo de democratização”, movimento interno que resultou em reformas econômicas e políticas, sinalizadas pelas eleições de 2010.

A dissolução do primeiro Regime militar ocorreu em 2011 após a vitória do Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP, sigla em inglês) nas eleições gerais, dando início a um programa de reformas democráticas. Esse partido é ligado ainda aos militares, o que contribuiu com a manutenção de sua influência na política mianmarense, mesmo após a abertura. “Em 2008 houve a apresentação da nova constituição, mas isso não significou necessariamente menor presença dos militares no poder, pelo contrário, a percepção é que a nova Carta Magna servia para solidificar o regime militar, pois garantia aos militares direito a 25% das cadeiras do Parlamento”, explica Uehara. Além disso, os militares mantiveram o controle de três ministérios importantes  — Interior, Defesa e Fronteiras.

O Golpe

Em novembro de 2020, durante as eleições gerais, a Liga Nacional da Democracia (NLD) venceu com maioria dos votos, ocasião que culminou no planejamento da retomada de poder pelos militares, que alegaram estado de emergência e fraude na eleição. De acordo com a NetBlocks, organização que monitora a disponibilidade de acesso à internet mundial, na madrugada de 31 de janeiro de 2021 a internet de Mianmar sofreu interrupções generalizadas. Os sinais de televisão e rádio também foram interrompidos e, em 1º de fevereiro de 2021, líderes políticos como o presidente Win Myint e a Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi  foram detidos pelo Tatmadaw, o exército do país. A capital, Naypyidaw, foi tomada pelos militares, que controlavam as vias de acesso da cidade e ocuparam ruas e prédios estratégicos.

Uehara entende que uma das razões para o golpe de fevereiro deste ano foi a vitória acachapante da Liga Nacional pela Democracia (NLD). Nas eleições de novembro de 2020, o partido conquistou 83% das cadeiras do parlamento, representando um resultado melhor que em 2015. Para o professor, esse resultado fez com que o Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), fizesse a primeira acusação de “fraude eleitoral” e abrisse o pretexto para o golpe. Por meio de um comunicado, o recém-instalado presidente, general Min Aung Hlaing, repetiu a alegação de fraude como justificativa para a imposição do estado de emergência perdurável por um ano. O professor de geografia Jean Cassio Lima, criador do podcast Quick Geo, ressalta que mesmo com o início do processo de democratização, os militares estão muito presentes na política do país, o que dificulta que mudanças sejam feitas.

A Manifestação Internacional 

Em reunião informal da Assembléia Geral da ONU sobre Mianmar realizada em 26 de fevereiro de 2021, Christine Schraner Burgener, enviada especial da organização, nomeia a justificativa de estado de emergência como golpe, ao afirmar que as ações foram “uma violação clara da constituição, independentemente do que eles [os militares] reivindicam” e instruiu que os Estados Membros da ONU enviem sinais claros em defesa à democracia e se posicionem, cumprindo suas responsabilidades para com os direitos humanos. Em seu discurso, Burgener denunciou violações dos direitos humanos, assédio e atos com o propósito de provocar instabilidade e insegurança à população por parte dos agentes de segurança.

Os líderes de países ocidentais repudiaram o golpe em Mianmar. No entanto, até o momento, países considerados potências regionais e que possuem grande influência político-econômica em Mianmar e região, como China, Índia, Rússia e Japão, não fizeram nenhum pronunciamento concreto em relação ao golpe de 2021.

Para o pesquisador Uehara, entender a adoção de uma postura mais cautelosa dos países asiáticos perpassa dois fatores: o primeiro possui um caráter mais geral, que é a pandemia, pois “o combate à covid-19 tem tomado muito das atenções dos governos nacionais e, com isso, eventos internacionais, apesar de importantes, têm sido abordados nas franjas das atenções políticas”. Já o segundo fator, trata-se de um aspecto mais específico, que são os interesses de cada país nas suas relações com Mianmar. “China, Índia e Japão, por exemplo, têm procurado manter boas relações com Mianmar independente do governo, por questões geopolíticas.”  

De acordo com o geólogo Jean Cassio, socialmente, existe uma idealização de pronunciamentos firmes e diretos por parte de países que não concordam com decisões políticas de outros Estados. Contudo, manifestações fortes ocorrem apenas quando a integridade nacional está ameaçada ou há interesse no resultado.

Atualmente, Mianmar desperta maiores interesses para a China e a Índia por,  geograficamente, representar  uma ponte estratégica ao Oceano Índico, como extensão territorial ao Sul da Ásia. A China não vê com muito interesse a abertura democrática no país vizinho, já que seu governo está mais alinhado com os militares, o que poderia justificar os pronunciamentos brandos. Para o professor Cássio, a China não expressou de forma explícita apoio ao governo militar, mas está dando indícios de que o atual Governo de Mianmar está de acordo com os seus interesses, o pesquisador Alexandre Uehara lembra que “no último grande evento no país, quando se celebrou o “Dia das Forças Armadas”, China e Rússia mandaram representantes para o evento, “demonstrando, senão apoio irrestrito, conivência com o golpe”.

Já a Índia, que exerce uma espécie de força antagônica à China na região, se beneficiaria com uma nova abertura democrática em Mianmar,  por estar alinhada com as ideais progressistas, sendo vista como a maior democracia do mundo. Cássio acredita que a Índia tem forte potencial para influenciar na reabertura democrática do país, mas sua posição geográfica, envolta por potências mundiais, não favorece sua atuação perante a comunidade internacional.  

Na política Ocidental, o único mecanismo possível de influência é a aplicação de sanções, na intenção de pressionar uma mudança interna, como escolhido pelos Estados Unidos, que bloqueou a comercialização de pérolas e madeira vindas de Mianmar. Para o geólogo Jean Cássio, o governo estadunidense tem forte interesse em diminuir a influência chinesa na comunidade internacional, logo, o modelo democrático é sempre apoiado como forma de restringir o poder da China. “A democracia é um jogo político para os Estados Unidos e é interessante para os EUA disseminar seus valores políticos, econômicos e geopolíticos. Embora [a democratização] condiga com os valores do país, é sempre uma jogada política.” 

Religião

Existe uma característica cultural birmanesa que se agravou com os efeitos do autoritarismo do governo: a perseguição religiosa contra os rohingya, minoria islâmica apátrida, pois apesar de serem originários de Mianmar, o país não lhes confere cidadania nem direitos. A perseguição não é recente. Em 2017, após a fuga em massa da etnia muçulmana para Bangladesh, os Médicos Sem Fronteiras estimaram que cerca de 6.700 rohingyas foram mortos em Mianmar entre 25 de agosto e 24 de setembro. Mais de 70% das mortes ocorreram de forma violenta, a maioria em decorrência de tiroteios. 

A religião tem papel identitário dentro do país de maioria budista, que não reconhece os muçulmanos rohingyas como cidadãos, mas sim, pcomo rebeldes. Para Jean Cassio, o islamismo não é aceito por religiões importantes como budismo e hinduísmo por seu caráter expansionista. “Eles [os muçulmanos] trabalham com essa ideia de que a religião não é só para você. É para você e para salvar o outro, isso gera conflito”. 

Direitos Humanos

Como em todo regime ditatorial, o governo militar em Mianmar não preza muito pelos direitos humanos resguardados pela ONU. Durante esses meses, diversas denúncias sobre violência contra civis surgiram e chamaram a atenção internacional. Segundo a Associação para Assistência a Presos Políticos (AAPP) quase 600 civis foram mortos de fevereiro a abril, sendo cerca de 50 crianças e adolescentes. Ainda há cerca de 2,7 mil detidos, grande parte sem acesso a advogados e à família. 

Ciente disso, a ONU, no dia 12 de fevereiro de 2021, adotou uma resolução pedindo a libertação urgente, imediata e incondicional de todas as pessoas detidas arbitrariamente em Mianmar. O Conselho da ONU realça a necessidade de que todas as partes se abstenham da violência e respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de direito. 

Um grande embate que dificulta a situação em Mianmar é a falta de comunicação com o cenário interno. Como o exército cortou o acesso a internet, a mídia e a população encontram dificuldade para obter informações concretas e verdadeiras da ditadura militar.

Conteúdo produzido por Ana Carolina Dias, Kim Pereira e João Marcelo S. de Albuquerque, estudantes do curso de jornalismo da PUC Minas.
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