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Memórias que moldam o presente: por que estudar a ditadura?

Imagem das escavações DOI-CODI/SP

Tuanny Lima| Acervo Lap (Arqueologias DOI-Codi)

Em dezembro, completam-se 55 anos desde a promulgação do Ato Institucional Número 5 (AI-5). Instituído em 13 de dezembro de 1968 durante o regime militar, o AI-5 representou um endurecimento substancial das medidas autoritárias adotadas pelo governo da época. Ao conceder amplos poderes ao regime, o ato resultou em restrições significativas às liberdades civis, censura e perseguições políticas. Neste aniversário, revisitar os eventos em torno do AI-5 é essencial para compreender a complexidade desse período da história brasileira e as implicações duradouras que ainda reverberam na sociedade atual.

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi o epicentro de inúmeras violações dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil, que durou de 1964 a 1985. Este local foi palco de prisões arbitrárias, torturas brutais e desaparecimentos forçados de opositores políticos do regime. Por décadas, a memória e os detalhes desses eventos estiveram enterrados nas sombras do passado. No entanto, nos últimos anos, um projeto interdisciplinar envolvendo arqueólogos, historiadores e ativistas dos direitos humanos iniciou escavações no DOI-CODI. O objetivo é trazer à tona evidências físicas dos eventos que ocorreram ali, bem como documentar a história e os horrores que o local testemunhou.

Escavações DOI-CODI

Créditos: Tuanny Lima| Acervo Lap (Arqueologias DOI-Codi)

O DOI-CODI, Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, foi conhecido por ser um local onde prisioneiros políticos foram detidos e submetidos a interrogatórios sob condições desumanas. As escavações buscam evidências que possam contribuir para o esclarecimento de eventos ocorridos durante esse período. O processo é conduzido por historiadores, arqueólogos e especialistas em direitos humanos, em uma iniciativa que destaca a importância de compreendermos integralmente os eventos do passado para promover a verdade histórica e preservar a memória coletiva.

Fernanda Luiza Lima Doutora em história pela Unicamp e membro do Grupo de Trabalho do DOI-CODI-SP , em entrevista à reportagem, explicou as origens das escavações, que é resultado da Operação Bandeirantes, de 1970, criada para coibir os crimes políticos ou tudo aquilo que afetasse a ordem vigente do poder militar. Essa operação foi realizada em resposta à morte do estudante Edson Luís, e da deserção do capitão Carlos Lamarca, militar que era contra o domínio da ditadura.

No projeto das escavações do DOI-CODI em São Paulo, o objetivo é encontrar vestígios históricos e documentação que possam contribuir para uma compreensão mais abrangente das atividades desse órgão durante aquele período.

Na conversa com a historiadora Fernanda Luiza Lima, ela conta sobre a experiência de trabalhar nas escavações:

https://blogfca.pucminas.br/colab/wp-content/uploads/2023/11/audioFernandaLuizaLima.m4a
Ouça o relato de Fernanda Lima sobre as escavações do DOI-CODI em São Paulo.

Segundo a pesquisadora, preservar a memória da Ditadura é fundamental para garantir que as gerações futuras saibam o que aconteceu. Isso permite que as pessoas entendam a luta pela democracia e a importância de proteger as instituições democráticas. Muitas das questões políticas, sociais e econômicas que o país enfrenta hoje, segundo Fernanda Lima, têm raízes naquele período.

Quando você estuda a ditadura, causas anteriores que levaram a esse contexto de violência e autoritarismo, suas consequências e permanências no nosso presente, pois vivemos um terrorismo de Estado, isso ajuda a contextualizar os desafios atuais e a encontrar soluções para os problemas do presente”.

Fernanda Luiza Lima Doutora em História pela Unicamp e membro do Grupo de Trabalho do DOI-CODI-SP

Memórias na cidade de Belo Horizonte

Os reflexos da ditadura militar também podem ser observados na capital mineira, onde diversos locais, ruas e monumentos mantêm a memória do período ditatorial viva. Praça Sete, DCE da UFMG, Edifício Maletta e Edifício Acaiaca são exemplos de localidades que tiveram relevância durante o período. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), é outro símbolo da repressão. O prédio, na Avenida Afonso Pena, foi cenário de tortura e abusos contra militantes que lutavam contra o fim da ditadura.

Veja no mapa locais de BH que são espaços de memória da ditadura

Pensando nesses lugares e na importância que eles carregam, um guia turístico de BH fez um mapa dos lugares que mantêm vivas as lembranças da ditadura. O roteiro, distribuído pela Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte (Belotur), chama-se “Memórias da Resistência” e tem o objetivo de amplificar a voz daqueles que resistiram e lutaram contra a opressão.
Em matéria do G1, Irany Campos, que foi preso e torturado durante a ditadura, afirma:

Lutar pela democracia, pela justiça e pela liberdade não tem que ter arrependimento nenhum. Fiz certo”

Irany Campos, em entrevista ao G1
Obelisco, localizado na Praça Sete, Belo Horizonte.

Para José Ângelo Machado, professor do Departamento de Ciência Politica da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG), a repressão esteve presente na prisão, tortura e assassinato de lideranças sociais e, inclusive, estudantis na cidade de Belo Horizonte. Ele lembra que o Congresso da Une, realizado clandestinamente na cidade, em 1966, foi desarticulado e levou à prisão de várias lideranças. Em 1968 a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG foi invadida pelo Exército, tendo outros episódios semelhantes ocorrido em outras instituições de ensino em que os estudantes buscavam se organizar para lutar pela democracia no Brasil.

A despeito de inúmeros casos, a falta dessa “memória coletiva” contribuiu para que várias pessoas das novas gerações, desconhecendo o passado e manipuladas pela desinformação e pelo controle das novas mídias sociais pela extrema direita, passassem a simpatizar e defender os anos de Regime Militar”.

Professor José Ângelo, do Depto. de Ciência Política da UFMG

Um novo horizonte

Mesmo chegando ao fim institucional e democrático, a ditadura militar (1964-1985) ainda se faz presente na cultura, na política e no dia a dia da sociedade brasileira. Com isso, surge uma pergunta: seria possível um novo golpe militar no Brasil? O quão fragilizada está a relação da sociedade com as instituições públicas?

Nos moldes clássicos da Guerra Fria, não, o golpe possível nos dias atuais, se insere dentro de um contexto de Guerra Híbrida, que alcança os seus interesses por meio das desinformações e das formações de juízo de valor específicas”.

Priscila Carlos Brandão, professora do Depto. de História da UFMG.

A professora Priscila Carlos Brandão, do Departamento de História da UFMG, ressalta que se houvesse um golpe clássico na atualidade, imediatamente teríamos a nossa economia paralisada: “O país, é signatário de várias convenções internacionais, comprometendo-se com a democracia. De imediato, já seria expulso do Mercosul e da OEA, inviabilizando os vários tratados econômicos realizados, que envolvem, dentre vários campos, os setores de importação e exportação por exemplo”, explica.

Impactos na política contemporânea

O professor José Ângelo explica que, diferente de outros países latino-americanos, o final do Regime Miliar no Brasil não foi seguido de um processo de apuração e punição dos crimes cometidos pelo Estado, especialmente violações de direitos humanos por meio de tortura, assassinatos, sequestros.

O processo de “anistia ampla geral e irrestrita”, negociado ao final dos anos 1970 sob uma correlação de forças bem mais favorável às forças governistas que à oposição, envolveu aqueles que praticaram tais crimes, livrando nossa “memória coletiva” do direito ao conhecimento da verdade e à realização da justiça.

José Ângelo, professor da UFMG

Assim, os impactos da Ditadura Militar no Brasil são complexos e ainda não foram superados. Tais impactos acabam moldando aspectos cruciais da sociedade brasileira até os dias atuais. O país continua a lidar com as consequências desse período, buscando verdade, justiça e uma consolidação plena da democracia. A ditadura brasileira foi um marco na história recente do Brasil e deixou cicatrizes que ainda estão abertas, seus impactos e reflexos podem ser encontrados ainda nos dias atuais.

Na atualidade, um dos impactos persistentes da ditadura foi a ascensão de partidos de direita e extrema direita que resgatam uma narrativa militar bastante popular. Nos últimos anos, os movimentos de extrema direita foram ganhando cada vez mais visibilidade e, com isso, mais adeptos. Conforme explica o professor, tais movimentos se juntaram, a partir de 2013, a outros movimentos de direita e de extrema direita pelo mundo, que passaram a questionar as instituições democráticas e – especialmente – os governos Lula e Dilma, enquanto representantes do “Comunismo” que o Golpe de 1964 buscou combater.

Eles se beneficiaram da onda reacionária e de extrema direita que ascendeu nas diversas regiões do planeta, apresentando-se como parte dessa onda. No caso do Brasil, os militares assumiram protagonismo”.

José Ângelo, professor da UFMG

O professor também afirma que alas militares comprometidas com o Golpe de 1964 tiveram um papel de relevância política no governo Bolsonaro, assumindo posições chave como Casa Civil, Ministério da Defesa e até outras pastas como o próprio Ministério da Saúde, na Gestão Eduardo Pazuello. “Milhares de cargos de confiança no Executivo Federal, a bem da verdade, foram ocupados por militares e as forças armadas foram manipuladas e politizadas no Governo Bolsonaro, como se fossem um instrumento do seu governo e, não, parte da estrutura de Estado”, detalha.

Desviando-se da função de Estado, o poderio militar serviu a propósitos antidemocráticos, como o questionamento das urnas eletrônicas no processo eleitoral regulamentado e operado há décadas no Brasil. Para o professor, um dos legados do Bolsonarismo no país foi este envolvimento indesejável dos militares na arena política, algo impensável nas democracias maduras do planeta.

Violência que gera violência

Para o professor José Ângelo, há também uma conexão da ditadura com formas violentas de resolução de conflitos, com abordagem agressiva, ruptura com o sistema e sentimentos de revolta contra as instituições já estabelecidas. “A ditadura criou uma cultura política violenta, autoritária, que nega os conflitos e aposta na violência como resolução de conflitos e não na construção de consensos. Tudo o que vimos claramente desde o governo Bolsonaro”, completa.

Figuras como Jair Bolsonaro e Nikolas Ferreira são exemplos de políticos que operam nessa lógica de violência ao exaltarem o período militar no Brasil. Para a professora do Depto. de História da UFMG Priscila Brandão, a conexão é total entre a ditadura e essa cultura política violenta, elitista e excludente. Segundo a professora, outro fator que conecta os períodos históricos é a falta de punição para atos e falas inconstitucionais. Apesar de ser proibido, Bolsonaro fazia discursos políticos dentro da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), instituição onde se formou militar. Também durante o impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro homenageou o torturador Brilhante Ustra.

A liberdade de um deputado gritar “Viva Ustra”, fazendo apologia à tortura em pleno congresso nacional, sem receber nenhum tipo de punição, reflete bem a defesa dessa extrema-direita que ele alimentou e que está aí até os dias de hoje”.

Priscila Brandão, professora da UFMG
Esta reportagem foi desenvolvida pelos estudantes Alexandre Temponi, Artur Lelis e Victor Ennzo para disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital do semestre 2023/2 com a supervisão da professora Verônica Soares.
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