A medicina registra, hoje, os números mais altos de pacientes mortos pela covid-19 diariamente no Brasil. A média móvel é de 2.800 óbitos por dia. Leitos e respiradores mecânicos estão em falta em grande parte dos hospitais. Pouco mais de um ano desde os primeiros diagnósticos, a imprevisibilidade dos efeitos causados pelo vírus ainda desafia a ciência e influencia na percepção da população, que com frequência tem acesso a notícias falsas e desinformação sobre a doença.
Em meio à maior crise sanitária já registrada no Brasil, nada seria mais oportuno do que encontrar uma medicação eficaz contra os efeitos da covid-19, antes que toda a população seja completamente imunizada pela vacina. Esse desejo de sobrevivência abriu portas para que laboratórios pelo mundo vasculhassem fórmulas de remédios já existentes, que pudessem contribuir com o tratamento do vírus, até mesmo ajudando a prevenir seu ataque no organismo.
De acordo com a reumatologista Marcella Maria Soares Mello, que trabalha como preceptora dos ambulatórios de Raynaud/Esclerose Sistêmica e Osteometabólica da Residência de Reumatologia da SCBH (Santa Casa Belo Horizonte), além de plantonista de Clínica Médica do Hospital Ipsemg e do Instituto Orizonti, onde trabalha como linha de frente, essa busca pelo remédio “milagroso” provocou o surgimento de ideias não fundamentadas sobre a doença, fazendo com que certas pessoas optassem por um tratamento precoce sem fundamento científico e até mesmo o consumo de medicação sem eficácia comprovada, com incentivo irresponsável do próprio governo.
“A ausência de um tratamento eficaz, que não a vacina e o suporte que a gente já faz, rotineiramente, para os pacientes, acaba contribuindo para esse tipo de comportamento. Várias medicações foram testadas, vários estudos foram feitos para tentar encontrar um remédio que pudesse nos ajudar no tratamento precoce como as pessoas gostam de falar, mas nada se mostrou eficaz”.
Ela acredita que o desespero da população, além da falta de coordenação central do governo para orientar o que deve e o que não deve ser feito acabam impelindo as pessoas a fazerem algo por conta própria diante desse desconhecido: “Então, elas optam por fazer uso desse tipo de remédio que não tem eficácia comprovada e que pode acabar levando um malefício maior.”
A Covid e a Fake News
Na corrida para encontrar medicamentos que se revelariam potencialmente eficazes contra a covid-19, o processo cuidadoso guiado pelo método científico foi atropelado por um espetáculo de desinformação. Em um ambiente repleto de dúvidas, qualquer notícia sobre um simples teste em andamento com algum remédio passou a ser amplamente divulgada, potencializando o sentimento de histeria da população que, ao mesmo tempo mal informada, acaba por acreditar nesses recursos e contribui para a disseminação de fake news sobre a covid.
De acordo com a cardiologista Tati Guerra Pezzini Assis, residente de Cardiologia do Hospital das Clínicas da UFMG e plantonista da equipe de Clínica Médica da Santa Casa de Belo Horizonte, o fato de se tratar de uma doença nova, que ainda está em fase de estudos, potencializou uma enorme leva de informações falsas, ou meia-verdades que, além de aumentar o desespero da população, guia as pessoas na direção errada dos fatos.
“O problema é esse: uma doença nova que não tinha tratamento antes, que se criou um grande caos em cima dela, e foram tentando criar alternativas com medicações que já existiam. Pegaram essas evidências, inicialmente de qualidade ruim, e colocaram isso como verdade, e isso se espalhou rapidamente.”
Ela ressalta os perigos de uma situação como essa, em que a notícia ou informação se espalha rapidamente por aplicativos como WhatsApp e Facebook: “Às vezes é difícil tirar isso da cabeça da população. Você tenta explicar para alguém que não há um tratamento específico, que é melhor você “não dar nada” do que dar uma medicação que você sabe que não faz efeito”.
Kit Covid não funciona
Como comprovado pela ciência, não existe, ainda, remédio comprovadamente eficaz contra os efeitos da covid-19 no organismo, muito menos em sua prevenção. De acordo com um estudo publicado no periódico americano Journal of the American Medical Association (JAMA), uma das mais respeitadas do mundo, medicamentos como a ivermectina – usado no tratamento de vários tipos de infestações por parasitas (como piolhos, sarna, oncocercose, estrongiloidíase, tricuríase, ascaridíase e filaríase linfática) – não surtem efeito em pacientes com covid-19.
O estudo revelou, a partir de um experimento randomizado – usado como padrão de referência dos métodos de pesquisa em epidemiologia, ajudando a determinar a eficácia de uma intervenção médica – que não houve nenhum resultado expressivo que sustentasse que o remédio surtiria o efeito pretendido em casos leves.
“Os resultados não apoiam o uso de ivermectina para o tratamento da covid-19 leve, embora estudos maiores possam ser necessários para compreender os efeitos em outros resultados clinicamente relevantes.” Essa afirmação foi retirada diretamente do estudo (e traduzida do inglês) conduzido na cidade de Cali, na Colômbia. Um total de 476 pacientes adultos com doença leve e sintomas por 7 dias ou menos (em casa ou hospitalizados) foram inscritos entre 15 de julho e 30 de novembro de 2020, e acompanhados até 21 de dezembro de 2020.
A farmacêutica estadunidense Merck Sharp and Dohme (MSD), criadora da ivermectina na década de 1970, também afirmou, através de uma nota publicada em fevereiro, que ainda não existem evidências de que o medicamento traga benefícios ou seja eficaz no tratamento da covid-19.
Na nota, a equipe médica afirma que o medicamento não apresenta: “Nenhuma base científica para um efeito terapêutico potencial contra covid-19 de estudos pré-clínicos e nenhuma evidência significativa para atividade clínica ou eficácia clínica em pacientes. Não acreditamos que os dados disponíveis suportem a segurança e eficácia da ivermectina.” (traduzido o inglês)
Mesmo com inúmeros estudos conduzidos que comprovaram a falta de eficácia desses remédios contra o vírus, o “Kit Covid” não deixou de ser divulgado como uma opção legítima para combater a doença. Além da própria ivermectina, medicamentos como a cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, bromexina, nitazoxanida até as vitaminas C e D, fazem parte do chamado “Kit Covid”, coquetel ofertado e promovido pelo Ministério da Saúde e autoridades brasileiras para uso na fase inicial da doença, agindo como um tratamento precoce.
O que é o estudo clínico randomizado controlado?
De acordo com a cardiologista Tati Guerra, o motivo de tantas pessoas recorrerem ao uso desse “kit”, mesmo após confirmações científicas de que não funcionam no organismo, podendo até piorar o quadro do paciente, se deve à falta de informações acessíveis a respeito do método científico e do processo de teste destes medicamentos, o chamado estudo clínico randomizado controlado.
“Como ninguém tinha imunidade e a doença estava começando a afetar muitas pessoas, começaram a buscar tentativas de medicações que já existiam para conseguir combater a hospitalização e reduzir a necessidade de ventilação mecânica e de mortalidade. Em outras epidemias que a gente teve por aí, já tinham começado a usar certos medicamentos, só que o problema é que é difícil explicar pra uma pessoa leiga ou até pra pra algum médico que não tenha muito conhecimento do assunto como é feito o estudo”.
O estudo clínico randomizado é de fundamental importância quando se trata da demonstração da segurança de curto prazo, eficácia, efetividade e segurança de longo prazo das intervenções em seres humanos, feita por medicamentos. Além disso, a comprovação concreta de cada um desses remédios não acontece em um único estudo. Normalmente, uma sequência de estudos, randomizados e não-randomizados, determinada em um período de tempo, e é necessário antes que um tratamento possa ser disponibilizado para o uso de pacientes.
O termo “clínico” se refere a pesquisa realizada diretamente com pacientes. Enquanto a pesquisa pré-clínica é realizada com animais ou com experimentos in-vitro (reações físico-químicas ou culturas de células).
Ainda de acordo com a cardiologista, a melhor forma de você comprovar que qualquer medicação é eficaz é fazendo um estudo randomizado controlado. “Uma população parecida de um lado é separada de uma população parecida de outro. E aí o ideal é que duas populações achem que estão recebendo a medicação e que o médico que está dando a medicação também ache que está tratando da mesma forma os dois pacientes. Com isso a gente observa o efeito daquele tratamento e poderemos concluir, no final, se foi por causa da droga. Porque, no início, essas populações eram parecidas e aí você mudou alguma coisa por causa do tratamento que você ofereceu. Então, essa é a melhor forma de você gerar uma evidência concreta de que alguma medicação faz efeito.”
Medidas governamentais
Esses medicamentos, como a ivermectina, tiverem a maioria dos seus testes recolhidos a partir de estudos in vitro, e por isso não podem ser considerados eficazes na luta contra o vírus. De acordo com uma matéria divulgada pelo portal da Faculdade de Medicina da UFMG, o Governo Federal brasileiro vem se mostrando cada vez mais disposto a proliferar, ainda que sem evidências, a existência do “Kit Covid”, bem como sua suposta qualidade, para a população.
Dados recolhidos pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) e divulgados pelo jornal O Tempo, mostram que, desde o início dos discursos feitos pelo Presidente Jair Bolsonaro, nos quais ele defende o uso de medicamentos e de tratamento precoce, as vendas em farmácias dispararam. No Brasil e em Minas Gerais, a ivermectina foi o remédio associado à doença cujas vendas mais cresceram em 2020: cerca de 5,4 milhões de comprimidos, superando até as de hidroxicloroquina, segundo a reportagem d’O Tempo.
Além disso, informações passadas por grupos de WhatsApp também contribuem substancialmente com a disseminação das afirmações feitas pelo Presidente, assim como em inúmeras lives e posts em redes sociais, como Instagram e Twitter.
Os dois lados da moeda
De acordo com a clínica médica Fabiola Vieira Duarte Baptista, que trabalha na linha de frente no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a quantidade de informações falsas recebidas, no que tange aos efeitos e aos experimentos feitos com o Coronavírus SARS-CoV-2, abre espaço para que clínicas que se dizem especializadas em “tratamentos precoces”, ganhem a confiança de pacientes menos informados.
“Em um contexto de excesso de informações, saber filtrar o que de fato é ciência comprovada do que é ciência maquiada não é fácil. Muitos médicos hoje em dia não têm formação (na graduação ou na residência médica) adequada para interpretação de trabalhos científicos e são facilmente enganados por supostas evidências que aparecem na mídia, inclusive em meios médicos.”
O “tratamento precoce” é comercializado em grande parte dos estados brasileiros, e grupos médicos afirmam poder deter o acometimento da doença antes mesmo do vírus entrar em contato com as células do organismo. O Colab entrou em contato com médicos que atuam dessa forma e que disponibilizam seus dados publicamente no site intitulado “Médicos pela Vida”. Na reportagem, indagamos como o procedimento funciona e quais são os remédios indicados para esse tratamento.
Fomos informados que existe uma quantia a ser paga ao médico atendente, que pode variar de R$300,00 a R$500,00. Além disso, uma lista de remédios, comprovadamente não eficazes contra a doença, que também estão presentes no “Kit Covid”, foram oferecidos via mensagem de WhatsApp, e foi indicada a dosagem “correta” que poderia ser consumida, sem mesmo uma consulta inicial com o médico.
Situação na linha de frente
Situações como essa se revelam como um grande obstáculo para médicos que trabalham com base em evidências científicas e estão na linha de frente, atendendo pacientes infectados ou com suspeita de covid. De acordo com a reumatologista Marcella Maria Soares Mello, a divulgação de tratamentos precoces, bem como o falso benefício provido pelo “Kit Covid”, torna ainda mais difícil oferecer um atendimento de qualidade.
“Além dos possíveis efeitos colaterais provocados pelo uso desses medicamentos, muitas vezes os pacientes acabam prorrogando a ida ao pronto-socorro, porque acreditam estar fazendo uso de medicações que vão controlar a infecção em casa, que vão fazê-los melhorar. Eles chegam em um estado muito pior do que estariam se tivessem ido antes para o hospital. O “kit” cria uma falsa sensação de proteção e esses pacientes dão entrada no pronto-socorro já com comprometimento pulmonar muito significativo, evoluindo para uma necessidade de ventilação mecânica e CTI, por acharem, em casa, que em algum momento a condição vai melhorar, por conta desses remédios, que eles estão tomando. Então isso piora o prognóstico do paciente, que não chega a tempo de ser tratado de maneira correta”, lamenta a profissional de saúde.