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Maurício Tizumba: um mestre de começos, meios e começos

Feliz, Tizumba conversa e expressa toda a arte que existe dentro de si. Foto: Maria Carolina Luvizoto.

Terça-feira, 9 de abril de 2024. O dia, que amanheceu nublado e abafado, tinha tudo para ser mais uma data comum se não fosse pelo fato de que um dos maiores artistas brasileiros havia aceitado o nosso convite para uma entrevista. Maurício Tizumba nos recebeu em sua casa no topo do bairro São Lucas, um dos mais altos da grande Belo Horizonte.

Da vista de sua varanda, era possível enxergar os vários prédios dispostos na cidade e a brisa do vento refrescava o local enquanto Tizumba nos oferecia lugares para nos aconchegarmos e iniciarmos a prosa. Ele se sentou. Os fios brancos de seu cabelo indicavam que tinha muita história para contar e estava disposto a compartilhá-las conosco. Estava envolto no manto do santo conhecido por matar dragões, São Jorge.

O artista relatou as diversas batalhas que travou ao longo de sua trajetória, bem como os dragões que ele também teve que matar para se tornar um ícone cultural afro-mineiro. Entre instrumentos de percussão, violões, prêmios, máscaras africanas, livros e fotos da família e amigos, Tizumba preencheu cada milímetro da sala de sua casa com sua sabedoria ancestral. Ele conduziu a aula com o rigor digno dos melhores mestres que sabem da urgência em transmitir ensinamentos que têm a capacidade de transformar a realidade que violenta o povo negro desde a colonização.

Quem é Tizumba?

Maurício Lima Moreira, nascido em 15 de dezembro de 1957, em Belo Horizonte, iniciou sua carreira profissional por volta de 1973. O cantor, multi-instrumentista, compositor, ator, agitador cultural e capitão de congado, percebeu que a arte era algo fundamental em sua vida quando ainda era criança.

Tizumba conta que, em meados da década de 1960, era um cantor mirim no estilo The Voice Kids e acrescenta que, além de trabalhos na música, aceitava todas as oportunidades que lhe eram ofertadas em outras áreas artísticas. Um de seus sonhos era dar uma casa para sua mãe – não que não tivessem casa própria -, mas queria uma casa melhor. Na cabeça do pequeno artista, essa conquista viria após dois anos de trabalho. Ele explica que a noção de tempo de uma criança é diferente. Pensou que conseguiria conquistar a casa em pouco tempo, mas esse feito só foi se realizar no começo dos anos 80.

A origem de seu nome artístico, Tizumba, remonta à sua época da escola. O artista acredita que seu professor de matemática o apelidou dessa forma pelo fato de ele ser um dos poucos negros na instituição e a sonoridade do apelido soar como algum nome africano. Maurício Tizumba fez parte da criação da Cia. Burlantins com as atrizes e cantoras Maria Machado e Regina Souza. Anos depois, criou o Espaço Cultural Tambor Mineiro, um centro de referência cultural em Belo Horizonte. Hoje, aos 67 anos e com uma carreira consagrada, continua fazendo história.


Foto antiga de Tizumba em uma de suas apresentações teatrais. Foto: Maria Carolina Luvizoto.

Grandes nomes como Benjamin de Oliveira, Grande Otelo, Milton Gonçalves, Zezé Motta e Vander Lee fizeram parte de sua jornada. Tizumba, assim como seus contemporâneos e outros artistas que o antecederam, trilhou seu caminho pelas artes, influenciando e inspirando as novas gerações. Um ciclo incessante que vem sendo trilhado há muito tempo.

Nós somos o começo, o meio e o começo.
Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas
para festejar a vinda das alegrias.
Nossas trajetórias nos movem,
Nossa ancestralidade nos guia.

Negô Bispo

Com 18 anos, teve seu primeiro contato com o Movimento Negro Unificado (MNU), onde conheceu Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro e grande liderança na luta racial no Brasil. Nesse contexto, falou sobre equidade e como a humanidade ainda está longe de alcançá-la, mas apontou também que existem muitas pessoas na luta por uma sociedade mais justa.

Tizumba falou, com orgulho nos olhos, de sua avó e sua mãe. A primeira, rezadeira do rosário; a segunda, candomblecista rezadeira do kibuko. Duas mulheres protagonistas de sua fé, honradas até hoje pelo descendente que, orgulhoso, afirma seguir ambas religiões e ensinamentos dessas mulheres tão importantes em sua vida. O artista carrega consigo a lembrança e todo o conhecimento herdado de suas matriarcas.

Para ele, toda a arte vem da religião: a música, a pintura, a escultura, entre outros. Nesse
momento, nos lembrou das lindas máscaras de África e, para nos encantar, apontou para
várias delas espalhadas pelas paredes de sua casa. Cada elemento presente expressa o quanto a espiritualidade e a arte são pilares fundamentais em sua trajetória.


Porta-retrato de Tizumba com sua filha e netas. Foto: Maria Carolina Luvizoto.

Celebrações e homenagens

Em 2023, a peça Herança coroou os 50 anos de carreira do artista mineiro. Na produção, o homenageado contracena com sua filha, Júlia Tizumba, e seu amigo de longa data, Sérgio Pererê. Uma celebração ancestral e poética, símbolo de excelência negra, que relaciona a história de vida dos atores com a própria formação do Brasil, país estruturado a partir de violências, apropriações e saques a culturas inteiras.

O espetáculo começa contando a história do rei camaronês Ibrahim Njoya e da riqueza cultural de seu povo, uma sociedade complexa a ponto de criar um novo idioma para que os brancos colonizadores não entendessem. Anos depois, o trono do monarca foi “encontrado” em Berlim. Não se sabe se ele foi doado para a Alemanha ou roubado. Tizumba, que recentemente descobriu sua ascendência camaronesa, acredita mais na segunda possibilidade e defende o direito de retomada de tudo que foin roubado e advoga em nome de uma arte pautada na luta por justiça.

A arte serve é para isso. A arte não serve para outra coisa não. Serve para ir buscar o que é da gente, para pôr as coisas em seus devidos lugares, para equidade, para buscar justiça.


Artista mostra prêmios e troféus conquistados na carreira. Foto: Maria Carolina Luvizoto.

Quando perguntado sobre a limitação e expectativa imposta sobre a arte feita por pessoas
negras ser pautada somente no racismo, ele confessou estar cansado e relata que, quando
chega nos espaços, as pessoas já esperam que ele fale sobre questões raciais e que muitas
vezes ele até desconversa. Tizumba ainda falou sobre o fato dos artistas negros estarem na
margem de uma classe artística já muito marginalizada, sobre serem “as evidências das
adjacências” e que, mesmo sendo exaustivo, é preciso se apropriar dessa notoriedade para
lutar por condições melhores de vida no país.

A arte serve para brigar, para defender o amor, para defender os
carinhos, os afetos, para defender a liberdade, defender a mata,
defender o céu, defender o sol. A arte serve é para isso: para
guerrear nessa direção, para guerrear em favor do amor. Porque o
amor não é uma coisa dada assim, ‘cê’ vai ter que guerrear para ter.

Tizumba acredita que Belo Horizonte é a cidade mais racista do Brasil, pois, segundo ele, sua
criação é fruto de um desejo de não associar a imagem da capital de Minas Gerais a pessoas
negras, que representavam, na época, mais da metade da população da antiga capital, Ouro
Preto. No dia 06 de janeiro de 2024, o artista conduziu um cortejo de Folia de Reis da Praça
da Liberdade até o Palácio da Liberdade. A ocupação desses salões onde residiam os
governadores, por uma forte tradição afro-brasileira, representa uma subversão do ideal da
República de afastar os negros dos centros. Para Tizumba, pouco importa os palácios e
casarões: queria mesmo era ocupar os terreiros, as terras e tomar aquilo que é de direito do
povo negro.

Que dessem para a gente as terras e a gente mesmo ia construir do
nosso jeito, com a nossa cara. Com grandes vitrôs para a casa ficar
bem clara e com pouca escada para os pretos velhos poderem andar.
Uma coisa mais humana.

Na vida e nos palcos

As sensações que um artista experimenta antes de subir ao palco refletem o quão especial é o seu trabalho, que é tomado pelo carinho dos fãs e aclamação do público. Tizumba lembrou que o ofício, ao contrário do que muitos podem pensar, deve ser feito com o mesmo rigor de um engenheiro quando constrói uma estrada. O artista deve subir ao palco e entregar tudo de si para a plateia.

Não é um trabalho que eu tenho que bater ponto, mas é um trabalho
que eu tenho que trabalhar muito, com muita seriedade para, quando
eu chegar no palco, eu estar com tudo muito legal para te dar. Eu
não posso chegar lá no palco capenga, com os negócios caindo, com
os negócios mal arrumados Eu não posso chegar lá bêbado, feio, com
roupa feia. Tá no mínimo limpinha, bonitinha, coladinha no corpo.
Sem necessidade de ser uma coisa espalhafatosa, pode ser
‘simplinha’.

Tizumba falou sobre sua percepção para identificar quem é negro. Segundo ele, os negros têm características muito próprias. A partir dessa afirmação, dirigiu-se diretamente a nós, os entrevistadores.

Todos vocês são negros. Eu enxergo vocês pela pele, pelo cabelo,
pela bunda, pelo nariz, porque isso não é de italiano! Não é de
francês; o cabelo não é de alemão! [..] Onde é que vocês misturaram,
vocês sabem? Onde é que foi a mistura ‘suas’? Vocês tudo com cara
de preto, cabelo de preto, bunda de preto, com tudo de preto.

Pensando nessa miscigenação, ele destacou que negros de pele clara, ou seja, pardos, são privilegiados se comparados aos negros de pele mais escura. Exemplificou ainda, de forma didática, que um branco pobre ainda tem mais vantagens que um negro na mesma condição. Além disso, reconhece que hoje ocupa uma posição privilegiada, apesar de que nem sempre foi assim, por ser uma pessoa preta.

Com sorriso contagiante, Tizumba conta histórias e ensina com sabedoria. Foto: Maria Carolina Luvizoto.

Tizumba, quando questionado sobre igualdade racial, demonstrou cansaço no semblante e descrença nessa idealização. Para ele, existe uma diferenciação racial impossível de ser negada. O que deve ser almejado é uma sociedade que garanta equidade e direito a uma vida digna para todos.

O que tem que existir é a gente dar um jeito de conviver com as
nossas diferenças em paz. A igualdade que pode existir aí é nos
direitos.

Tizumba apresentou seu modo de pensar com detalhes minuciosos, atento para não deixar nenhum escapar. Compartilhou seus pensamentos e reflexões a partir de suas experiências e vivências, de tudo um pouco. Na sala tomada por instrumentos, tambores e lembranças acumuladas ao longo de toda uma vida dedicada à arte, Tizumba encontrou espaço para nos passar seus valiosos ensinamentos com uma gentileza digna dos melhores professores. O encontro com o artista durou mais do que os nossos sentidos foram capazes de captar, saímos de sua casa com a ilusão de que a
conversa havia durado apenas 30 minutos, quando, na verdade, para nossa grande honra, durou o triplo disso.

Reportagem produzido por Alenildes Bicalho, Danielly Andrade, Maria Carolina Luvizoto e Pedro Almeida, sob supervisão do professor Vinícius Borges, para a disciplina Apuração, Redação e Entrevista.
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