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“Linguagem neutra não existe”

A linguagem neutra é um tema polêmico, que vai muito além de discussões no Twitter. Especialistas da área se debruçam sobre o tema, que diverge opiniões mesmo entre profissionais.

Raquel Freitag, professora do Departamento de Letras Vernáculas na Universidade Federal de Sergipe e editora-chefe da Revista da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística), não acredita em linguagem neutra. “Linguagem neutra é uma coisa que não existe. Não existe neutralidade, em nada no mundo. Eu advogo por uma a linguagem inclusiva de gênero, que está na pauta dos movimentos feministas há muito tempo”, coloca.

 Jonas Maria, homem trans formado em Letras, também argumenta que esse termo não é o mais adequado, apesar de comumente utilizado. Em seu vídeo “Linguagem Neutra: principais críticas” para o YouTube, ele explica que apesar da linguagem neutra não ser neutra, ela é uma alternativa ao binarismo da língua padrão.

Além disso, pode-se entender, no contexto linguístico, o termo neutralização como o cancelamento do contraste entre feminino e masculino, como coloca o especialista Luiz Carlos Schwindt na live “Língua, gramática, gênero e inclusão” para o canal da ABRALIN. A concepção de neutralidade como imparcialidade, portanto, não cabe.

Sexismo linguístico

Antes de entender o movimento por uma linguagem neutra ou inclusiva, é preciso argumentar por que a linguagem do dia-a-dia não pode ser chamada de inclusiva. Segundo a professora Raquel Freitag, existe uma concepção de que a língua é sexista. “Uma língua não existe senão em uma sociedade. Se a sociedade é sexista, como o é a nossa, a língua apenas reflete esse sexismo”, explica. Nesse sentido também discursa Guilherme Ribeiro Colaço Mäder em seu artigo “Masculino genérico e sexismo gramatical”.

No português, assim como na grande maioria das línguas do mundo, o masculino é considerado o gênero não marcado, aquele utilizado como genérico para se referir a um grupo de várias identidades. Em oposição, o gênero feminino é considerado marcado, ou seja, só remete a pessoas que se identificam com o pronome feminino. Porém, como é avaliado no artigo, a própria convenção do masculino genérico é um reflexo do machismo na sociedade e, por isso, caracteriza um “falso” neutro.

 Apesar disso, é comum o uso do feminino genérico em determinadas situações, principalmente de maneira pejorativa. Enquanto “médicos”, no masculino, é usado genericamente, “enfermeiras”, no feminino, tem sentido genérico. Isso também acontece com as palavras “executivo” e “secretária”, por exemplo. O comum, nessas situações, é que profissões consideradas mais importantes são referidas no masculino, enquanto outras, desvalorizadas, são expressas no feminino, reforçando estereótipos.

Na manchete do artigo publicado na Istoé, Enfermeiras e médicos, os ‘heróis’ da batalha contra o novo coronavírus, apesar do masculino ser usado como genérico para as palavras “médicos” e “heróis”, o termo feminino “enfermeiras” foge à regra e também é utilizado como genérico.

Meninos de azul e meninas de rosa?

Outras motivações que ficaram de fora do estudo de Guilherme Ribeiro Colaço Mäder também são fundamentais para compreender a busca por uma linguagem mais inclusiva. Pessoas que não se identificam com o sistema binário, que coloca o masculino e feminino como únicos gêneros possíveis, lutam pelo reconhecimento das suas identidades na língua.

Trecho do Manifesto ile para uma comunicação radicalmente inclusiva

“Existe outro movimento, que é pela inserção de uma forma para referência a quem não se identifica nem com gênero feminino, nem com gênero masculino, ou seja, uma forma de referência de gênero não binária”, explica a professora Raquel Freitag. Ela ainda completa que quer ser referida como ‘ela’ e acredita que cada um tem o direito de ser referido por seu pronome de preferência, mas faz ressalva.

“Eu tenho uma séria crítica ao modo como o ativismo pela linguagem não binária tem promovido a questão. Eu defendo a pauta inclusiva, pela inserção de formas representativas dos gêneros. Mas vejo também um movimento que quer substituir o masculino genérico pelo não binário como a forma de referência genérica. É uma troca de uma hegemonia por outra, em que o gênero feminino, mais uma vez, é relegado ao segundo plano e apagado. Há vertentes que dizem que a forma não binária contemplaria as mulheres. Eu não me sinto contemplada. É um direito meu”, defende.

No entanto, de volta ao vídeo de Jonas Maria, ele reforça que a ideia não é eliminar os gêneros já existentes na língua (feminino e masculino) mas propor uma alternativa não marcada de gênero/sexo para pessoas.

“Essa não marcação servirá à diversas situações em que de fato o sexo/gênero da pessoa não é importante. Assim, eventualmente, ela também servirá às pessoas não binárias. Ou seja, a gente vai continuar usando ‘ele’, ‘ela’, mas ‘elu’ também, sendo que esse ‘elu’ pode ser uma pessoa trans ou não”, explica.

A linguagem neutra, não binária ou inclusiva não é uma imposição dos movimentos feministas ou LGBTQIA +, mas uma tentativa de inclusão de pessoas historicamente marginalizadas. Além disso, a proposta do gênero neutro visa abarcar tanto coletivos quanto pessoas que não encontram lugar no binarismo. 

Saiba mais: Todxs e todes: estudos indicam que a língua neutra diminui preconceitos

Mas a língua pode mudar?

Para pensar em mudar a língua, é preciso saber se ela aceita tais modificações. Para a professora, a resposta é sim. “A língua se acomoda às demandas de seus falantes. A gramática de hoje é a cristalização de usos bem aceitos de ontem”, pontua. Portanto, apesar de ser um processo longo e demorado, não significa que seja impossível ou mesmo que essa forma de linguagem não esteja presente no cotidiano das pessoas.

Em vídeo para o seu canal, a drag queen Rita Von Hunty, vivida pelo professor Guilherme Terreri, explica que a língua funciona como um organismo vivo em constante mudança.

Raquel Freitag também salienta que esse processo ainda é alvo de muitos ataques e rejeição. “Na minha opinião, a maior razão para a rejeição é a percepção de que a hegemonia está sendo ameaçada pela substituição de uma forma por outra. E mais uma vez o feminino fica de fora”, ressalta.

Em 2020, o vereador Carlos Bolsonaro apresentou projeto na Câmara do Rio de Janeiro para proibir o uso da linguagem neutra em escolas e concursos da Prefeitura. O caso não é isolado. Outras propostas do tipo tramitam na Câmara dos Deputados por representantes conservadores anteriormente ligados à “Escola sem Partido”.

Desafios linguísticos

Além dos confrontos ideológicos, a linguagem neutra também encontra desafios na língua falada e escrita. Um dos problemas é o uso de “x” e “@” em palavras como “todxs/tod@s” e “alunxs/alun@s”, que ainda persistem em algumas ocasiões. Além de impronunciáveis, tais formas também representam empecilhos à pessoas com déficit de atenção ou que são auxiliadas por leitores digitais. Portanto, atualmente se fala do uso de “e” ao invés dessas outras alternativas.

Além disso, vale destacar que outras formas linguísticas, como os memes, algumas abreviações e figuras de linguagem, também não são decodificadas por leitores digitais e, portanto, são um impedimento para pessoas com deficiência visual.

No entanto, outros desafios ainda permanecem em discussão entre especialistas da língua. Ao contrário do inglês, que já apresenta o gênero neutro, o português padrão é dividido apenas em gênero feminino e masculino, sendo este último usado como “neutro”. Logo, a implementação de um terceiro gênero exige mudanças que vão além do pronome, mas que são possíveis.

Foi nesse sentido que o especialista Luiz Carlos Schwindt propôs o estudo “Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico”. O documento é um texto explicativo que, dentre outras discussões, aborda como fazer uso da linguagem neutra, seja para profissionais da área, seja para pessoas interessadas.

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